Logo O POVO+
Preto Zezé: "O Brasil precisa de um novo repertório"
Reportagem Seriada

Preto Zezé: "O Brasil precisa de um novo repertório"

Conselheiro da Central Única das Favelas (Cufa) fala sobre identidade, empresas, ESG, política, além de destacar o papel das favelas na Economia atual do País

Preto Zezé: "O Brasil precisa de um novo repertório"

Conselheiro da Central Única das Favelas (Cufa) fala sobre identidade, empresas, ESG, política, além de destacar o papel das favelas na Economia atual do País
Tipo Notícia Por

 

Já pensou ouvir no mesmo minuto e ao mesmo tempo Racionais MC's, Raimundo Fagner, pagode, buzina de moto, vendedor ambulante, conversa entre vizinhos e crianças brincando? Essa é a realidade de centenas de pessoas que moram e vivem na Favela das Quadras, localizada no meio da Aldeota, bairro que concentra grande população com poder aquisitivo em Fortaleza.

Foi justamente nesse território, que resistiu a muitas batalhas, sobreviveu ao fim de comunidades e que hoje tem um Código de Endereçamento Postal (CEP), onde nasceu Francisco José Pereira de Lima.

Anos depois ele se tornaria o Preto Zezé das Quadras e, posteriormente, o Preto Zezé da Cufa (Central Única das Favelas). Atualmente é líder das agendas das favelas junto ao setor empresarial e político no País.

Nsse mesmo espaço, nas ruas apertadas das vielas por onde mal passam carros é que a equipe do O POVO caminhou ao lado de Preto Zezé, 47, ex-lavador de carros, hoje, ativista social, empresário e conselheiro da Cufa, para rememorar as lembranças afetivas.

Sempre que precisa rememorar suas origens, Preto Zezé, 47, retorna nas quadras para ver a mãe e a comunidade(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Sempre que precisa rememorar suas origens, Preto Zezé, 47, retorna nas quadras para ver a mãe e a comunidade

Durante a pandemia comandou e mobilizou líderes comunitários de todo o Brasil elevando a atuação da Cufa de 870 favelas para 5 mil. Preto Zezé afirma que deseja ver o fim das favelas, mas enquanto isso não ocorre, luta para uma vida digna e por direitos humanos nesses territórios. 

Agora, o ativista social sabe que o tema favela, nomenclatura validada nos 17 países onde a Cufa desenvolve atividades, caminha para um novo reposicionamento diante das empresas, do poder político e  da sociedade como um todo. Encontrou o tom certo para transitar entre todos esses mundos.

E orgulha-se de ter feito parte a mudança da imagem das favelas dos noticiários de violência e pobreza para estar em cadernos como Economia, Moda, Tecnologia, Educação, Política e Conhecimento. Hoje, faz parte do conselho de várias empresas e compõe o Conselho de Desenvolvimento Econômico, Social e Sustentável, o Conselhão, do Governo Federal.

Dona Fátima tem mais três filhos e uma filha, além do Preto Zezé e orgulha-se que não "perdeu" nenhum(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Dona Fátima tem mais três filhos e uma filha, além do Preto Zezé e orgulha-se que não "perdeu" nenhum

Acompanhe a seguir entrevista ao O POVO, Preto Zezé relata a importância da sua mãe, dona Fátima, que até hoje vive nas quadras e não quer sair de lá; da relevância desse território na sua formação e para manter a identidade de quem é, sobre agenda das favelas junto aos empresários e políticos, governo Lula, ESG e novos projetos. Confira.

 

 

O POVO - Em suas palestras, você  sempre reforça que veio da Favela das Quadras em Fortaleza. O que esse espaço representa?

Preto Zezé - Geograficamente representa a gente ter um lugar no mapa, porque estamos num lugar que é o segundo pedaço de terra mais caro do do Ceará. E como a dona Ana (senhora que passou na rua durante a entrevista) falou, aqui era tudo mato, puxadinho de barraco e lama.

Poder continuar a história a partir daqui, porque muita gente não teve a mesma sorte, nem falo de ter perdido a vida como aconteceu com muitos, mas de comunidades e lugares que foram banidos do mapa, foram transferidos ou tirados mesmo.

Nas caminhadas pela favela das quadras, na Aldeota, em Fortaleza, Preto Zezé é abordado pelos moradores que o conhecem desde criança(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Nas caminhadas pela favela das quadras, na Aldeota, em Fortaleza, Preto Zezé é abordado pelos moradores que o conhecem desde criança

Tem matérias antigas, que coloquei no meu livro, em que a imprensa colocava as Quadras como um lugar sujo, transmissor de doenças, lugar de violência. O João Roberto (senhor que vimos na caminhada pelo local) mandava as cartas, escrevia a mão e ia deixar nos jornais para sair como direito de resposta.

Ele era um líder à época. Então, você vir daquele tempo do matagal, fazer isso e ter um CEP aqui, em um lugar onde tem os colégios dos filhos dos ricos, gestores e grandes empresários morando, as torres de televisão... Aqui é uma área superprivilegiada e você continuar geograficamente é importante demais.

O POVO – E do ponto de vista emocional?

Preto Zezé – Também é importante, porque uma pessoa de favela, uma pessoa preta cresce sem referências, porque ninguém de onde você veio está vindo de lugar algum. Na minha época você não tinha expectativa de ver pessoas do lugar de onde veio em campo nenhum, assim o rap é a primeira frente.

Porque é no rap que pessoas como eu encontram um lugar para ter expressão, entretenimento e capacidade de reivindicação, de comunicação e de identidade. Por isso o rap é mais próximo da gente.

Preto Zezé e o amigo de infância Foca (Ronildo Vidal), 45, corretor de seguros, orgulham-se do destaque que conseguiram alcançar nos negócios  e na vida pessoal(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Preto Zezé e o amigo de infância Foca (Ronildo Vidal), 45, corretor de seguros, orgulham-se do destaque que conseguiram alcançar nos negócios e na vida pessoal

Emocionalmente representa tudo, porque são as configurações, as amizades, os aprendizados, o primeiro beijo na boca e as festas. E, também, as desavenças e os percalços da vida. São as privações que vivi que também educaram para uma porrada de coisas. É a nossa escola, nossa raiz, na nossa vida.

O POVO - É importante sempre lembrar de onde veio...

Preto Zezé - Se você não sabe de onde veio, não sabe para onde vai. E essa coisa de saber de onde veio é importante. Porque muitas vezes a gente, quando sai desse território e vai para outros lugares que a referência não é o seu território, muitas vezes sinto isso, vai ascendendo, vai subindo e vai ocupando espaços que você nunca ocupou, mas o chão vai sumindo.

Muitas vezes você vai numa reunião e só tem você que veio desse lugar igual a você, você vai no restaurante só tem as pessoas iguais a você trabalhando ou estão do outro lado do balcão do lugar que ninguém vê.

No sofá da Dona Fátima, Preto Zezé, busca o afeto materno e a orientação para o dia a dia(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal No sofá da Dona Fátima, Preto Zezé, busca o afeto materno e a orientação para o dia a dia

Então, você vai se distanciando e entrando num lugar que não é mais a sua atmosfera, não é mais o seu lugar, sua referência. Assim é importante ter esse lugar como a sua referência. Sempre que eu tenho dúvida de como fazer algo, as Quadras são o meu parâmetro.

Sempre que sinto alguma coisa, venho aqui e troco ideias, vejo logo a dona Fátima (mãe do preto Zezé). Ela está sempre rindo e com bom humor, mesmo estando triste. Aí começo de novo a saber que isso é tudo e não tem dinheiro que pague essa questão. Emocionalmente é o meu de divã.

O POVO - Qual o papel da dona Fátima nesse contexto? Sempre diz que ela quem o manteve vivo já que a expectativa de vida de um jovem negro, nascido na favela é baixa...

Preto Zezé – Ela tem uma importância central, porque desde moleque meu sonho era fortalecer e devolver o que minha mãe me deu, assim como os outros. A retribuição que a gente der nunca vai ser o bastante, mas os focos são sempre de melhorar a vida das nossas mães.

É tirar sua mãe do barraco e botar ela num palácio. Dona Fátima sempre foi uma pessoa de orientação e de acolhimento e em outros momentos foi de muita punição e correção. Ela é estratégica na minha vida.

O POVO - Passou em 2015 pela perda do seu filho Malcon Jonas, de 17 anos. O que ficou dessa fatalidade?

Preto Zezé - Ficou uma série de aprendizados. Onde é que errei e acertei. Como as coisas são frágeis na vida e como a gente não está distante das coisas que a gente combate. E que a violência também me atinge. Ficam lições também de eu ter mais condições agora e ter a chance de exercer uma nova paternidade com mais elementos.

E mais experiência para eu poder passar para o meu filho, no caso o José. São lições a duras penas. É difícil ver como a juventude está morrendo cedo. Violência demais, jovens matando e jovens morrendo. É muito triste isso. A violência está muito mais perto de nós do que a gente imagina.

O POVO - Quando o Francisco José Pereira de Lima se tornou o Preto Zezé das Quadras?

Preto Zezé – Começou pela adolescência, lavar carros na rua e a pichação. Estava procurando ser alguém, ainda não sabia quem eu era. Tinha sorte, porque tinha vários espaços para eu ir e tentava me enturmar, mas com dificuldades, pois eu era um cara mais tímido, mais recuado.

O ativista social levou as necessidades das quadras para gestores municipais e entre algumas conquistas está o Centro De Educação Infantil São Vicente De Paulo(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal O ativista social levou as necessidades das quadras para gestores municipais e entre algumas conquistas está o Centro De Educação Infantil São Vicente De Paulo

Quando veio o rap ele me ajuda um pouco a entender as raivas que eu tinha na vida, as revoltas. Ele ajudou a organizar o ódio que eu tinha e politizar a revolta. O cara faz um rap contra a violência da polícia, contra as questões sociais, aí comecei a pensar... Quero também estar nesse negócio.

Aí vem o Racionais com uma ideia que me identifico como uma pessoa preta. Pensei: "Sou isso aí". E eu não sabia disso. Com 15, 16 anos de idade que fui descobrir e começou a vir um outro mundo. Viro o Preto Zezé.

O POVO - Qual era o novo mundo?

Preto Zezé - Comecei a participar do Hip Hop e da migração da rua da grande para o Hip Hop. Foi uma migração para ideia do entendimento da política. Como ela opera? Como funciona? Fui entendendo, porque que tem pobreza num canto, porque que tem desigualdade. E isso promoveu a minha própria recolocação.

Preto Zezé pautou sua carreira para mostrar as oportunidades e riquezas das favelas(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Preto Zezé pautou sua carreira para mostrar as oportunidades e riquezas das favelas

Me localizei como outra pessoa no mundo e vi que tem outros iguais a mim fazendo as mesmas coisas. Penso, pertenço a algo muito maior e percebo, nos anos 2.000, que na favela a dinâmica é bem diferente. Tem alguém que é do rap, outro da igreja, da macumba, do samba, do forró... Mas penso que quero lutar por causas e não por uma corrente cultural.

Aí quando vem a Cufa (Central Única das Favelas) é que vem essa virada, uma terceira virada. Já tinha virado o Preto Zezé quando eu descubro essa questão do racismo e da identidade negra e continuo Preto Zezé quando vem a Cufa. Porque ela conseguiu ser o ajuntamento dessas várias experiências, agregando essas várias diferenças e transformando isso num amplo movimento em que passa discutir a favela. 

O POVO - Como foi esse início?

Preto Zezé - Foi uma virada de página muito grande, só que no início da Cufa ninguém sabia que ia dar nesse lugar, eu tinha ali uma emoção e a Cufa era um sentimento, sempre foi mais do que um CNPJ e um movimento social.

O co-fundador da Cufa valoriza as novas lideranças de territórios, como do amigo de infância Foca ( Ronildo Vidal) e do Pequeno (Francisco Hilton dos Santos), presidente ad Cufa Ceará  (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal O co-fundador da Cufa valoriza as novas lideranças de territórios, como do amigo de infância Foca ( Ronildo Vidal) e do Pequeno (Francisco Hilton dos Santos), presidente ad Cufa Ceará

É um sentimento de você se sentir poderoso, se sentir capaz de ser protagonista, mas daí nessa virada 2010 para 2020 é que a Cufa amplia o seu raio, principalmente, à época da pandemia, em que o Preto Zezé passa a ser líder de grandes agendas, começa a transitar no mundo empresarial e no mundo político.

Aparecendo no mundo da comunicação, eu e o pessoal da Cufa começamos a nos posicionar e levar a favela para um lugar que a gente nunca tinha levado antes. Então é aí que Preto Zezé sai do Francisco, aquele menino invisível, tímido, sozinho e com medo e vira essa pessoa que faz parte hoje dos grandes debates na sociedade. A Cufa qualifica e amplifica tudo isso.

O POVO - O encontro com o Celso Athayde, idealizador da Cufa, foi um divisor de mundos?

Preto Zezé - Com certeza. O Celso é um cara que, não só na minha vida, mas que transforma a vida de todos. Estamos juntos há quase 30 anos, antes da Cufa. Tirando o MV Bill e a Gizza (ambos cofundadores da Cufa), talvez eu seja o cara que tem mais tempo com Celso.

No primeiro momento eu era oposição a ele, olha a loucura, achava que ele significava o Hip Hop mais alienado, vendido, comercial e tal. Depois fui vendo que na verdade eu queria estar junto do Celso, saber os códigos.

De oposição a parceiro de causa, assim é a relação de Celso Athayde, fundador da Cufa, e Preto Zezé(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA De oposição a parceiro de causa, assim é a relação de Celso Athayde, fundador da Cufa, e Preto Zezé

Porque ele estava junto ao lugar de oportunidadees, quebrando paradigmas e produzindo novos paradigmas. Acho ele um professor e um privilégio para mim ter ele comigo. 

O POVO - Hoje, como analisa que o Brasil está trabalhando a pauta favelas? O que falta?

Preto Zezé – Nós demos uma grande virada de poder pautar esse lugar como um ambiente de potência e de tirar das páginas policiais. Mudar a visão do estado de só ver problema, esforço e gasto.

E o setor privado também de não ter apenas o olhar de caridade, não que não seja importante solidariedade, mas é preciso saber que esse território produz R$ 202 bilhões de poder de consumo, somos quase 20 milhões de pessoas, ou seja, o quarto Estado.

Acabamos de lançar uma frente parlamentar com mais de 350 deputados e agora vamos criar um cenário também no Senado, já falei com o presidente Rodrigo Pacheco e a ideia é que a favela passe ao debate das grandes questões do País.

Vai ter a reforma tributária e nós queremos saber como é que vai impactar nas favelas, porque a favela ela contribui com a arrecadação, mas o retorno dessa arrecadação não vem.

Abrir um negócio hoje na favela é um problema, uma burocracia enorme. Acesso a crédito nem se fala.
Qual é realmente o nível de participação real das favelas nas questões? Não é só para o gestor ir lá e tirar uma foto e dizer que tem participação. Mas como é que isso interfere na decisão do orçamento público.

No meio de prédios e imóveis de alto poder aquisitivo está a favela das Quadras, na Aldeota(Foto: Fábio Lima)
Foto: Fábio Lima No meio de prédios e imóveis de alto poder aquisitivo está a favela das Quadras, na Aldeota

Porque é lá onde as corujas dormem e onde as coisas acontecem que está o dinheiro. Há também um movimento perigoso que a gente tem que tomar cuidado e ficar muito alerta. É que, muitas vezes, quando a gente ocupa esses espaços de poder, a gente é convidado a participar de agendas alheias. 

Mas é legal que todo mundo traga sua agenda para mesa, também é preciso ser percebido como alguém que traz uma agenda para dentro do debate público e não fica como coadjuvante do seu próprio processo.

O POVO - A pandemia foi exemplo desse protagonismo da Cufa?

Preto Zezé - Quero fazer um registro, porque muita gente só passou a conhecer a Cufa a partir daquele momento de atenção de repercussões mundiais. Não sabíamos nem o que era uma pandemia, depois vem o isolamento social e a OMS (Organização Mundial da Saúde) pedindo para todo mundo ficar em casa. 

Comunidade das quadras durante a epidemia do coronavírus entre os anos de 2020-2022(Foto: Fabio Lima)
Foto: Fabio Lima Comunidade das quadras durante a epidemia do coronavírus entre os anos de 2020-2022

A instituição trabalha com mobilização, então, ficar em casa é como desligar os equipamentos de uma pessoa que está no médico. Só que a gente viu uma coisa, como é que as pessoas iam manter distanciamento, ficar em casa e passar álcool em gel nas favelas, se não tinham nem água direito para lavar as mãos? 

A maioria dos trabalhadores, realmente, nunca tive o direito de ficar em casa, pois ali estava o trabalhador que limpava o chão e os entregadores das farmácias e outros pedidos e os porteiros e as babás nunca tiveram esse direito. As pessoas das favelas estavam extremamente expostas.

O POVO - E o que fizeram?

Preto Zezé - Pensamos que tínhamos que arregaçar as mangas. As doações das primeiras cestas básicas surgindo das comidas que a Cufa tinha nos projetos e assim nossas sedes começaram a virar centros de distribuição. E como estávamos nos territórios, a gente não faz eventos nas favelas, estamos 24 horas lá, os parceiros começaram a querer ativar entregas para um tipo de público.

Com o grupo de pesquisa da Cufa, o Data Favela identificou quem seriam as pessoas mais atingidas pela pandemia. O resultado: mulher, mãe solo, com dois ou três filhos e muitas vezes com idoso em casa, que também era outro público vulnerável.

Durante a pandemia as mulheres das favelas usavam os dados para empreender e estimular suas vendas(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Durante a pandemia as mulheres das favelas usavam os dados para empreender e estimular suas vendas

Isso se agravou ainda mais para esse público com o fechamento das escolas. A Cufa começou a pegar dinheiro e distribuir para essas mulheres, o primeiro numa plataforma do PicPay. Elas não conseguiam retirar porque não tinham acesso a dados móveis nos celulares. 

Aí vem a primeira solução, transformamos parte das doações no programa Alô Social, com o Alozão, com seis meses grátis para essas mulheres. O interessante é que elas começaram a fazer negócios dentro desses aplicativos. Costura de roupas, comida, por exemplo, trabalhos de porta-fechadas. Internet deveria ser item de cesta básica.

O POVO - O que mais perceberam?

Preto Zezé - Que a gente conseguia desenvolver várias habilidades que a gente nem sabia que tinha. E também aprendemos muito com a aproximação do setor privado, porque a gente virou a interface entre pessoas que precisavam e empresas que queriam doar para aquele tipo de público.

A sede da Cufa no Ceará fica no Bairro do Barroso(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves A sede da Cufa no Ceará fica no Bairro do Barroso

Isso foi aumentando na medida em que eu ia entregar para o meu líder no Barroso (bairro de Fortaleza) e ele conhece outro líder que está com o mesmo problema e também precisam de ajuda em outro bairro. Assim a rede da Cufa foi crescendo e crescendo e de 870 favelas no Brasil antes da pandemia, saímos com 5 mil.

Então viramos um monstro de dialogar todos os contratos de grandes empresas no terceiro setor. Quando termina a pandemia em que a gente arrecadou quase R$ 1 bilhão e atendemos quase 20 milhões de pessoas, a gente estava com várias experiências acumuladas do que é um compliance ou ESG.

O POVO - A agenda ESG está ganhando forma nas empresas. Como a temática pode potencializar as necessidades e o que é feito nas favelas?

Preto Zezé – A primeira coisa é a favela se perceber e olhar para si. No ano passado, a fundação do Fórum Econômico Mundial de Davos escolheu como empreendedor do ano um brasileiro, Celso Athayde, uma referência vinda da Favela carioca do Sapo e já foi camelô e se tornou a nossa referência nesse setor.

Então de que ESG nós estamos falando? De que ambiente de mercado nós estamos falando? Diante disso a gente reelabora e faz a nossa plataforma para ir para esse debate de ESG. As empresas estão fazendo esse reposicionamento, eu estou em conselhos, porque isso basicamente vai impactar no seu posicionamento na Bolsa de Valores.

Vai impactar no mercado europeu, que o consumidor europeu ele não quer consumir produtos que tenham trabalho escravo, de empresas que não tenham mulheres no seu comando, questões raciais. Isso é um posicionamento, que muitas vezes a empresa ou o governo fala e que parece inclusão, mas nós estamos falando basicamente sobre economia.

Para Preto Zezé, ESG deve ser visto como um setor econômico dentro das empresas(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Para Preto Zezé, ESG deve ser visto como um setor econômico dentro das empresas

O debate tem que ser nesse lugar. Um conselho para as empresas que estão trabalhando com ESG, a primeira coisa posiciona esse debate num lugar econômico. Eu chego nas empresas, às vezes, é no marketing, na responsabilidade social, na responsabilidade socioambiental e ninguém sabe onde fica esse lugar e esse lugar é de debate econômico.

Quando eu tenho mais mulheres está provado que as empresas são mais dinâmicas, quando eu tenho na diversidade mais gente negra a tendência é que os negros comprem. A população negra já produz trilhões (de reais) em poder de consumo.

Então eu vou ter que começar a discutir com esses territórios e também com as empresas para fazer um debate. As empresas não estão fazendo nenhum favor, estamos falando sobre economia, sobre receita e despesa.

Outro ponto que eu digo sempre é para que as empresas não tentem ser protagonistas de agendas que não pertencem. Esse é outro risco que estamos correndo com todo mundo querendo fazer projetos de impacto, investimento de impacto, sobre hackathon, eu abro o meu e-mail tem 90 pedidos querendo ser parceiro da Cufa, aí eu falo: "O que vocês querem? Nós queremos mobilizar a Cufa.

Mas o território já está mobilizado e dá muito trabalho isso, lidar com dinâmicas de violência nesses territórios, diferenças políticas, sociais religiosas e culturais, isso dá um trabalho danado. E estamos nesse cotidiano todo o dia. Sabendo, sentindo e ouvindo as pessoas.

Dá um trabalho manter essa capilaridade, essa vida orgânica funcionando nesse território. Quando as empresas querem chegar com suas ideias, é bom elas saberem que também temos as nossas ideias.
Tem que ser um debate sobre divisão de oportunidades e riquezas e não somente um debate sobre como enfrentar pobreza.

O POVO - Qual a nova pauta da favela?

Preto Zezé – A favela está numa pauta de tecnologia muito grande e fazendo várias coisas. Está no mundo digital, da Inteligência Artificial, dos dados e da programação. Acho que é uma pauta importantíssima que nós estamos e ninguém está se movendo também.

Também estamos num protagonismo político da favela de querer pautar a política e não só ser pautado por ela. Então a gente criou uma frente parlamentar com 350 deputados quase chegando a 370 de todos os partidos políticos.

Não é mais a favela é pauta de um fulano ou beltrano ou partido. Essas pessoas, como políticos, que vão fazer legislar em nome das nossas agendas.

O POVO - De que forma o atual governo do presidente Lula pode agir na temática das favelas?

Preto Zezé - Existem várias vantagens no governo Lula. A primeira é a responsabilidade de (re)juntar o País que continua dividido e nunca teve um trauma político tão grande com essa divisão. Ele foi eleito com percentual muito pequeno de votos. E parte não queria o Bolsonaro, mas também não queria ele.

Nessa conjuntura de forças ele tem a responsabilidade de dar a resposta para essa conjunção que não é só de esquerda. A outra é pelo acúmulo social que  ele tem, acredito que tem intimidade com o tema, mas precisa atualizar o tema para agora.

Porque as políticas sociais de 2023, mais o acúmulo de políticas que o PT tem dos seus governos, precisam estar mais atualizados com a realidade, mais informatizados. Uma nova realidade de mais protagonismo, de falar dos negócios e da fragilidade na questão do emprego.

O conselheiro da Cufa acredita que as agendas sociais do Governo Lula devem ser atualizadas para as necessidades atuais das favelas(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal O conselheiro da Cufa acredita que as agendas sociais do Governo Lula devem ser atualizadas para as necessidades atuais das favelas

Tem muita gente na informalidade e com dificuldade de acesso ao crédito e isso o Lula, pessoalmente, como pessoa e como líder, tem muita sensibilidade e perspicácia de perceber isso. Acredito que ele vai conseguir dar uma grande resposta, mas precisa atualizar o repertório.

Acho que tem que juntar as inteligências que a sociedade produziu nesse período em que o PT estava fora do governo. Juntar algumas coisas de bom que já acontecem no País e nas políticas públicas e incorporar ao seu governo.

Além de ampliar fora dos espaços já comuns de participação, ampliar o diálogo e aproximação com outros atores da sociedade que muitos deles não estão no campo da esquerda.

O POVO - Falando em governo, seu amigo Silvio de Almeida está ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania. Como estão as pautas com ele?

Preto Zezé – O Silvio é mais que um amigo, ele é meu irmão, meu amigo, meu parceiro. E por essa amizade e respeito a gente mantém um entendimento e uma responsabilidade na medida que agora ele é ministro de Estado sujeito a crítica, a questionamentos e a cobrança que antes o amigo Silvio Almeida, intelectual, não era.

E enquanto ao ministro de Estado estou colaborando com a agenda de direitos humanos. Ela é fundamental, já que os direitos sociais estão ali. Muita gente não sabe que direitos humanos são direitos sociais em um País desigual, caótico e arrasado como o Brasil. E que é preciso ter direitos humanos o tempo todo.

O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, é amigo pessoal do Preto Zezé (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil)
Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, é amigo pessoal do Preto Zezé

Nosso papel com Silvio enquanto gestor é de colaborar quando for necessário e de levar esse repertório novo para poder atualizar essa gramática já que direitos humanos são uma agenda muito estigmatizada, muito distorcida e muito levada para o espaço em que foi transformada como defesa de bandido, como algo que não é do povo.

É preciso popularizar o entendimento sobre os direitos humanos que é o direito a água, a comida, é ter dinheiro no bolso, direito a emprego digno e direito a proteger criança, gente preta, indígenas. Não tem como produzir direitos humanos sem o protagonismo ser das pessoas que estão ali na luta diária.

O POVO - Visitou muitos países falando sobre favelas. O que o Brasil tem de diferente das demais?

Preto Zezé – Há uma diferença de sotaques e de dinâmicas internas, mas os valores no geral e como as favelas são originadas é tudo mais ou menos parecido. Uma coisa interessante, quando criamos a Cufa Global, em 2015, nenhum país sugeriu mudar o nome favela.

Favela da Rocinha no Rio de Janeiro(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil Favela da Rocinha no Rio de Janeiro

Porque você tem problácion, nos países da América Latina, gueto nos Estados Unidos... As pessoas chamam por várias denominações na Europa, subúrbio, área neutra ou área escura. Eu cheguei a ver em Lisboa, por exemplo, favelas iguais do Brasil, se colocasse a foto na internet as pessoas não saberiam diferenciar.

E como o nome favela foi originado no Brasil eu até achei legal, digamos, esse reconhecimento, essa homenagem, hoje a Cufa está em 17 países, com uma tecnologia brasileira, uma invenção e inovação brasileiras. 

O POVO – E na comparação ao Ceará alguma particularidade?

Preto Zezé - Visitei as favelas do Macapá e são em cima do rio. São barracos de madeira em cima do rio com pernas, porque aí a água vem, a água volta. Elas são montadas para suportar quando o Rio Amazonas enche e quando ele baixa.

Você vai no Rio (de Janeiro) e tem uma cultura mais de morro, mas São Paulo também tem muito morro, e tem muita área plana e muita área mais distante do Centro. Já nas áreas do Nordeste, têm as favelas mais próximas a uma região de praia e as mais distantes do Centro, mas geralmente onde tem linha de trilho tem favela.

Vista geral da favela Morro Azul, na zona sul do Rio de Janeiro.(Foto: Tânia Rêgo)
Foto: Tânia Rêgo Vista geral da favela Morro Azul, na zona sul do Rio de Janeiro.

Vemos só diferenças nas distribuições geográficas, mas as dinâmicas internas, as músicas, os valores, as questões religiosas, as questões de se virar, de fazer os seus próprios negócios são dinâmicas todas iguais até porque são territórios.

Onde reina a desigualdade reina a ausência do Estado na sua forma integral e você acaba sendo um território que precisa sim de organização para que aqueles territórios se vejam como território que podem sugerir alternativas e produzir soluções para que a gente consiga fazer com que esse ele inexista.

Quero ver o fim das favelas, mas enquanto elas existem, enquanto elas não acabam nós vamos lutando para manter a dignidade dos moradores desses territórios.

O POVO - Como anda seu lado empresário?

Preto Zezé – Tenho participado de conselhos de empresas em áreas estratégicas, administração, consultivos e de diversidade e tentando levar essa agenda para lá para produzir uma relação diferente do setor privado com as favelas. Tentando tornar o setor privado mais dinâmico, mais includente e diverso.

Tentando entender como é que as receitas são divididas com os territórios e a gente não fica só numa agenda de carência e de dificuldade desses territórios. Na linha de negócios de impactos, criação de empresas sociais para terem novos sócios.

Já na minha área pessoal de negócios, continuo sendo consultor e estou escrevendo dois livros. Estou numa agência, a Mynd, que é dirigida pela Fátima Pissarra e pela Preta Gil, e com a minha empresa de produção de eventos, produzindo várias coisas, entre elas um documentário.

O POVO – Do que se trata o documentário? Lança esse ano? E os livros?

Preto Zezé - O documentário é sobre algumas lutas que a gente fez aqui no Ceará e que servem de exemplo para o para o País. deve ser lançado ano que vem. Sobre os livros um é um sobre a nossa trajetória na pandemia, “Favela mais forte que o vírus”.

E o outro se chama “Constrangimento pedagógico - vivência do racismo pega em flagrante”, esse é em parceria com a Djamila Ribeiro. Estava querendo lançar em novembro, mas no corre-corre a gente vai lançar só no semestre que vem também.

O POVO - Você está envolvido com o evento Expo Favela? Por que decidiram torná-lo nacional?

Preto Zezé – A Expo Favela surgiu bem depois da pandemia porque a gente notou que a fragilidade, a informalidade estava grande demais. Paralelo a isso, e como efeito colateral, e na contramão disso, também estavam surgindo muitas iniciativas de soluções nas favelas.

Muita gente criando muita coisa e a gente via de novo os setores falarem como é que a favela tinha que ser, como é que a favela tinha que fazer. Existe um campo enorme de soluções sendo produzidas, de iniciativas que estão acontecendo e que eles não têm espaço.

A Expo Favela surgiu em 2022, em São Paulo, e a partir deste ano está acontecendo em vários estados. Em Fortaleza será em outubro(Foto: )
Foto: A Expo Favela surgiu em 2022, em São Paulo, e a partir deste ano está acontecendo em vários estados. Em Fortaleza será em outubro

Então o Celso (Athayde) idealizou para gente produzir um encontro de empreendedores do asfalto com as favelas e a Cufa, como era a rede de capilaridade, virou a parceira estratégica e social da época, porque ela que tem a capilaridade no território de trazer e convocar esse público.

A gente realizou a primeira em São Paulo, no World Trade Center São Paulo, em 2022, e foi um impacto muito grande com 33 mil pessoas. As empresas olharam as favelas de outro jeito. Com esse impacto a gente decidiu nacionalizar.

Nacionalizar para quê? Porque a gente viu que em maior ou menor escala isso está acontecendo no País inteiro. Como desdobramento desse novo olhar para o empreendedorismo periférico, já saiu uma escola de negócio em parceria com a Fundação Dom Cabral (FDC), em que os empreendedores vencedores da primeira etapa São Paulo já estão lá.

O POVO - Como será o evento em Fortaleza e a sua expectativa?

Preto Zezé – Já temos um número de confirmados bem significativos da área artística, empresarial, social, política e pública. Temos Ministérios confirmados, presidentes de bancos, grandes empresários como Abílio Diniz, Luiza Helena Trajano, comunicadores como Luciano Huck e Lázaro Ramos.

Uma das primeiras moradoras das quadras, dona Ana (Rufino Lopes), 80, é só emoção ao rever o filho ilustre das Quadras(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Uma das primeiras moradoras das quadras, dona Ana (Rufino Lopes), 80, é só emoção ao rever o filho ilustre das Quadras

Muita gente da música como Tico Santa Cruz, pastor Kleber Lucas, Racionais, Edi Rock, Dexter. Parte social de Fortaleza como a Katiana Pena que tem um projeto de escola de dança (Instituto Katiana Pena – IKP). Além de secretários e lideranças, e projetos de várias áreas, desde a gastronomia a moda, games, comunicação, educação...

Acredito que o desdobramento será um grande movimento que dará visibilidade para que favelas sejam olhadas sempre como um ambiente de potência e não mais um ambiente somente de carência, de problemas.

O POVO - Quais os próximos trabalhos?

Preto Zezé – Estou lançando uma escola de qualificação chamada Favela Edutec. Estamos muito preocupados com o vácuo que tem para qualificar e atualizar a formação da tecnologia nas favelas. Você tem aí a questão dos dados, do marketing digital, da Inteligência Artificial e a programação.

São áreas de alta rentabilidade do mercado de trabalho. Eu, a Cufa e a Digital College elaboramos uma nova proposta pedagógica para atuar somente em território de favela e vamos no mercado agora buscar parceiros. Vamos lançar na Expo Favela em outubro, a partir do Ceará. E aí o mundo é o limite.

O POVO – O que falta realizar?

Preto Zezé - (Silêncio) Nossa....todo o dia me envolvo em uma coisa nova.....(pausa). No momento o Zezé quer ajudar a dona Fátima a ter uma longevidade boa, bacana. Ela não quer sair das quadras é impressionante. Tenho também planos para o José (filho do Preto Zezé) e essa coisa da família. De tentar cuidar da família com mais tempo, cuidar de mim também. 

Meus amigos estão me convencendo a fazer música com eles. Estou sem tempo para isso porque música eu sou um cara muito exigente, você tem que fazer bem feito. No trabalho espero poder contribuir com mais redes e com lideranças novas que estão vindo na Cufa. 

Entre os desejos para o futuro, Preto Zezé quer contribuir mais com as novas lideranças da Cufa(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Entre os desejos para o futuro, Preto Zezé quer contribuir mais com as novas lideranças da Cufa

O Brasil precisa de um novo repertório, a gente precisa juntar pontas e construir agendas comuns. As pessoas estão precisando. Continuamos com os 33 milhões de pessoas passando fome, continua o desemprego e ainda vai demorar um pouco para economia entrar em algum eixo que melhora a vida da população.

Quero ampliar espaço de poder para as favelas ocuparem mais espaços que nunca ocupamos e melhorar a vida das pessoas de onde eu vim e que ainda estão lá.

 

Mais notícias de Economia

O que você achou desse conteúdo?