Existe um espaço, no bairro Paupina, distante do Centro de Fortaleza, chamado Refúgio dos Anjos. Cercado por artesanatos, esculturas, mato verde, sons de passarinhos, paredes desenhadas com discos voadores e outras entidades míticas, esse espaço fica num "intermezzo" entre passado, presente e futuro. Eventualmente acrescido de fogueira e instrumentos musicais, esse intervalo congelado do tempo é a casa dos músicos Marcelo e Ricardo Pinheiro, fundadores da histórica e heroica banda Renegados.
Histórica e heroica não é exagero de fã. Fato é que, em 2023, eles completam 30 anos de uma carreira que passa pela luta constante contra modismos, ausência de apoio, contratos duvidosos e outras turbulências comuns da cena independente. Na outra mão, o quarteto completado por Romualdo Filho (baixista) e Celso Batera (percussão) tem o reconhecimento do público e a certeza do que querem fazer mais e melhor: rock and roll. Sem clichês ou limitações, mas o rock como estilo de vida, de liberdade de ser e pensar. A seguir, Marcelo Renegado conta a história da banda que ajudou a criar e que hoje é um honroso capítulo da música cearense.
O POVO - Queria começar com você se apresentando. Seu nome, onde nasceu...
Marcelo renegado - Meu nome é Marcelo Pinheiro Rocha e, depois de 30 anos de banda, passou a ser Marcelo Renegado. Virou sobrenome. Eu me considero de duas cidades do Vale do Rio Jaguaribe, porque eu fui gerado na cidade chamada Tabuleiro do Norte e nasci em Limoeiro do Norte. E morei em Tabuleiro só até os 7 anos de idade, aí a gente veio para cá, para Fortaleza. Então moro há mais tempo aqui em Fortaleza do que morei lá, mas a gente nunca perdeu o contato. Até hoje, sempre que pode, a gente está lá. Então me considero da região toda do Vale do Rio Jaguaribe.
O POVO - E como era essa casa em que você nasceu?
Marcelo Renegado - Nessa época os nossos pais estavam morando no sítio que era do nosso avô Hercílio Pinheiro, que era cantador de viola, repentista. Contemporâneo de Dimas (Batista), de Otacílio (Batista). Na verdade, ele veio antes. Depois veio com o Dimas e o Otacílio, eles cantavam juntos. Eles faziam as viagens cantando nas fazendas, cidadezinhas, em todos os lugares e sempre na rádio de Mossoró. Uma época que não tinha televisão, não tinha nada assim. A rádio era o veículo que chegava mais longe. Viajavam muitas vezes em lombo de burro, com tropeiro, outras de carona. Tinha aqueles mistos, que chamava os caminhões que cortavam e faziam a cabine de madeira.
O POVO - Como era o nome do sítio em que vocês moravam?
Marcelo Renegado - Sítio São Francisco. Quando meu avô veio para cá, do Rio Grande do Norte, conheceu a minha avó em Tabuleiro do Norte. Depois de um tempo se casou com ela. E aí trouxe os pais, trouxe outra parte da família, os irmãos e fez um sítio que era na estrada que ia de Tabuleiro para Mossoró, que até hoje é uma estrada de chão. Nessa época era a única estrada que tinha. E essa foi a primeira casa que eu morei. Depois a gente morou numa casa no centro da cidade, numa rua que tinha o nome do nosso avô Hercílio Pinheiro. Ele morreu muito jovem, com 39 anos, de derrame cerebral e foi uma comoção na família. Era o pai da minha mãe.
O POVO - Você tem muitas lembranças desse tempo no interior?
Marcelo Renegado - Foi uma pequena fase que eu morei lá, né? Foi só o tempo que eu nasci e um pouco depois. Infelizmente não existe mais a casa, tá só terreno por que a gente veio embora, os outros foram para outros lugares, acabaram vendendo o local e não tem mais a casa. Depois desse momento, a gente veio morar na cidade mesmo (em Tabuleiro), numa rua que tinha o nome do nosso avô. Na frente tinha um terreno baldio que vinha, na época, todos os parques, circos da cidade. Então, na minha infância, do terraço da minha casa, via chegando, montando aquelas coisas. Aí tinha uma radiadora que rolava os sons da época. Roberto Carlos, Bartô Galeno, Antônio Marcos, o escambau. Tudo que era sucesso na época, uma diversidade. Músicas internacionais, da época, tipo Pholhas, Trepidants e outras coisas da época das tertúlias. Eu era criança, mas tenho várias lembranças da época. Muitas coisas marcaram, como essas imagens dos parques, dos circos e era uma varanda, tinha um portão baixo que eu aprendi a pular. Eu pulava o muro e ia correr nas calçadas. Nessa época, a serra era mata virgem e ainda chovia muito na região, dava uns trovões, relâmpagos, eu fugia de casa tomando banho nas biqueiras. Dava o maior valor à chuva. Inclusive minha dentição é meio desmantelada assim por causa de uma queda que eu levei (risos).
O POVO - E como foi a chegada a Fortaleza? O que te chamou mais atenção?
Marcelo Renegado - Nosso pai trabalhava num caminhão tanque, transportando combustível e teve a necessidade de vir para cá, onde era melhor a logística. Ele comprou esse espaço aqui em que a gente está, o "Refúgio dos Anjos", e foi o primeiro lugar em que a gente morou. Era um lugar mais afastado ainda na época, tinha menos casas ainda e a gente deu valor por que sempre gostamos muito de natureza. E tanto era perto da metrópole, ao mesmo tempo tinha aquela coisa meio de interior, mais afastado. E aí a gente começou a ter contato com outras coisas, fase de adolescência, outras informações. Ouvimos outras coisas, outros tipos de música, o rock and roll, eu me interessei por violão, depois o Ricardo (Pinheiro, seu irmão) se interessou por bateria.
O POVO - O violão foi o teu primeiro instrumento? Alguém te ensinou?
Marcelo Renegado - Foi. Teve de pegar algumas notinhas com um amigo da rua. Aí depois você vai pegando outra coisa, depois aquelas revistinhas cifradas que vinha tudo errado (risos). Hoje em dia você tem o Joe Satriani ensinando como é que faz uma coisa no vídeo. Naquela época não, você tinha de fazer amizade com um cara que tocava no outro bairro, depois que ele fosse muito seu amigo, ia passar algumas notas. Então era tudo muito mais demorado. A gente aprendeu na rua mesmo, né? Pegando uma coisa com um ou com outro. Ouvindo muito, mais audição mesmo e a gente é autodidata, né? Eu particularmente não estudei em nenhum curso. Fui aprendendo na rua, ouvindo e vendo outras pessoas tocarem.
O POVO - Você já falou dessa radiadora que tocava Trepidantes, Roberto Carlos. Qual foi a primeira coisa que você ouviu que te chamou atenção?
Marcelo Renegado - A primeira coisa mesmo era uma radiolinha que a minha mãe tinha, que parecia uma máquina de escrever. Não sei se você lembra. Essa vitrolinha abria, de um lado ficava o toca disco e do outro lado era o alto-falante. Lembro que tinha três discos lá em casa que foram muito marcantes. Um do Luiz Gonzaga. Tinha aquela "já faz três noites que pro norte relampeia, a asa branca ouvindo o ronco do trovão" ("A volta da asa branca"). O outro era um disco médio - nem era o compacto e nem o LP - do Paulinho da Viola. "Tinha eu 14 anos de idade quando o meu pai me chamou, perguntou-me se eu queria estudar filosofia, medicina ou engenharia. Tinha eu que ser doutor" ("14 anos"). E o outro era aquele disco do Roberto Carlos "Em Ritmo de Aventura", que era ele no helicóptero. Que tinha aquela, que marcava muito, "Eu sou Terrível", com aqueles metais. Eu não sabia o que era aquilo, mas achava fantástico, poderoso para caramba. Depois ouvi Elvis. Na época da morte dele, então, passou várias coisas na televisão. Foi aquela comoção toda.
A gente sempre detestou rótulos, de ser colocado em prateleiras. Porque a gente faz blues, música brasileira, várias coisas. A linguagem que a gente faz é rock, mas não necessariamente é uma coisa presa. A gente não tem aquela coisa é carimbada assim de "ah é um som rock misturado com coisa nordestina".
O POVO - E quando você junta o Luiz Gonzaga, o Roberto Carlos e essa música que você falou do Paulinho da Viola, tem muito a ver com quem você é hoje, né?
Marcelo Renegado - Pois é, por isso que o nome da banda hoje é "Além dos Rótulos" ("sobrenome" que eles assumiram depois de uns anos). Renegados é um detalhe. Além dos Rótulos acho que fala muito mais. Renegados a gente fez no momento que a gente precisava. A gente sempre detestou rótulos, de ser colocado em prateleiras. Porque a gente faz blues, música brasileira, várias coisas. A linguagem que a gente faz é rock, mas não necessariamente é uma coisa presa. A gente não tem aquela coisa é carimbada assim de "ah é um som rock misturado com coisa nordestina". Que também você acaba ficando refém. Então, as influências são diversas, as coisas todas que a gente ouviu. A linguagem é rock, blues, né? No entanto é não é aquela coisa de cópia da música de fora, né? Até por que, gosto tanto de dizer isso, acho que o rock deixou de ser uma música norte-americana pra ser interplanetária há muito tempo.
O POVO - Depois de aprender a tocar, a ouvir, reunir essas primeiras informações, como foi que você começou a tocar. Ainda antes de ter uma banda, né?
Marcelo Renegado - Dentro de casa, brincando com violão.
O POVO - Lembra da primeira música que aprendeu?
Marcelo Renegado - Cara, acho que foi "Casa do Sol Nascente", aquela que é uma versão que o The Animals gravou ("House of the rising sun"). O Bob Dylan gravou também, acho que foi no primeiro disco dele e depois fez mais sucesso com o Animals, né? (No Brasil, teve uma gravação em português do Agnaldo Timóteo).
O POVO - E depois?
Marcelo Renegado - Aí eu comecei a tocar violão e a gente comprou uma guitarra já usada. A gente tem até hoje, ela fica só aqui em casa mesmo. É uma Giannini Supersonic do final dos anos 1960 ou começo de 1970. Eu comprei a guitarra e o Ricardo comprou uma bateria. Na verdade, era só a metade da bateria que a gente apelidou de Skylab (nome da estação espacial americana, que se destruiu prematuramente). Tinha uma caixa de som faltando, alguns alto-falantes. Aí tinha um amigo nosso de infância, que morava em frente, que também se interessou por contrabaixo. E a gente começou a fazer barulho em casa, na garagem. Eu tinha uns 13 ou 14 anos, por aí. Começava 7 horas da manhã e terminava meia-noite e no outro dia de novo e no outro de novo.
O POVO - E o colégio?
Marcelo Renegado - Nunca fomos muito aplicados (risos). Mas as professoras de português me adoravam. Professora de português, história, geografia me adoravam. Os professores de matemática é que me detestavam e eu detestava eles também (risos). E assim, música é matemática, mas é matemática intuitiva, né? Eu estudei aqui num colégio bem antigo. Foi o José de Alencar, acho que o mais antigo de Messejana. Depois fui para o seminário seráfico. Fui seminarista (risos), por que era misto. De um lado era o seminário, o outro lado que era aberto, era o colégio. Teve uma época que as classes estavam em reforma e a gente foi estudar na sacristia, lá ao lado do escritório do frei Sabino.
Respeito todas as matrizes religiosas, mas eu sou mais espiritualista e em alguns momentos mais cético também. Eu gosto sempre de ver as coisas de forma ampla. Acho que algumas religiões, ao invés de libertar as pessoas, acabam meio que aprisionando. Não todas, mas algumas usam essa coisa para manipular, infelizmente. E, no cristianismo, a palavra do Cristo é de libertação, né?
O POVO - Mas você é religioso?
Marcelo Renegado - Eu sou espiritualista. Não tenho uma religião específica. Respeito todas as matrizes religiosas, mas eu sou mais espiritualista e em alguns momentos mais cético também. Eu gosto sempre de ver as coisas de forma ampla. Acho que algumas religiões, ao invés de libertar as pessoas, acabam meio que aprisionando. Não todas, mas algumas usam essa coisa para manipular, infelizmente. E, no cristianismo, a palavra do Cristo é de libertação, né? É por isso, inclusive, que ele foi morto pelo sistema da época, por que ele foi contra. Ele renegou o antigo testamento e veio com o novo testamento. O antigo testamento é aquela coisa punitiva, do Deus punitivo, que é bravo, que pune, castiga. "Cuidado! Tudo é pecado".
E Jesus Cristo vem com a outra coisa de libertação, através do amor, de você buscar dentro de si mesmo. Tem uma ligação muito próxima como o budismo também e com as religiões orientais. Mas infelizmente isso é distorcido hoje por muitas religiões. Principalmente as neo pentecostais, que colocam uma coisa mais em torno da prosperidade, quer dizer grana. Então é mais a igreja do Deus do dinheiro do que qualquer coisa. Minha religião é direto com a natureza. A gente não precisa de templo para se conectar com uma coisa suprema. Templo é onde você escolhe, embaixo de uma árvore, o céu, olhando as estrelas, ou olhando o sol em qualquer lugar. E quem gosta de ir num templo também nenhum problema, contanto que tenha consciência de que ninguém é intermediário. Deus não precisa de intermediário.
O POVO - Sua história é muito ligada à banda Renegados. Mas, antes dela, teve outra?
Marcelo Renegado - O nome antes era Rockabilly Gang. A gente gostava muito daquelas coisas dos anos 1950. Nos anos 1980, eu me recusava a ouvir aquele som pasteurizado da época, que era um som meio eletrônico, muito soft, os teclados com sons de plástico. Era tudo com um som que não fazia a minha cabeça. Nessa época, eu ouvia muito os anos 1950, comprava os discos. Elvis Presley, Little Richard, Bill Haley, Chuck Berry e os blueseiros. Muitas vezes a galera diz "ah, vocês têm um som muito parecido com os anos 1960, anos 1970". Eu acho que, em grande parte, é por que a gente ouvia as mesmas coisas. Eles ouviram isso também.
O POVO - E quem era essa banda?
Marcelo Renegado - Era eu e o Ricardo, desde o início, e teve vários outros participantes. Primeiro era o Diênio, que era o nosso vizinho da frente. Teve o Ézio, nosso primo, que tem algumas parcerias musicais comigo. O Paul Lee, que é nosso primo também, que acabou sendo o primeiro baixista do Renegados. Foram diversos baixistas. Nessa primeira fase era mais tocando em casa, né? A gente só fez um show com esse nome, em Messejana. Era um bar chamado Ipê, Irmãos Pinheiro, que foi em homenagem a outro bar que tinha em Mossoró, que foi criado pelos nossos tios-avós.
O POVO - E por que a mudança do nome da banda?
Marcelo Renegado - A gente fez um show como Rockabilly. E aí a gente sentiu a necessidade de mudar porque ficava muito... A gente tinha que tocar só aquele tipo de música, né? E como a gente passou a tocar um repertório mais aberto, com mais influências, a gente sentiu a necessidade de mudar o nome. Como a gente detestava rótulos, para ter um lance, ao mesmo tempo contraditório e marcante, a gente acabou escolhendo Renegados. Muita gente não gosta. Já várias vezes chegaram pra mim: "É porque esse nome é meio negativo".
É não, é um nome que tem impacto. É um nome que, num primeiro plano, que choca e, ao mesmo tempo, é aberto. Todas as pessoas que, de certa forma, renegam alguma coisa ou se sentem renegados em algum momento, acabam se identificando com essa tribo. E o renegado não é só aquele que é renegado. É, principalmente, aquele que renega. A gente renega as mazelas, a sociedade imposta. E os renegados foram os guerreiros indígenas na época da colonização norte-americana que continuaram na luta depois de muitas guerras. As tribos já estavam quase sendo dizimadas, morrendo velhos e crianças. Os generais propuseram um acordo para o chefe das tribos: eles se entregassem que teriam uma espécie de terra prometida, que a gente sabe que, historicamente, foi uma balela. Botaram os caras num trem e levaram para um campo de concentração vigiado com soldados em volta. Só que alguns guerreiros dessas várias tribos disseram "ó, vocês fizeram esse acordo, nós não. Vocês vão lá e a gente vai continuar na luta". Esses caras que continuaram brigando e morreram lutando foram chamados de renegados, os índios renegados.
O POVO - Você falou um pouco de algumas das pessoas que passaram pela Rockabilly Gang. Queria que você apresentasse a banda do hoje.
Marcelo Renegado - Ah legal! Desde o início, meu irmão Ricardo. Desde a outra banda e participando de todas as formações, né? Então sempre eu e meu irmão mais novo dois anos. Não parece, mas é (risos). Vindo por tempo que tá junto com a gente, o Celso que é o percussionista e é paulista. Walter Celso Silva, o Celso Batera, ele era professor de Ricardo, de geografia. E ele vendo Ricardo na sala (perguntou) "cabeludo, que apito tu toca?". Ricardo disse que tocava bateria, aí pronto... Ele foi assistir primeiro a um show da gente, no Casarão da Lagoa, deu o maior valor. Na outra semana, ele chegou com as congas aqui. O Celso está com a gente desde 1997. O Romualdo "Bass" está desde 2007. É a formação mais longeva. O Romualdo a gente conheceu num festival que a gente foi no Boca Rica. A gente o conheceu tocando num projeto com dois violões, mas a gente só se falou. Depois, através de outro baixista que estava tocando com a gente, o Rafael Wolf, que se identificava mais com hard rock. Aí ele falou um dia "rapaz, tem um baixista ali que dá certinho com vocês porque ele tem essa vertente mais ampla. Tem conhecimento de outros tipos de música. Vou trazê-lo aqui". Ele trouxe para fazer um som e a gente adorou. Romualdo toca muito. O que você puxar, rock, música brasileira, qualquer coisa ele desenrola legal.
O POVO - E você vive de música.
Marcelo Renegado - Sempre, sempre a gente sobreviveu de música. E muita gente acha incrível, mas a gente consegue há 30 anos. Trinta anos fazendo música, fazendo arte. Mas só que é o seguinte: a gente é uma banda de rock, mas a gente transita legal. Além da galera do rock, do blues, no meio da galera da música brasileira, da MPB. A gente já fez várias trilhas sonoras para peça de teatro, curtas-metragens, projetos para escolas.
O POVO - Nesses 30 anos, qual foi a lição mais importante que você aprendeu?
Marcelo Renegado - Bicho, perseverança. Acho que é perseverança de fazer o que você gosta. Perseverança em continuar a fazer até conseguir o que você quer. Porque nem todo dia é fácil. Tem dias que são ótimos. Ainda bem que são mais alegrias do que tristezas. Mas tem dias que são difíceis pra caramba. Tem dia que você está com os reis e tem dia que você está na sarjeta. Tem dia que você toca para uma multidão, mais de mil pessoas, no outro dia a gente está num barzinho de esquina tocando na calçada. Mas a gente sempre teve uma coisa de que tanto faz estar tocando pra milhares de pessoas ou para uma mesa: o show é o mesmo, o respeito é o mesmo com o público. Você tem de não ter frescura. Tem de tratar as pessoas bem.
Trinta anos fazendo música, fazendo arte. Mas só que é o seguinte: a gente é uma banda de rock, mas a gente transita legal. Além da galera do rock, do blues, no meio da galera da música brasileira, da MPB. A gente já fez várias trilhas sonoras para peça de teatro, curtas-metragens, projetos para escolas.
O POVO - Queria saber até onde a música te levou. Os lugares que você visitou, as pessoas que conheceu por causa da música.
Marcelo Renegado - Sim, sim, conheci muitas pessoas massa. Pessoas doideiras, tanto artistas como pessoas do público se tornaram amigas. De música, aquele show do Edy Star, uma figuraça, uma honra pra gente ser convidado para fazer na Praça Verde do Dragão, lotada. Ele contou várias histórias e o show foi porreta. Tocamos com o Marcelo Nova também, fizemos banda de apoio pra ele. Com o Serguei num show chamado "Woodstechno", lá em Belém do Pará, no meio de uma reserva florestal.
O POVO - Você fez questão de citar várias vezes a sua família, o nome de cada um. Você toca com seu irmão e falou várias passagens da história da humanidade. Claramente você gosta de história. Eu quero saber se você tem orgulho da sua história, da história que você construiu.
Marcelo Renegado - Claro que eu tenho, claro que eu tenho. E a nossa família é muito importante nessa trajetória. É uma espécie de alcateia, tá todo mundo junto sempre, uns cuidando dos outros. Eu acho isso fundamental. E, como qualquer família, tem atritos, tem briga, mas ao mesmo tempo a gente se ama e no final dá tudo certo. E na música são 30 anos. Eu tenho orgulho desses 30 anos. Os Beatles duraram dez anos e é a banda mais famosa do mundo. Estamos perdendo, por enquanto, só pros Rolling Stones. Por enquanto... O Mick Jagger que nos aguarde.
O POVO - Como começou essa paixão sua pela história do Raul Seixas?
Marcelo Renegado - Aquela irreverência do Raul chamou muita a atenção da gente. Depois, quando a gente começou a se aprofundar mais, eu via as letras, aquela coisa filosófica, meio metafísica e, ao mesmo tempo, falando de forma muito simples. Eu acho isso o suprassumo do compositor, quando ele consegue passar uma mensagem profunda de forma simples. Você comunica às pessoas que não tem é estudo acadêmico ao mesmo tempo sem deixar dever a nenhum doutor. E a sonoridade! Aquela coisa rock and roll, que o Raul sempre foi muito ligado nos anos 1950 e eu também sempre gostei muito. São influências paralelas.
O POVO - Dessas filosofias, frases, da história do Raul, o que é mais importante pra ti?
Marcelo Renegado - Eu não gosto muito de definir assim por que cada momento tem sua importância. Mas sem dúvida "Metamorfose Ambulante" é fantástica. Fala de forma simples e, ao mesmo tempo, abrangente, grandiosa. E o Raul tem várias fases, cada disco é uma coisa diferente. Tem aquela fase mais esotérica, do início dele com a parceria do Paulo Coelho, e ele mesmo estava ligado nessas coisas mais esotéricas, de discos voadores e tudo mais. E também ligado à magia, feitiçaria. Teve a que falava de coisas mais do cotidiano com outros parceiros, como o Cláudio Roberto, que faleceu recentemente (em 2022). E o Raul foi um dos primeiros, se não o primeiro, a misturar declaradamente baião com o rock, naquela "Let me sing, let me sing". Claro que tinha influências do próprio Luiz Gonzaga, do blues. Era um cara que tinha aquele arquétipo do roqueiro, mas era além dos rótulos também. Agora, claro, era um músico limitado musicalmente. Ele não tocava muito guitarra, mas o arcabouço todo, o compositor, a postura, a onda toda fazia Raul ser quem é.
O POVO - O que é o lado bom e o difícil de fazer rock no Ceará?
Marcelo Renegado - O lado bom é a gente estar feliz e permanecer um pouco mais jovem por causa disso. O rock and roll é fonte da juventude, né? Eu conheço vários amigos que estão barrigudos, carecas e olhando pro chão, com os ombros baixo, sabe? Às vezes com os bolsos cheios de dinheiro, mas não estão fazendo o que gostam. Eu, na maioria do tempo, não consegui muito dinheiro, mas consegui vários momentos felizes. Você tem de enfrentar arma na cara, mais de uma vez, querendo intimidar você. Levar calote, o cara fugir com uma grana. Mas também tivemos várias outras coisas massa, de conhecer muita gente boa, muita gente legal, tanto artistas como pessoas do público. Pessoas que se tornaram como da família também. Os amigos são a família que a gente escolhe. Tem uma galera que acompanha a gente, que curte mesmo de verdade e isso é muito gratificante. Isso é bom demais.
No dia 13 de julho, os Renegados se apresentam na Estação das Artes, como parte das celebrações de 30 anos de carreira. O show gratuito conta com participações de Cristiano Pinho, Felipe Cazaux, Leonardo Vasconcelos, Yane Caracas, Marília Lima, Claudine Albuquerque e Cia. Antique Soul.
Renegados lançaram quatro discos - "Sem froteira" (2001), "A essência" (2003), "Além dos Rótulos" (2012) e "Pra se sentir vivo" (2018) - e um DVD - "Banda Renegados Além dos Rótulos Ao Vivo" (2015). Eles também estão presentes no Youtube, Facebook e Instagram (@renegadosalemdosrotulos).
Nesta entrevista, Marcelo Renegado passeia pelas memórias da infância em Tabuleiro do Norte, interior do Ceará, a juventude em Fortaleza e a chegada ao mundo da música quando fundou com o irmão, Ricardo, a banda que se tornaria famosa, Renegados. A conversa aconteceu na casa dos músicas, no bairro Paupina, refúgio entre o passado, o presente e o futuro.
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