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Marilena Lima, repórter de vida atravessada por seca, violência e pioneirismo
Reportagem Seriada

Marilena Lima, repórter de vida atravessada por seca, violência e pioneirismo

Marilena Lima foi pioneira nos canais de TV locais, nas rádios, até como árbitra de futebol. Hoje prefere atuar nos bastidores, é empresária na área de audiovisual. Também ajuda outras mulheres, ao contar o que viveu em um relacionamento abusivo do passado e da sobrevivência à seca no Sertão

Marilena Lima, repórter de vida atravessada por seca, violência e pioneirismo

Marilena Lima foi pioneira nos canais de TV locais, nas rádios, até como árbitra de futebol. Hoje prefere atuar nos bastidores, é empresária na área de audiovisual. Também ajuda outras mulheres, ao contar o que viveu em um relacionamento abusivo do passado e da sobrevivência à seca no Sertão
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Marilena Lima está afastada das reportagens policiais há quase 15 anos. O rosto e nome dela deram muita audiência a emissoras cearenses de rádio e TV. Mas enquanto era reconhecida nas ruas quase como celebridade local — repórter do Barra Pesada, programa da TV Jangadeiro que ficou no ar por mais de 25 anos, extinto em 2020 —, Marilena Lima vivia um drama dentro de casa. Ela foi mais uma vítima de violência doméstica, cometida pelo primeiro marido.

"Fiquei sete anos casada com ele. E foram os piores anos da minha vida", define, sobre o que passou. Era um ciúme doentio, descreve, de um militar que bebia muito, andava sempre armado e formava ali a escalada e o cenário para um desfecho pior. Seria uma tragédia iminente, pelo que conta. A agressão física não aconteceu, mas o risco foi até o dia em que Marilena decidiu fugir de casa levando apenas as duas filhas, ainda pequenas. As meninas tinham 4 e 5 anos. A repórter, tão conhecida naqueles tempos, não quis esperar para ser mais uma manchete do assunto. Era início dos anos 1990, ainda não havia a Lei Maria da Penha, a rede de proteção às vítimas era muito menor. 

Ao O POVO, Marilena chorou e bateu na mesa mais de uma vez. Comentou do que fez e do que poderia ter feito melhor. Criticou-se e opinou sobre coisas que considerava erradas nos bastidores da TV. Lembrou dos dias de fome na infância, da casa de taipa que morava, do pai e da mãe de pouca instrução, da própria formação escolar tardia. Dos primeiros empregos, do pioneirismo como primeira árbitra de futebol e do carisma, dos tempos de vendedora das lojas Mesbla, que a levaram para o primeiro microfone disponível — foi uma das, ou a primeira mulher na reportagem esportiva local.

Marilena disputou duas eleições. Não foi eleita, mas teve mais votos do que gente que ganhou mandato à época. Gosta mais do que faz hoje, como produtora audiovisual independente. Afirma que não sente saudades do dia a dia da reportagem nas ruas, embora defenda o jornalismo mais do que antes. Estudou, formou-se, buscou qualificações e quer ensinar o que aprendeu. Mas a violência doméstica precisava ser o título da matéria desta sua entrevista. 

 

 

O POVO - Seu nome de batismo não é Marilena?

Marilena Lima - Não, é Marilene Ferreira Lima. Mas não sou chamada de Marilene desde criança. Toda a vida foi Marilena. Em casa era Lena.

OP - E você nasceu onde?

Marilena - Nasci em Solonópole, quando era um município muito maior territorialmente. Mas fui me criar no município de Acopiara.

OP - De uma família de que tamanho?
Marilena - Nós éramos nove, agora somos oito. Eu era a segunda dos filhos.

OP - E como foi sua infância por lá?

Marilena - Eu cresci em Acopiara, numa localidade da zona rural. Quando conheci a sede do município acho que eu já tinha uns 15 anos.

OP - Você não saía da localidade?

Marilena - É, porque não existia estrutura de nada. Não existia escola, não existia transporte. A gente vivia mesmo bem isolado, sabe? Naquele Brasil daquele período da ditadura militar, a realidade do Sertão era a pior possível e que muita gente hoje não sabe como era. Acham que era normal a vida de todo mundo e não era. Eu e meus irmãos não tínhamos acesso a escola. Não existia escola. Meu pai fez esforço próprio pra gente tentar ser alfabetizado através de uma professora leiga. Ela só sabia ler, ia lá tentar que a gente pudesse aprender a ler, pelo menos juntar algumas palavras. E seguimos assim, sem escola, sem perspectiva. Eu consegui ir juntando essas letras. Não tinha escola e a gente tinha um único livro em casa. Era a Bíblia. Foi nela que aprendi a ir juntando as letras. E foi esse livro que eu li mais de uma vez, na ausência de outros livros que seriam também necessários.

OP - Você leu na infância e depois leu adulta?

Marilena - Não na infância. Quando eu tive a capacidade de juntar letras, formar palavras, acho que eu já tinha uns 12 anos.

Mesmo longe da TV há uma década e meia, Marilena Lima ainda é reconhecida pelas pessoas na rua(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Mesmo longe da TV há uma década e meia, Marilena Lima ainda é reconhecida pelas pessoas na rua

OP - Você então se educou sozinha?

Marilena - Foi praticamente isso. A minha mãe sabia ler e escrever, mas a gente precisava ter escola, como todo mundo precisa. Eles (os pais dela) fizeram esse esforço pra que a gente aprendesse, mas a pessoa que estava dando aula também não tinha nenhuma formação, preparação para isso. Mas foi o que nos veio e foi isso que nos valeu. Eu, meu irmão e minha irmã mais próxima, nós três aprendemos, os mais velhos. E daí em diante, para os outros, foi muito mais difícil.

OP - Qual era a localidade?

Marilena - Santa Luzia, em Acopiara.

OP - Posso perguntar sua idade?

Marilena - Claro. Estou com 65 hoje. Nasci em 1958.

OP - Então na sua infância, com a ditadura instalada no País, vocês viam isso também lá em Santa Luzia?

Marilena - Ditadura feroz. E não, ninguém sabia. Nesse período a gente não sabia o que era governo, não sabia quem era governo. A gente não sabia de nada. Estávamos ali naquele universo fechado, mas uma coisa a gente sabia: que a gente não precisaria saber mais e que não deveria questionar nada.

OP - Mas isso era dito pra vocês?

Marilena - Era. Mas a gente foi ter essa percepção também depois. Porque nos períodos mais terríveis de seca, por exemplo, a gente lembra de situações absurdas. (Nesse momento ela chora, ao lembrar da decisão tomada por seu pai) Como quando o meu pai um dia saiu de casa, desesperado, porque a gente não tinha o que comer. E ele disse que tinha que se juntar a outras pessoas que iam invadir o comércio da cidade, pra poder trazer alimento para casa. E ele saiu dizendo que não sabia se voltaria. E a gente ficou muito apavorada com essa possibilidade de ele realmente não voltar. Meu pai já tinha uma idade bem avançada. Quando casou com minha mãe, ele já tinha 56 anos. Minha mãe tinha 33 anos. Ele era viúvo.

OP - Você tinha outros irmãos do casamento anterior dele?

Marilena - Tinha uma irmã. A gente teve pouca convivência com ela, embora fosse bem legal. Ela era casada. Já era adulta. Os filhos dela eram todos mais velhos que a gente. Ela morreu de parto. Tivemos pouca convivência.

Marilena nasceu em rincão de Solonópole e se criou no sertão de Acopiara(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Marilena nasceu em rincão de Solonópole e se criou no sertão de Acopiara

OP - Vocês tinham perspectiva de quê naquele momento? Pensava em qual futuro?

Marilena - A gente não sabia se tinha futuro. A gente só ficou com muito medo (volta a chorar). Mas felizmente naquele dia aconteceu alguma coisa. O movimento era grande, era de trabalhadores rurais, de pessoas que viviam na mesma realidade.

OP - Havia a possibilidade de invasão à cidade, de saquearem o comércio por causa da fome?

Marilena - Por fome. Era uma realidade terrível.

OP - Você tinha que idade?

Marilena - Eu acho que uns 9, 10 anos. E essa foi uma das coisas que mais marcaram a gente, nossa infância, do tempo que a gente podia compreender alguma coisa. Porque meu irmão mais velho é só um ano mais velho que eu, a minha irmã mais próxima é só um ano mais nova que eu, e os demais, acho que eles não tinham ainda essa compreensão. E eram momentos difíceis. A minha mãe, por exemplo, estava passando por um momento difícil porque ela teve parto de gêmeos. E exatamente nessa fase o meu irmão morreu. E ele morreu por desnutrição (volta a chorar). Ele estava com um aninho e morreu assim. A gente não tinha a dimensão disso. A gente não sabia se existiam culpados. A gente não sabia de nada. Então são essas lembranças terríveis que a gente tem.

OP - E naquele dia seu pai voltou?

Marilena - Ele voltou e conseguiu trazer algum alimento.

"A gente trabalhava muito na roça. Meu pai dividia as atividades. Os meninos iam para o serviço mais pesado, de puxar a enxada, cavar covas para plantação, e a gente ia semeando"

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OP - Aconteceu o saque ao comércio da cidade?

Marilena - Não. Houve um acordo do governo da época, não lembro bem o que era, mas que foi liberado mantimento. E ele voltou pra casa, sim. A gente nasceu e cresceu nesse lugar, nessas condições. Morávamos numa casinha de taipa pequenininha, que tinha uma portinha na frente e outra atrás. Era muito pequena. Meu pai era uma pessoa incrivelmente protetora, cuidava da gente de uma maneira impressionante. E a minha mãe também. Os dois buscavam de todo jeito o cuidado com a gente. Mas quando vinha a providência divina, que a gente tinha tempo bom de inverno, era muito bom viver lá. Porque tínhamos o nosso próprio meio de sobrevivência do trabalho. Se não fossem as secas, a gente tinha vivido com menos sofrimentos.

OP - Você também foi uma criança do Sertão que ajudava os pais na roça, pegava em enxada?

Marilena - A gente trabalhava muito na roça. Meu pai dividia as atividades. Os meninos iam para o serviço mais pesado, de puxar a enxada, cavar covas para plantação, e a gente ia semeando.

OP - E dali já veio para Fortaleza?

Marilena - Não. Eu vivi lá até os 14 anos. Aí fui para Acopiara, para a sede da cidade. Fui para estudar. Fui para a casa de uma tia, ser babá de um neto dela. E tinha uma dificuldade absurda, porque se eu não tinha qualquer antecedente escolar, não podia ingressar numa escola pública.

OP - Você sabia até ler, mas não tinha um histórico escolar. E como fez?

Marilena - Não tinha. A minha tia era uma pessoa conhecida na cidade, era dona de uma pousada, um hotelzinho. Era uma pessoa que tinha certa influência e conseguiu, através do diretor de uma escola, me matricular. Mas eles colocaram uma condição: tem que passar pelo Mobral O Movimento Brasileiro de Alfabetização foi um programa federal criado no governo Costa e Silva com a promessa de erradicar o analfabetismo em uma década. Mesmo com ampliação e superestrutura, as metas ficaram longe de serem atingidas. Foi extinto em 1985 para ter o encaminhamento e que possa continuar. E assim foi feito. E eu ainda entrei nessa escola, mas chegou numa situação, eu tive vontade de sair, de procurar outro canto, de ir mais longe, foi quando eu decidi vir para Fortaleza. E de novo eu fui para a casa de uma pessoa da família, uma prima. Eu acho que estava com 16 anos.

 

OP - Mas veio com a mesma intenção de estudar ou já de trabalhar?

Marilena - Principalmente para trabalhar, porque eu ia precisar me manter. Aí veio a outra barreira: “Você tem certificado de primeiro grau?”. Não. Mas eu saí, pelejei, vim para casa dessa prima, mas pouco tempo depois eu precisei sair de lá e eu: "E agora como é que eu vou fazer?" Mas sempre fui assim, quando dizia que tinha que fazer alguma coisa, encontrava caminhos para isso. A gente morava lá no Presidente Kennedy. De lá eu saia e vinha a pé até o Centro de Fortaleza, à procura de emprego. E assim eu arranjei o meu primeiro emprego. Eu ia pela Sargento Hermínio. Não me lembro a rua, mas era uma rota do ônibus. E assim eu consegui o primeiro emprego, sem que ninguém me pedisse o certificado de primeiro grau.

OP - Onde foi?

Marilena - Numa loja de móveis (se emociona). Vendas. Era a loja Quilar, em frente a um prédio da Gás Butano, na rua Major Facundo. Entre o Itaú e uma sede do Procon, por ali. Fui trabalhar nessa loja de móveis e eu fazia de tudo. E fiquei. (A dona) Era a dona Regina (volta a se emocionar), uma figura incrível.

OP - Você está se emocionando ao voltar a esse tempo.

Marilena - Sim, estou. Quando trabalhei lá um tempo, veio um representante dos móveis que a gente vendia na loja. E ele disse que estava precisando de uma pessoa no escritório regional, função administrativa. Ele já me conhecia. Eu vendia muitos produtos dele, ele disse? "Eu preciso de você no meu escritório". Falei para dona Regina, e ela disse que seria o que fosse melhor pra mim. Fiquei com dona Regina acho que uns dois anos.

Marilena teve passagens marcantes por várias rádios e TVs; entre elas, a então AM do Povo(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Marilena teve passagens marcantes por várias rádios e TVs; entre elas, a então AM do Povo

OP - Ali já aparecia uma verve comunicativa?

Marilena - Já tinha. Fiquei lá no escritório e tal, quando de repente abrem inscrição para a loja Mesbla. Falei para o seu Flávio que queria ir fazer esse teste. Ele disse que não tinha problema. "Se você sair, eu vou ficar triste, mas não tem problema". Aí eu fui, fiz o tal do teste da Mesbla e também não me pediram o certificado. Quando eu entrei lá, comecei a vender, era muito bom. Tinha um período que eles faziam uns estandes no meio da loja, “traz a Marilena, traz a Lena”. Eu ia e foi assim que acabei conhecendo duas pessoas do rádio que estavam lá comprando, clientes. Não conhecia ninguém de rádio, mas ouvia rádio, era louca por rádio. Ele disse “você é muito comunicativa, você tem que ir pro rádio, você tem que fazer rádio".

OP - Quem era ele?

Marilena - Eram o Dino Boy e o Ramon Paixão. “Você tem que ir pro rádio. A gente tem um programa lá na rádio de Maranguape, vamos lá”. Os dois falaram. Pra ver o programa e de repente se identificar. E eu fui e no dia que eu vi o programa, que negócio legal, fiquei assim. Fui só conhecer. “Você gostou?”. Gostei. “Pois se você quiser participar do programa, a gente não tem recurso, mas tem umas atividades interessantes que você poderia participar. Você pode dar o horóscopo, mas pode ir entrevistar pessoas. Você não quer fazer isso, não?”. E eu disse quero. “Pois vai ter um jogo de futebol do campeonato intermunicipal”. E eu sabia lá o que era intermunicipal. Aí era para entrevistar as pessoas. Tá, e eu fui. E comecei a fazer isso.

OP - Foi sua primeira atuação como repórter e como repórter esportiva?

Marilena - Foi. Com isso, a rádio Dragão do Mar, aqui de Fortaleza, com o Itamar Monteiro, escutou, “essa menina fazendo futebol”, ele ligou para lá pedindo o contato da menina.

OP - Você lembra qual foi esse dia, a primeira vez que pegou um microfone de rádio?

Marilena - Eu não lembro. A rádio era a Iracema, de Maranguape. E eu vim para a Dragão porque eles me escutaram falando de futebol. “Nós queremos que você venha fazer o programa de esporte com a gente aqui em Fortaleza".

"eu não tinha feito o primeiro grau completo, eu precisava fazer o supletivo. Eu tinha tentado uma vez, aí me casei e foi tudo complicado. O marido era esquisito, ciumento, eu não podia estudar"

 

OP - Pioneiro, nunca uma mulher havia atuado no rádio esportivo?

Marilena - Não, não tinha.

OP - Isso na rádio Iracema foi muito antes da Dragão?

Marilena - Não, porque tudo era muito rápido. Eu fiquei na Mesbla, de segunda a sábado, e na rádio Iracema de Maranguape, só aos domingos. Quando peguei o contrato da rádio, aí saí da Mesbla. Quando estava na Dragão, o pessoal da rádio Uirapuru escutou e me chamou. Era para o programa do Edson Silva. “A gente quer conversar com você, quer que você vá para a rua conversar com as pessoas”.

OP - O microfone já não lhe assustava mais?

Marilena - Não, eu já estava tranquila. Mas talvez eu tenha ficado menos de um ano. A Uirapuru já me botou para me movimentar, ir às feiras livres conversar com as pessoas. Quando estou na Uirapuru, a rádio AM do POVO surgiu.

OP - Em 1982.

Marilena - Exatamente. E a rádio O POVO foi aquele estrondo de audiência. E me chamaram para cá. Talvez eu tenha ficado uns dois anos.

OP - Você já tinha adquirido uma boa experiência de rádio?

Marilena - Tinha, mas eu precisava ter o registro radialista. O Cid Carvalho, que era o diretor da Rádio Iracema de Maranguape na época, disse que para ter o registro, a carteira vai ser assinada. Eu não tive remuneração, mas tinha uma carteira assinada que me deu o acesso ao registro de radialista. E a partir da rádio Iracema, eu já estava com registro, trabalhei nas rádios aqui de Fortaleza. Na rádio AM do POVO, vim para a mesma missão, de reportagem. Foi incrível. Na época, o Tertuliano Siqueira é que era o chefe de reportagem da rádio. Eu fiquei aqui um tempo bem interessante. Depois saí, me casei. Porque vim um período, saí, depois voltei e fiquei mais tempo. E a partir desse trabalho aqui na rádio O POVO foi que a TV Jangadeiro me chamou para lá. Na época, (o chefe de jornalismo) era o Tancredo Carvalho. Esqueci de uma coisa: quando estava aqui na rádio O POVO, a TV Verdes Mares me chamou. Fui pouco mais de um ano. E depois voltei pra cá.

Um dos feitos da carreira de Marilena foi nos campos, sendo pioneira como repórter esportiva e árbitra(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Um dos feitos da carreira de Marilena foi nos campos, sendo pioneira como repórter esportiva e árbitra

OP - Mas os seus estudos, que havia parado, como fez para terminar?

Marilena - O que eu cuidei de desenvolver foi a minha leitura. Eu lia muito. Nesse ínterim, eu me casei. Quando fui para a TV Verdes Mares, eu também não tinha diploma. Eles me escutaram no rádio, o que eles queriam era isso. Teve uma visita aqui do Aureliano Chaves, então vice–presidente da República. Quando ele chegou, foi aquela luta para uma entrevista, e eu fui a primeira que consegui entrevistar naquele tumulto enorme. Entrevista feita aqui pela rádio O POVO. E foi o chamariz para a Verdes Mares. E lá tinha um pessoal incrível. O chefe era o Edmundo Maia, um jornalista da maior importância. Foi ele que me chamou. Eu fiquei trabalhando nesse período lá, mas na época veio uma ação muito pesada do Sindicato dos Jornalistas, que não aceitava que alguém estivesse fazendo televisão sem ter diploma. O Edmundo ficou muito triste, “lamento tanto, eu não queria perder você”. "Mas não tem problema, não se preocupe, tô tranquila", eu disse. Com pouco tempo voltei aqui para rádio O POVO. No rádio eu podia ficar, aquelas histórias de empresa de radiodifusão.

Quando eu estava aqui, foi quando foram criar o Barra Pesada, eu fiquei trabalhando aqui na rádio O POVO e na Jangadeiro. Fiquei um tempo nas duas, depois só lá. Quando eu cheguei na Jangadeiro, veio uma oportunidade ímpar. Porque naquele tempo não era eu não querer uma faculdade, é que não dava para ter acesso, não tinha essa possibilidade. E eu não tinha feito o primeiro grau completo, eu precisava fazer o supletivo. Eu tinha tentado uma vez, aí me casei e foi tudo complicado. O marido era esquisito, ciumento, eu não podia estudar. Então eu, "não, deixa eu me segurar por aqui. Daqui a pouco eu toco esse barco". Quando chego na Jangadeiro, foi diferente. "Agora eu vou fazer as coisas do jeito que eu quero". Fiz supletivo de 1º e 2º graus. Fiz lá na Parangaba, morava lá. Agora eu quero fazer uma faculdade. Porque parecia que eu tinha a intenção de invadir uma área do jornalismo, mas eu era radialista. Mas era uma empresa de radiodifusão, e isso foi uma guerra enorme. E as TVs defendiam que os radialistas pudessem trabalhar. E vou fazer uma faculdade.

Isso aconteceu quando veio a ideia, lá no governo Lula (2003–2010), de abrir a possibilidade de acesso às universidades. Eu disse à Jangadeiro, eu vou fazer a faculdade. Eu fiz jornalismo, e a Jangadeiro bancou. Foi uma empresa como não existiu na minha vida. Porque a gente tinha bolsa integral para os filhos. Elas tiveram a melhor educação possível. E eles bancaram também a minha faculdade. Comecei a fazer publicidade, mas fui para o jornalismo. Aí chegou o momento que eu já não estava mais aguentando a sobrecarga do trabalho.

OP - Você ficou quanto tempo no Barra Pesada?

Marilena - Catorze anos, seguidos. Eu pedi pra sair da Jangadeiro.

OP - Para ser candidata?

Marilena - Fui candidata. Tinha que se desligar para concorrer.

OP - A sua popularidade lhe puxou para essa possibilidade de um mandato político. Qual era o tamanho disso? Faz tempo que você saiu do vídeo e muitos podem não lembrar.

Marilena - Naquela época essa popularidade era uma coisa impressionante, em qualquer lugar que eu chegasse. Impressionava pela maneira como as pessoas reagiam. E a própria emissora sabia muito disso. A gente tinha uma audiência e eu tinha uma contribuição grande nessa audiência. Mas chegou um momento que eu estava realmente cansada, preciso dar um tempo e tal. Eu resolvi me candidatar. Fui candidata a vereadora. Eu tive quase 4 mil votos, por um partido que não moveu uma palha pela minha candidatura. Eu tirei 3.600 e poucos (chegou a 3.626 votos). Meu partido era o PTB, mas eu não tive nem sequer recurso para fazer santinho, nada.

OP - E como fez na campanha?

Marilena - Eu fiz simplesmente andando na rua. Nós recebemos algum material, mas muito pouco, porque o partido disse que não tinha recurso, não tinha como ajudar. Quando voltei da candidatura, até tentei voltar para a Jangadeiro, mas não estavam contratando. Eu fui para a TV Diário, fiquei quatro anos. Era repórter e apresentadora de vez em quando, substituindo pessoas. Mas aí chegou o momento, eu vou sair mesmo. Teve momentos que não dava para a gente lidar com determinadas coisas, entendeu? Agora eu tenho que dar outro rumo à minha vida.

OP - De virar a chave?

Marilena - Virei, total. Aí eu abri a minha empresa, minha produtora, a M Pro Filmes, e fui para o audiovisual.

OP - Era isso ou você chegou a cogitar outra coisa?

Marilena - Não, eu me defini para isso. E nessa hora que eu me defini, eu tenho que me voltar para isso aqui. Consegui sair da televisão, uma coisa que fiquei durante tantos anos. Cheguei a voltar para a Jangadeiro, passei mais um ano, mas não dava. Agora vou fazer o que tenho que fazer, abri a produtora e fui trabalhar. Foi aberta em 2010.

OP - O seu último momento na TV, você lembra o ano?

Marilena - Foi em 2009, na Jangadeiro, quando voltei e fiquei esse um ano somente.

Das passagens pela TV, a mais marcante foi como repórter do Barra Pesada, extinto programa da TV Jangadeiro(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Das passagens pela TV, a mais marcante foi como repórter do Barra Pesada, extinto programa da TV Jangadeiro

OP - Já faz 15 anos que você está fora do vídeo. Tem saudade do jornalismo, do hardnews?

Marilena - Não. Eu tenho saudade sabe do quê? Eu gosto do jornalismo, para mim é uma coisa apaixonante, mas eu não tenho saudade de fazer, de ir para o dia a dia. Eu me desliguei da TV de uma maneira, estava tão determinada a isso, que não tive qualquer sofrimento. Não tive saudade de jeito nenhum. Eu pensei em fazer algum programa de TV, cheguei a fazer projeto. O nome do projeto era TV Cidadania, mas tinha um custo e não quis. O outro era um programa na linha de variedade e entretenimento. Mas não me frustrei por não ter entrado. E aí eu percebi que estava precisando me desligar de vez dessa coisa.

OP - E o que você faz hoje?

Marilena - Hoje eu faço um mundo de coisas. Eu sou conselheira estadual de cultura, representando audiovisual no CEPC (Conselho Estadual de Política Cultural). E no CMPC também (Conselho Municipal). Estou terminando mandato agora, a eleição foi ontem (dia 30 agosto). Já é o segundo mandato. No Estado, estou no primeiro. O mandato é de dois anos.

OP - E a sua vida fora do Conselho?

Marilena - Tô na produção audiovisual, aí fui estudar. Quando decidi abrir a produtora, fui fazer a faculdade de cinema, na Unifor. Fiz uma pós-graduação em gestão cultural de cinema, em Sobral, na Vale do Acaraú. Eu me dediquei ao audiovisual. Trabalho também com um projeto que é o CinemArt, que a gente leva uma oficina de cinema para escola pública do Interior, com parceria através das secretarias de educação e cultura. É geralmente para alunos de zona rural. E a partir dessa oficina a gente produz um curta-metragem com os alunos. Eu fico fazendo esse tipo de trabalho, também trabalho vídeo institucional. Trabalho com VT para publicidade. Vou fazendo todas essas coisas.

Mas esse período dos conselhos, eu tô sendo muito consumida. Não existe remuneração. Desse jeito é que tenho levado a vida. Procurei estudar, me dediquei muito ao audiovisual. Passei pelo laboratório do Porto Iracema das Artes, onde desenvolvi um roteiro de longa-metragem, que é o "Mulher da Zona", sobre a história dos bordéis antigos da Fortaleza boêmia. É uma ficção onde tive a tutoria do Karim Aïnouz, do Sérgio Machado, do Marcelo Gomes (cineastas brasileiros). Foi uma experiência ímpar. De lá para cá, fiz cursos de tudo que você imaginar de audiovisual. E hoje, quando eu preciso fazer alguma coisa, se não tiver ninguém por perto, mesmo que eu sempre prefira trabalhar com uma equipe, mas se não tiver ninguém por perto, eu uso uma câmera, eu filmo, eu edito também.

OP - Tem o seu pioneirismo como a primeira árbitra do futebol cearense. Como aconteceu? Você se formou, tem a qualificação.

Marilena - Foi, mas eu não recebi o diploma porque eu não tinha o certificado de primeiro grau.

OP - Você fez o curso, mas não recebeu por não dispor do seu histórico escolar?

Marilena - Isso. Na verdade, eu recebi, mas ele não era reconhecido pela Federação Cearense de Futebol. Eu recebi o meu diploma de árbitra de futebol das mãos do Arnaldo César Coelho Ex-árbitro, apitou final da Copa do Mundo de 1982, na Espanha, ex-comentarista de arbitragem da Globo , num evento aqui em Fortaleza. Mas foi assim que eu fiz. Como eu não tinha o certificado de segundo grau, o meu curso não foi reconhecido, minha atuação não poderia acontecer, não tinha o reconhecimento da Federação Cearense de Futebol.

OP - E o que te levou a fazer o curso de arbitragem naquela época?

Marilena - Veio exatamente do período em que eu comecei lá no rádio esportivo. Eu já estava em Fortaleza, na rádio Dragão do Mar, quando conheci o professor Alzir Brilhante. Ele era referência da arbitragem. “Por que você não vai fazer o curso de árbitra, menina?”. Eu já estava nos campos fazendo reportagem.

Hoje, Marilena Lima trabalha "por trás das câmeras" como produtora audiovisual(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Hoje, Marilena Lima trabalha "por trás das câmeras" como produtora audiovisual

OP - Nenhuma mulher tinha feito?

Marilena - Ninguém. Na verdade, a gente não tem um levantamento muito preciso, mas acho que fui a primeira do Brasil. Eu e as meninas que fizeram na minha época. Elas terminaram, mas algumas não quiseram se envolver. Mas teve uma que atuou bastante. Logo após essa história do curso, que eu estava participando de intermunicipais, dos jogos não oficiais, das preliminares, não podia ir para uma partida oficial da federação, foi aí quando eu me casei. Com um militar (enfatiza, com um tom de lamento, chega a bater na mesa).

OP - O seu casamento foi uma ruptura, recuou muito o que havia conquistado?

Marilena - É, foi. Nessa história do meu casamento…

OP - Por que você bateu na mesa ao falar que seu ex-marido era militar?

Marilena - Porque era uma cabeça bem limitada. Fiquei sete anos casada com ele. E foram os piores anos da minha vida.

OP - O casamento interrompeu o que talvez fosse uma trajetória esportiva muito mais atuante?

Marilena - Sim, sim.

OP - Foi árbitra só de jogos amadores?

Marilena - Sim.

OP - Eu li no site do jornalista Rafael Luis (Verminosos por Futebol) que foi em 1984.

Marilena - Deve ter sido por aí. Na época que fiz o curso, enquanto tentavam me escalar em algumas partidas, mesmo nas preliminares, existia uma reação horrorosa do presidente da Federação, que era o coronel (Josenéas) Barroso. Ele tinha uma coisa assim, que ele não aceitava. Reagia mesmo, sabe? Eu pensando o que eu poderia fazer, mas quando eu via aquele desestímulo... não vou ficar quebrando a cabeça por isso. Apitava as partidas nos bairros da periferia. Mas tinha também muito reflexo do período que a gente vivia. Ainda estava na ditadura. Isso foi antes de 1985. Uma vez fui apitar um jogo no campo ali da Granja Portugal, bem na praça. E o cara foi lá e cometeu uma falta inicialmente, depois ele foi de novo, falta pesada, e eu dei cartão vermelho para ele. Sabe o que ele fez? Baixou o short e fez xixi, ali.

OP - Ali não foi agressão só a você, mas à mulher, de modo geral?

Marilena - Exatamente, à mulher. Mas enfim…Mas tiveram outras assim dentro do próprio grupo dos árbitros. Porque eu treinava junto na mesma atividade física dos árbitros da Federação Cearense de Futebol. Tinha um que era árbitro de futebol, e era capitão da Aeronáutica, que era um ser estúpido. Ele fazia muita questão de tentar mesmo humilhar. E um dia na atividade, a gente estava sentado, um exercício de perna, ele passou e pisou na minha perna. Pisou propositadamente, “desculpa, desculpa”. Mas fez de propósito. Enfim, tem dessas coisas.

OP - Você lembra de histórias do tempo da reportagem policial?

Marilena - A gente teve muitos momentos difíceis. Um deles foi um momento em que a gente encontrou uma criança desnutrida, a Meirinha. As pessoas ligaram dizendo que tinha uma criança à beira da morte e que ninguém conseguia ajudar essa criança porque a mãe não deixava. Ela tinha 9 anos, desnutrição absoluta, uma situação desesperadora. Ela ainda andava, mas era só pele e osso. A mãe tinha problema mental. A falta de assistência, o cuidado, de tudo. Não tinha quem fosse lá para cuidar daquela mãe, o estado que ela estava, muito menos da criança. Incutiram na cabeça da mãe que a menina tinha um espírito do mal e que ninguém podia mexer com ela. Na época a gente recebeu essa denúncia. Porque as pessoas ligavam para a TV, para a rádio. Hoje todo mundo faz no celular, ninguém sabe o resto da história. Quando cheguei lá, fiquei chocada ao ver o estado da criança. A mãe grita logo para que ela se recolha, a gente tem essa imagem dela, do momento em que a gente chega na casa e ela tá paradinha. E você tem a impressão de que ela não se move mais, mas aí ela se afasta. Quando a mãe grita, a gente mostra a situação desesperadora.

Depois de uma educação tardia e uma carreira de autodidata, Marilena se formou em jornalismo nos anos 2000(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Depois de uma educação tardia e uma carreira de autodidata, Marilena se formou em jornalismo nos anos 2000

OP - Você compara a sua época com a dos programas policiais de hoje? Sobre o que é ou não é sensacionalismo? Hoje como documentarista, você tem uma formação, faz essa análise sobre hoje e aqueles dias?

Marilena - Na época a gente foi muito tachado de sensacionalista. O Barra Pesada, como chegou primeiro… Aliás, primeiro foi o Mão Branca (programa policial dos anos 1980, transmitido nos fins de semana, no fim de noite). Mas o Mão Branca era lá no meio da noite, estúdio, madrugada. A gente veio para um horário nobre, durante o dia, 12 horas, e era muito forte. A audiência era uma estupidez. A gente chegou naquele tempo a atingir mais de 50 pontos de audiência. Batia tudo e o pessoal tratava o Barra como sensacionalista.

Eu não posso dizer que os programas policiais de antes não tinham o que a gente pode chamar de sensacionalismo, mas o Barra Pesada, ele não era aquele programa que ia lá só para mostrar um cadáver, para explorar ou ridicularizar uma pessoa ou uma vítima de algum tipo de violência, entendeu? O Barra Pesada não tinha esse rumo. O Barra teve um quadro, que era o que puxava a audiência, chamado "Os Santinhos do Dia". Que mostrava as pessoas que tinham sido presas. Aquilo era uma estupidez, a audiência. E o que era? Era a delegacia plantonista, aquele monte de gente, “e aí, o que que aconteceu? E as pessoas falavam.

Naquele tempo eu não tinha formação em jornalismo, eu não tinha a noção de determinadas coisas, que quando eu adquiri a formação é que eu fui compreender. Mas, de toda forma, eu tinha uma coisa minha mesmo, que eu nunca permiti de o delegado chegar e “mostre esse e mostre esse”. Se um dissesse “dona Marilena, não quero aparecer”, pois tire ele. E isso me levou a atritos com alguns delegados. “Tem que mostrar esse vagabundo”. Pra mim, não. Se ele não quer aparecer, não vai aparecer. Isso foi muito polêmico, “ah porque é sensacionalista. Veio o Ministério Público e por fim foi tirado do ar. E adorei quando foi tirado porque não era coisa que eu me sentia bem de fazer. Mas eu estava dentro de um programa, era dirigida e eu fazia o que era do programa.

OP - E o que você compara com os programas de hoje?

Marilena - O de hoje é que não tem mais um caminho que o Barra Pesada fez, que era esse de ouvir as pessoas, dar voz, de procurar ajudar, fazer ponte entre a população e o Poder Público, para resolver coisas que eram urgentes. Isso o Barra Pesada fazia e quem criticava o Barra não percebia isso. E hoje o que eu acho pior é a falta de aprofundamento, de contar história. Só citar, mostrando coisas assim, só faz pouco. Mas ninguém atenta para o papel fundamental que o jornalismo poderia cumprir nessa questão da violência. Porque hoje se trata da violência só para números, para contar quantos homicídios, quanto isso, quanto aquilo. Mas ninguém está indo buscar questões tão urgentes que precisam ser trabalhadas em relação à violência.

OP - Você cobriu uma outra era do crime. Hoje, distante do vídeo e mais qualificada profissionalmente, como vê o crime atual, que leitura faz da violência nas ruas, com mais chacinas, as facções, com a quantidade, a gravidade e a banalidade dos acontecimentos?

Marilena - Olha, eu acho que é uma situação que passa por muitas coisas. É preciso que a gente pense em muitas coisas em volta para poder compreender o que está aí. Quando se fala em facções, a gente sabe que existem, que hoje isso é uma realidade, mas que isso tudo que estamos vivendo hoje não aconteceu por acaso. Houve, digamos assim, uma omissão para que isso acontecesse. E antigamente eram as gangues. E crimes aconteciam, atribuíam a isso, e essas coisas não eram apuradas, e aconteceram crimes que não foram de facções e que não foram as gangues, mas foram atribuídos. E isso foi criando esse cenário que a gente tem hoje.

Marilena Lima reconhece que os programas policiais podiam ser considerados sensacionalismo, mas diz que o Barra Pesada não explorava ou ridicularizava uma pessoa ou uma vítima de algum tipo de violência(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Marilena Lima reconhece que os programas policiais podiam ser considerados sensacionalismo, mas diz que o Barra Pesada não explorava ou ridicularizava uma pessoa ou uma vítima de algum tipo de violência

OP - Esse personagem cresceu dessa ausência de punição?

Marilena - Ele foi fermentado no meio dessa situação. E o papel da imprensa? O papel da imprensa, não é de agora, não é de quando eu comecei, tem alguns fatores que favoreceram muito isso. Nós tivemos um período de imprensa policial e as páginas policiais sempre favoreceram a situação das lendas urbanas que vão surgindo. Se a gente parar para pensar no tempo do Fernando da Gata (Fernando Soares Pereira, criminoso cearense, acusado de homicídios e estupros, morto em maio de 1981 após cerco policial que durou 20 dias em Pouso Alegre-MG), era visto em Minas Gerais, depois em São Paulo. Como se o cara viajasse, se teletransportasse, uma coisa absurda. A falta de condição de refletir sobre essas coisas acabava alimentando isso na população de uma maneira impressionante.

OP - Era a mitificação, como foi com o Mainha (Idelfonso Maia Cunha, pistoleiro cearense, assassinado em 2011), o Lampião…

Marilena - Exatamente. O Mainha é um outro exemplo. Ele surge num contexto de interesse em projeção política por parte do Moroni Moroni Torgan, delegado federal que obteve projeção política a partir da ocorrência da prisão de Mainha, em 1988. Deputado federal em vários mandatos, chegou a ser vice-prefeito de Fortaleza entre 2017 e 2020 , que foi ser Secretário de Segurança Pública, com o objetivo muito claro e definido. Ele surge exatamente naquela história. A prisão do Mainha, aquele fenômeno do secretário gaúcho bonito, que falava bonito e tal. E Moroni nunca prendeu Mainha. Quem prendeu Mainha foi o (delegado civil Francisco) Crisóstomo e o (delegado Luiz Carlos) Dantas, sem nenhuma operação de estardalhaço. Eles saíram lá sozinhos e não houve qualquer reação do Mainha. O Mainha respondeu para o Crisóstomo. “Mainha, você está preso”. “Se fosse outra pessoa eu não sei, mas com o senhor”, entendeu? E se entregou sem reação nenhuma. Ele foi trazido.

Aí onde entra a história da imprensa, aquela repercussão imensa. Teve revista nacional atribuindo 86 crimes de pistolagem ao Mainha. E o que aconteceu? O Mainha foi condenado acho que por cinco crimes. E dos cinco, quatro porque ele confessou. Eu vi no dia que o Mainha entrou no presídio a primeira vez, todo elegante, no linho, e as pessoas batendo o microfone na boca do cara, a ponto de ele recuar, “vocês estão me machucando”. Ou seja, existia essa sede de criar e de fabricar essas coisas. A imprensa tem muito essa contribuição na construção.

Trazendo a história do Mainha para a realidade de hoje, a gente ainda tem a história de quem é preso, dentro de uma circunstância, que é quem é pobre, quem não tem advogado, quem é preto. Quem tem tatuagem, que mora lá na periferia, entendeu? Tem pessoas com esse perfil que não cometem crime, mas o crime no Brasil é atribuído a um perfil. É assim que essa maioria compõe o sistema carcerário, é assim que essa maioria também é que é alvo dos assassinatos nas ruas. Porque é muito difícil uma denúncia... os jovens foram abordados, eram bonitos, bem vestidos, a abordagem é outra. Isso passa pela necessidade de uma mudança total na formação dos policiais. Nós temos a maioria dos policiais, daquela linha de frente, que saem das comunidades pobres. E é preciso que haja uma formação que esse policial consiga entender que, lá do lugar de onde ele veio, e que ele sendo uma pessoa digna, também tem muitos jovens com dignidade e que precisaram só ter oportunidade. Ele precisa chegar na comunidade dele, e nas outras comunidades, entendendo que lá estão pessoas como ele.

OP - Hoje há candidatos a policiais que chegam com mais formação.

Marilena - Acho que hoje a gente já tem uma mudança. Isso vem sendo lento. Porque a formação precisa mudar. Porque a formação tá errada, já transforma até alguém que poderia ter uma outra postura mais humanizada. A formação policial torna o indivíduo violento. Porque eles são formados numa situação que sofrem violência. Eles são oprimidos.

Ao O POVO, Marilena revelou ter sobrevivido a um relacionamento abusivo com o ex-marido(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Ao O POVO, Marilena revelou ter sobrevivido a um relacionamento abusivo com o ex-marido

OP - Como avalia sua atuação nos programas policiais daquela época? Algum mea culpa?

Marilena - Eu acho que a gente tem muito o que pensar, do que poderia fazer de forma muito melhor. Mas nós também passamos por esse processo de não ter um caminho que oriente. A maior parte das pessoas que não passou por uma formação em jornalismo, elas não têm essa noção do que a gente deve (fazer).

OP - Da formação ética?

Marilena - Sim, isso, da formação sobre a ética. E isso agrava. Eu acho que tinha muita intenção, vamos dizer assim, do meio de comunicação que tem aquele programa com o objetivo só de audiência. E de querer tirar do repórter, daquela pessoa que vai lá para a rua, tirar o que ele quer para dentro do programa. Eu passei por isso, entendeu?

OP - De gerar audiência?

Marilena - De gerar audiência. Eu passei por isso numa situação. Não vou citar o nome, nem vale a pena, mas de a pessoa chegar e dizer “Marilena, mas essa história dá pra tirar muita coisa. Como é que você vai tratar uma situação como essa…”. Porque o homem tinha sido traído pela esposa, não sei o que lá, e eu não lembro se foi suicídio. Mas ele disse “olha, eu vi uma reportagem incrível sobre um cara desse. E a mulher chegou e disse ‘olha, cara, eu te botei foi chifre, não foi um par de asas’”. E eu disse você acha que eu vou me enquadrar nesse seu modelo e fazer esse tipo de abordagem?

OP - Esse tom apelativo cruzou o seu caminho o tempo todo?

Marilena - Havia em alguns programas a intenção de que a coisa fosse feita para chocar.

OP - Na expressão bem popular: de espremer para sair sangue?

Marilena - Exatamente isso. No Barra Pesada tinha esse critério, a gente não mostrar cena com sangue. Isso veio depois de uma grande luta, inclusive de medidas do próprio Ministério Público. E a gente muitas vezes chegava em locais que a situação era dramática e tal, e a gente não mostrava por essas medidas, mas outras emissoras iam lá e mostravam. “Como é que não mostra? Tá perdendo audiência”, mas passou a ser uma postura do programa, principalmente com a chegada no Nonato Albuquerque (jornalista, ex-apresentador do programa). Isso foi fundamental.

Jornalista Marilena Lima fala de memórias da cobertura policial pelos meios de comunicação(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Jornalista Marilena Lima fala de memórias da cobertura policial pelos meios de comunicação

OP - Queria tocar num assunto já iniciado, a partir do momento que você falou do seu primeiro casamento. Você responde se quiser, caso se sinta à vontade para falar, e pode parar, se não quiser expor algo que é particular. Você sofreu violência doméstica naquela época?

Marilena - Aconteceu.

OP - Você quer seguir falando sobre isso?

Marilena - Não tem problema. Na verdade, meu casamento acabou por essa situação, que é comum na vida das mulheres quando se deparam com essa realidade de relacionamentos abusivos. As minhas filhas, a diferença de idade de uma para outra é de um ano, um mês e 11 dias. O meu ex-marido, na época, ele resolveu que a gente iria embora para o Rio de Janeiro. Cheguei a ir lá, mas não deu para ficar quando eu percebi que a situação não ia ser legal pra mim, eu não ia poder trabalhar e tal. E já tinha um comportamento dele muito ciumento, muito controlador. Isso foi se agravando. As crianças já sentiam isso. Ele não chegou a me bater, a me agredir fisicamente porque eu tratei de reagir desde cedo.

OP - Não aconteceu porque você não deixou?

Marilena - Exato. Num dia teve um crime horroroso aqui no interior do Ceará, em Camocim, em que uma criança foi raptada pela babá, foi morta e jogada dentro de uma cacimba. O caso da menina Natália. Eu fui trabalhar nesse dia. Isso já vinha se arrastando. Eu vinha tentando uma separação e não conseguia. Ele persistia em continuar, eu entendia que não dava. Nesse dia eu estava lá trabalhando e, nesse ciúme horroroso, ele fez um mundo de ligações para o hotel. Na conta do telefone a gente constatou mais de 50 ligações que ele fez numa noite (bate na mesa repetidamente).

OP - Para quê?

Marilena - Para não me deixar dormir. Ele dizia "o que é, você está com algum amante aí?". Essas coisas terríveis. Ele era um militar, fazia uso de arma, ele bebia. Quando eu vim dessa viagem, estava num desespero. Quando cheguei em casa, eu entrei, peguei as minhas filhas e saí correndo. Porque ele tinha se afastado, saído para ir comprar uma bebida. Peguei as meninas, entrei num ônibus, sem bolsa, sem dinheiro, sem nada. E vim para o Centro da cidade e fui para o escritório do doutor Marcos de Paula Pessoa, que era o advogado na época que estava me ajudando, já nessa luta de tentar a separação. Ele foi chamado lá. "Olhe, estamos tentando fazer a separação com calma e você está quebrando essa regra. A Marilena veio aqui e a partir de agora temos que definir isso".

OP - Não havia ainda a Lei Maria da Penha?

Marilena - Não havia a Lei. E o resultado é que de lá saiu a decisão, o acordo, de que teria que haver a separação. Eu fui para o advogado porque ele estava tentando tocar o processo. Ele (ex-marido) não tinha advogado, nada. Mas quando ele voltou pra casa acabou quebrando coisas. Nesse mesmo dia. Ele já tinha bebido antes. Ele tinha destruído coisas. O advogado disse que eu iria ligar para a mãe dele, no Rio de Janeiro. Ele tinha muito medo da mãe, “talvez fosse bom você ir embora para o Rio de Janeiro, ficar com sua mãe. É o melhor caminho para resolver, do contrário vamos ter que recorrer a outra maneira”.

OP - Você já era conhecida?

Marilena - Já. E a partir disso ele foi embora para o Rio de Janeiro.

Marilena Lima é de uma família grande, com nove irmãos. Aprendeu a ler no início da adolescência(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Marilena Lima é de uma família grande, com nove irmãos. Aprendeu a ler no início da adolescência

OP - Qual o nome das suas filhas?

Marilena - Patrícia e Priscila. Hoje elas têm 36 e 37. Elas tinham 4 e 5 anos.

OP - Você contava muitas histórias sobre isso e estava passando por isso dentro de casa?

Marilena - Vivendo isso. E era muito angustiante, sabe? Porque era você estar na rua lidando com essas coisas, lidando com essas violências e encontrar todo dia dentro de casa. E finalmente ele foi embora e fiquei com as minhas filhas e foi a melhor coisa que eu fiz. Porque pelo menos sobrou alguma coisa para ele conviver um pouco com as filhas. A Patrícia, que é bióloga, hoje mora nos Estados Unidos, a mais velha. A Priscila mora em São Paulo, é médica. Mas a convivência delas com ele é muito pouca.

OP - Você tem netos?

Marilena - Não.

OP - Você surpreendeu com essa sua história particular. Mas, a partir da sua infância em Acopiara, da formação escolar tardia, do pioneirismo na arbitragem, no rádio esportivo, da atuação com a reportagem policial, da formação em cinema e agora produzindo documentários, como você documentaria a sua história?

Marilena - Eu acho que o momento mais importante, de contribuição, é o momento atual. Estou numa outra frente.

OP - Você gosta mais da Marilena de hoje do que a de antigamente?

Marilena - Não é gostar, mas se eu pudesse fazer alguma coisa e pudesse documentar é a importância do que a gente está fazendo hoje. Porque nós vivemos num lugar em que estamos em volta das coisas mas não entramos nelas. É uma superficialidade muito grande. E o campo cultural é um cenário para se pensar isso. Nós temos uma situação em que os desfechos pautam o jornalismo de modo geral, mas ninguém vai procurar as causas disso tudo. E nessa luta do setor cultural, sou representante do audiovisual, o nosso papel, como conselheira e não individual, é a construção de políticas públicas. Isso tem um papel tão fundamental na vida das pessoas. Quando se aponta uma câmera e um microfone, só está indo buscar outras questões: a violência, para essas comunidades ficarem na mesma situação estigmatizada, e essa questão é muito urgente. É preciso que se entenda isso. E nessa convivência no Conselho, com a experiência de todas as linguagens artísticas, é que tem algo que a gente precisa acordar. Que elas possam conviver dentro de outros espaços, que não fiquem separadas, que não sejam limitadas.

A qualidade do que se produz nessa comunidade, a diversidade cultural, a convivência entre as culturas diversas nos territórios. Porque isso é uma questão muito séria e isso é a raiz da violência que vem de longe. Essa invisibilização dessas pessoas. Porque lá nessas comunidades é onde tem um monte de jovem e não jovem que tem coisas boas demais a serem mostradas e isso não é valorizado. Acho que esse é o momento que a gente precisa se mobilizar e fazer algo para que isso possa mudar. Fortalecer a cultura passa muito por isso. Os caminhos somos nós que temos de apresentar.

 

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