Em 1976, quando nasceu, o pai estava preso, a avó exilada e o avô assassinado. A menina dava os primeiros passos e, no vocabulário, saltavam palavras como “anistia”, mesmo que ela não entendesse a dimensão daquilo que repetia.
Maria Marighella nasceu em família atingida diretamente pela ditadura militar e precisou se forjar coletiva desde o início. Neta de Carlos Marighella, guerrilheiro comunista morto pela polícia em 1969, ela encontrou na avó, Clara Charf, e no pai, Carlos Augusto, ecos da história do homem que chegou a ser considerado “inimigo nº 1” do País.
Hoje, a atriz baiana é presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte) e vereadora em Salvador pelo Partido dos Trabalhadores (PT) – licenciada por conta do cargo de gestão no Ministério da Cultura.
Em entrevista às Páginas Azuis do O POVO, ela aborda os desafios de reconstrução da cultura brasileira e mergulha na história da família a partir das raízes do avô: “Ser Marighella é um chão”.
O POVO - Quando você percebeu o impacto que o seu sobrenome carrega?
Maria Marighella - Não existe um marco. Eu nasci em 1976, então eu sou uma pessoa desse tempo. O que é 76 na vida do País? É aquele momento em que a ditadura militar brasileira precisava arrefecer, porque havia um imperativo. Obviamente aqueles que foram responsáveis por sustentar por tanto tempo o golpe civil-empresarial-militar do Brasil faziam com que essa abertura que era iminente acontecesse sem a presença do campo progressista brasileiro que estavam reivindicando democracia, justiça, liberdade e anistia.
Então, em 1975, aconteceu no Brasil uma operação que se chamou Operação Radar e prendeu meu pai, Carlinhos, na Bahia. Prendeu também dezenas de comunistas da Bahia, mas ela é nacionalmente conhecida pela prisão, tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog (1937 - 1975). Meu pai foi preso, minha mãe (Nivea Marighella) estava grávida. Eles entram na casa onde moravam meus pais e prendem meu pai.
É impossível não associar os tempos que se sucederiam sem esse marco. É alguém que nasce com seu pai preso. A minha avó estava exilada, num exílio forçado por conta do assassinato do seu marido, o meu avô assassinado. Então essa não é uma conjunção simples para nascer, né?
No filme de Wagner Moura (“Marighella”, de 2019), eu faço uma participação muito curta, mas aquela cena que eu faço, do momento em que Carlinhos, meu pai, foi acordado no meio da noite por jornalistas para que ele fosse na redação reconhecer o corpo do seu pai, aquela cena existiu mesmo. Ele vai vendo numa máquina, como se fosse um Telex, algo assim da época, a imagem do pai dele vai se fazendo na frente dele, aquela cena que ficou na história, aquele registro jornalístico. Então meu pai e o tio vão para São Paulo enterrar, mesmo todo mundo dizendo que ia ser um perigo, que eles seriam presos, que haveria mais violência. Mas eles vão. Para mim, isso é muito marcante, porque aquela presença, daqueles dois, de algum modo, dá um pouco de dignidade àquilo que é tão indigno, né? A violência institucional, a violência de estado. Tão indigna. Aquele gesto de coragem.
Portanto, em 1979, dez anos depois do assassinato de Marighella, no 10 de dezembro, Dia Internacional da Declaração dos Direitos Humanos, quando minha vó volta do exílio naquele 1979. Eu tinha três anos e eu tenho os flashes desse momento. Por isso, eu digo que minhas primeiras palavras eram “anistia”, “restos mortais”. Minha mãe disse que eu gritava bem pequena: “Assim que se vê a força do PC” (Partido Comunista). Claro, eram palavras repetidas. Então, não houve um dia, uma consciência, né? É alguém formado numa conjuntura.
O POVO - Apesar do cenário doméstico complexo, a arte já se fazia presente?
Maria - Quando eu me tornei atriz, dizia que eu fui fazer teatro porque, como na minha casa todos os problemas eram coletivos e sociais, no teatro era onde podia ter os meus próprios problemas. Eu dizia que era onde eu podia ser sujeito com as minhas próprias hipóteses sobre o mundo. Foi muito lindo, que num Dia dos Pais, meu pai falou assim: “Eu demorei tantos anos. Tanto, tanto, tanto, tanto para perceber que os direitos do sujeito eram tão importantes quantos os direitos do coletivo”. Em algum lugar, sempre entendi que a cultura é um espaço de cura.
A cultura é essa dimensão que transforma em sujeito, não em indivíduo, que é o quer o capitalismo, que quer nos fazer individuais, isolados, sozinhos, amedrontados, mas a cultura é aquilo que nos confere identidade, singularidade. É que nos confere a identidade de sujeito no mundo único, mas a beleza da cultura é que esse mesmo dispositivo só acontece como fenômeno coletivo. Ou seja, só existe cultura se você está articulado ao seu ethos coletivo. Então, as minhas primeiras memórias estão muito radicalmente atravessadas por essa dimensão coletiva, por essa dimensão de comunidade, pela política com um modo de habitar no mundo. As artes como esse fenômeno de promoção de cura.
O POVO - Na adolescência, bateu alguma revolta juvenil ou vontade de se distanciar do peso que essa presença política sempre teve em sua vida?
Maria - Eu nem tinha muito essa coisa de ser adolescente, sempre fui muito precoce e eu só queria fazer teatro. Eu não tive vida fora do teatro. Ainda criança, na casa da minha avó, dançava o dia inteiro. O espaço da representação, do balé, da dança, da música sempre foi muito forte. Não tive muito tempo para uma revolta. Só queria encontrar meu lugar no mundo.
Eu fiz teatro na Bahia num local que se chama Escola Experimental. Todos nós filhos e netos daquelas pessoas perseguidas estudavam nessa escola. Lá tínhamos as artes como o espaço de construção desse espaço de autoria do pensamento desse sujeito estudante.
Eu saio da escola e sigo fazendo teatro. Através do teatro, vou constituindo um ativismo, uma presença na cidade. Também no teatro eu fui constituindo as minhas próprias hipóteses. Eu digo que eu me tornei ativista da cultura antes de ser uma pessoa na política, mas eu nunca neguei. Essa coisa de ser Marighella sempre foi uma honra muito grande, mesmo com todo o sofrimento. Todos nós com a vida muito atravessada por ser Marighella, mas o respeito às decisões de Marighella, o modo como nós o víamos sempre foi uma coisa infinitamente superior a qualquer tipo de violência que nós estávamos vivendo.
Então, tinha um respeito muito grande a essa memória. Eu nasço com um avô lido como inimigo, não no meu universo, mas pelo mundo exterior. Quando, na verdade, ele é um amigo do povo brasileiro, um defensor da democracia. Nós éramos guardiões daquela memória, então tinha um pouco dessa responsabilidade, não como um peso. Me perguntam se ser Marighella é um peso e eu respondo que não. Ser Marighella é um chão, não é algo de cima pra baixo. Ele nos sustenta. Nós somos sustentados por essa convicção, essa ética. Em momentos muito difíceis, isso é um farol, uma luz a guiar. Não é algo que pesa, é algo que norteia. É ancestralidade, raiz. Foi no teatro que eu fui me fazendo um sujeito da cidade, também nos conflitos, na luta dos estudantes, na luta por mobilidade. Encontrar a cena cultural de uma cidade é muito formador.
Em 1994, quando eu entrei na universidade, eu tive um acidente de carro, um acidente muito violento. Eu fui projetada para fora do carro, eu quebrei o vidro do carro com a minha cabeça. Foi um acidente em que eu perdi meu olho, a visão esquerda, eu quebrei dentes. Eu me feri e tive um rosto totalmente deformado. Eu era muito jovem, tinha 18 anos. Era uma atriz assim em ascensão, tinha aquelas matérias com “Nasce uma Estrela”. Num dia, eu era uma atriz em ascensão e, no outro, eu tinha o rosto desfigurado. Tinha a dúvida se eu conseguiria fazer teatro novamente. Nos anos 1990, a expectativa de trabalho era fazer novela, televisão. Isso era um horizonte para que você pudesse ter sucesso, conseguir trabalhos. Mesmo para o teatro, era como se você tivesse que fazer aquilo para se projetar.
Então, aí eu mergulho ainda mais no teatro de grupo, no teatro autoral. Vou começar a produzir os meus próprios trabalhos. Decido que o teatro de grupo e o ativismo cultural seriam meu jeito de estar no mundo.
O POVO - Ser mãe te coloca num outro lugar de coletividade? Como é projetar a continuidade da sua família?
Maria - Eu sempre fui feminista. Eu sou neta de Clara Charf. Então, eu nunca pude não ser feminista, né? Para nós, em casa, ser feminista era uma condição, não era um debate. Diferente das minhas amigas, eu não tive que dizer ‘sou feminista’. Eu vivi com muita liberdade, muita abertura com meu pai ou com minha mãe, os modos como eu vivia e me relacionava com a cidade e com o mundo. Eu sempre sonhei ser mãe, sempre quis ser mãe. Bom, fiquei grávida. E ser mãe foi a primeira vez que eu me enfrentei sendo feminista. Não é sendo mulher, né? Sendo mulher, eu vivi inúmeras violências, mas sendo feminista foi um momento, talvez, de maior violência. Eu não entendi nada. Foi a primeira vez que eu não entendi absolutamente nada que estava me acontecendo. Eu demorei um pouco a entender que aquilo que eu sempre sonhei pudesse ser algo de tanto acúmulo, sobrecarga, exploração. Eu entendi que a sociedade não estava preparada para aquilo.
Primeiro a romantização da maternidade para que as mulheres aceitem sem reclamar a sobrecarga em que elas têm que produzir, porque a sociedade não abre mão de que mulheres produzam, e que elas têm que cuidar, acumulando essas responsabilidades. Como os homens estão, muitas vezes, autorizados a se liberarem, porque se espera que ele só produzam. Eu demorei muito para me refazer dessa experiência. A princípio, parecia que o conflito era eu e meu companheiro, que eu não tinha sorte ou que eu não estava preparada. Depois de um tempo, forjei um nome que se chama "maternismo", é um feminismo insurgente com a maternidade. Ou seja, eu já era feminista, mas eu tive que reinventar uma maneira de lidar com a minha maternidade. Uma maternidade feminista. Obviamente não era um feminismo que eu conhecia, ele nasceu com aquela experiência.
O que a gente pensa na maternidade é que a gente está vivendo um problema pessoal, que não tem com quem partilhar cuidados, que você não tem serviços públicos de creche ou de escola, que você ou tem insegurança de colocar na escola pública ou você tem que se endividar para pagar uma escola privada. Os dilemas parecem ser seus, pessoais. Você não acredita no trabalho doméstico, mas ao mesmo tempo você não tem alternativa, porque você não tem coletividades. De repente você está ali com uma outra mulher numa posição de subalternidade, muitas vezes fazendo aquilo que você não acredita. Diferente do que acontece hoje, quando eu me tornei mãe, há 17 anos, não existiam figuras da política. Não é que não tivessem mães na política, tinham mulheres, mães, lutadoras feministas, mas a maternidade não estava colocada na cena. Não existia mães com suas crianças sendo amamentadas no parlamento, denunciando esses aspectos.
Maria Marighella foi eleita vereadora da capital baiana pelo Partido dos Trabalhadores em novembro de 2020, com 4.837 votos. Sua candidatura é vinculada ao movimento Manifesta Coletiva, que ressalta ocupação feminina nos espaços políticos
Atriz graduada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Maria Marighella foi coordenadora de Teatro da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb). Em sua passagem mais recente pela Secretaria da Cultura do Estado da Bahia, atuou na construção e aprovação da Lei Aldir Blanc
Maria Marighella não conheceu seu avô, morto em 1969 por múltiplos tiros à queima-roupa em uma emboscada policial. Um dos líderes da resistência armada, ele era dirigente do Partido Comunista e da Aliança Libertadora Nacional (ALN)
OP - O que mais te mobilizou na decisão de enfrentar as dificuldades de ser gestora cultural, mesmo diante de tantas fragilidades do campo cultural no País?
Maria - Eu acho que o artista precisa produzir, precisa conhecer os instrumentos de gestão, de organização do seu próprio trabalho. Fazer gestão para mim é isso: ter posse das próprias ferramentas. Desde o acidente, eu entendia que eu não poderia terceirizar essa essa condição. Em 2012, eu tinha filhos pequenos e sou, de uma maneira muito inusitada, porque eu não imaginava, convidada para assumir a coordenação de teatro da Fundação Cultural da Bahia, que é a fundação responsável pela política das artes. Ela tem uma espécie de paralelismo com a Funarte. Fui tomada por uma coisa muito marcante que me transformou radicalmente, porque foi a primeira vez da minha vida inteira em que eu pude juntar a dimensão política e cultura.
Essa experiência na Bahia foi tão importante que me leva, em seguida, à Funarte. Eu sou convidada à Funarte quando Juca Ferreira volta ao Ministério da Cultura, Francisco Bosco assume a presidência da Funarte e então eu vou para Funarte para ser coordenadora de teatro, uma experiência muito curta, porque é ali no início no primeiro semestre de 2015 e aquilo só vai até maio, que é o momento em que a presidenta Dilma Rousseff, em 12 de maio, é afastada. No mesmo Diário Oficial que ela é afastada, tem ali minha exoneração. Aquele convite foi uma espécie de reconhecimento do que a gente fazia na Bahia e já estava no contexto de construção da Política Nacional das Artes, um contexto da nacionalização de uma política tão minha, tão nossa.
OP - O que representou para você esse momento da destituição da primeira presidente do País?
Maria - Eu me lembro que eu sabia que haveria o golpe, ele era iminente, a gente sentia presença, mas o dia da admissibilidade do impeachment me marcou. É exatamente o momento em que Jair Bolsonaro (PL) dedica o voto dele a Ustra (coronel Carlos Brilhante Ustra), que é não só o torturador confesso da presidenta, sujeito e objeto do impeachment, mas da prisão do meu pai. Quando o Bolsonaro dedica o voto, a gente volta à Operação Radar, o ano em que eu nasci, e ele sai daquela sessão sem qualquer questionamento. Ele saiu dali ileso, ele não sofreu nenhum processo, nenhum pedido de cassação, ele não precisa responder por falta de decoro.
Naquele dia eu sabia que o Brasil tinha ultrapassado essa linha da brutalidade, da violência institucional e que seria irreversível. Eu vivi o impeachment, voltei para Bahia. Vou me refazer na Bahia com muita dificuldade. No mesmo momento que eu volto para Bahia, eu perco minha mãe. Eu voltei para Bahia em julho de 2016, minha mãe morreu em 2 de outubro de 2016. O dia, inclusive, da eleição. Eu me lembro muito nitidamente que foi o dia em que Áurea Carolina foi eleita, Mariele Franco foi eleita. Eu me lembro desse perdimento pessoal e dessa convulsão positiva na vida do País que talvez tenha sido o primeiro gesto de reação pós-golpe, né? A primeira reação política que foi aquele monte de mulher assumindo espaços de decisão, de poder aquilo que nós depois demos o nome de Ocupa Política.
Eu volto à gestão, volto para a Secretaria de Cultura da Bahia, vou ali me refazer pessoalmente. Vou me curar desse luto. Aí os anos que se seguem é de recuperação da minha própria vida. Até que eu tomo a decisão de me integrar a esse movimento de mulheres, organizo na Bahia esse movimento que chama de Ocupa Política e, através dele, um movimento na Bahia que se chama Manifesta Coletiva, em que nós no pós-2018, na eleição de Bolsonaro, que nós precisamos inaugurar um movimento de reação na Bahia.
O POVO - O Partido dos Trabalhadores viveu períodos de incertezas. Por que se filiar ao PT e não outro partido de esquerda?
Maria - Eu me filiei ao PT com o presidente Lula preso e tive que dar todo tipo de respostas para todos os jornais de por que o PT. Eu tinha convicção. O PT representa muito para democracia brasileira como partido da redemocratização, naquele momento em que o Brasil não podia ter partido, por isso, o PT é um partido de tendências, porque ele vai reunindo aquelas forças que não estavam juntas com unidade, então por isso que ele não é um partido de da centralidade. Ele é um partido de confluência mesmo, que organiza os blocos, as tendências. Eu entendi também, sobretudo, que depor contra o antipetismo colocado na vida pública era uma marca de destituição da instituição partido. Eu achava que o antipetismo não atacava apenas o PT. Eu achava que toda a instituição partido perdia com os ataques ao PT, que toda a democracia brasileira respondia com os ataques ao PT.
OP - Mesmo como as questões internas do partido...
Maria - Sei que o PT precisa refletir as suas formas, os seus modos, qualquer instituição, qualquer movimento, qualquer organização uma hora precisa se perceber, se reorganizar, se atualizar nas lutas, nas agendas, nas estratégias. Eu tinha convicção de que eu precisava fazer isso (se filiar). Para fora, eu precisava dialogar com o antipetismo. Para dentro, eu precisava lutar contra o pragmatismo que coloca na vida pública as mesmas pautas, as mesmas agendas, os mesmos grupos, os mesmos homens, as mesmas caras. A gente precisava de gente que tivesse coragem de enfrentar essas disputas.
De 2016 até 2018, não houve um dia de descanso. Eu me torno vereadora de Salvador e, para mim, era muito nítido que, durante a eleição que talvez tenha sido a eleição mais importante desses últimos 40 anos do Brasil, a eleição do presidente Lula, que era uma eleição da democracia contra barbárie, eu precisaria me colocar nesse movimento. Nos colocamos, fizemos uma campanha lindíssima para deputada, tivemos votos, quase 55 mil votos na Bahia em 401 municípios, uma coisa assim muito surpreendente sem que a gente tivesse aquelas estratégias mais convencionais de ter vereadores, prefeitos, alianças, essa organização mais pragmática. Super legítimas, inclusive, não tem nada sobre isso.
Quando eu recebo, antes de tudo, um telefonema para ir compor a equipe da transição. Então a primeira ligação nem foi o convite de Margareth Menezes, foi uma ligação para que eu pudesse participar do processo de transição. O presidente Lula faz uma coisa muito impressionante, ele coloca 5 mil pessoas trabalhando juntas num processo de transição, uma coisa assim inimaginável, só na Cultura 500 pessoas participaram. Então tinha uma metodologia muito sofisticada de várias leituras e debates.
Um dia meu telefone liga e é Margareth me convidando para a Funarte. Foi uma emoção muito grande. Eu pensava “Meu Deus, o que é presidir uma instituição de promoção de políticas para cultura com uma ministra artista como Margareth?”. Me marca ela me dizendo assim: ”A gente precisa cuidar da nossa gente, do nosso povo, esse povo tão perseguido e atacado”. Uma das maiores preocupações da ministra era que a gente voltasse a proteger os artistas, não como beneficiários das políticas públicas, mas o meio pelo qual o direito à cultura se materializa.
O POVO - Você é a primeira nordestina nesse cargo. O que isso revela?
Maria - Ser a primeira presidenta nordestina da Funarte é, primeiro, nos comprometer com um projeto de igualdade. Não há política nacional sem o povo brasileiro na sua diversidade. Ser nordestino é também poder enunciar essa brasilidade, diversidade como dispositivo de insurgência, imaginação, de ter lugar mesmo em situações muito adversas.
Buscamos também promover a igualdade racial, igualdade de gênero, trazer a primeira diretora indígena, trazer a pauta da acessibilidade, voltar a pensar essa ideia da Política Nacional das Artes. Ou seja, essa é a nossa tarefa hoje, primeira e última. Primeira porque é o que nos orienta e última porque é aonde a gente precisa chegar é a entrega daquilo que nós chamamos de uma Política Nacional das Artes, que tenha escala, que chega em todos os lugares do País, para todas as pessoas e que seja capaz de também colocar contribuições a esse país que a gente quer construir, que não existe, mas que ele é ele tá aqui. A gente precisa devolver ao Brasil esse sonho de País.
OP - O que é o mais difícil de ser uma mulher num cargo de poder em 2023?
Maria - Primeira coisa, imagina meus filhos lá em Salvador. Eu sou uma mãe solo com meus dois filhos, então, é a dimensão da renúncia de uma vida pessoal. Às vezes, penso se qualquer homem na minha posição estaria vivendo essa experiência pública com tamanha renúncia pessoal? Se eles não estariam rodeados. Eu não sei. É uma pergunta que eu me faço mesmo. Primeiro ponto, então, é estar nesses lugares que é um espaço sempre de renúncia, mas isso não é uma queixa em hipótese alguma. Isso é uma convicção.
Depois, o tempo inteiro ter que afirmar a sua própria capacidade de enfrentar. Mas, por sorte, aí, eu acho que é uma sorte mesmo, a gente também entende que o grande dispositivo de enfrentamento à misoginia e ao machismo é justamente sabermos que nós precisamos coletivizar as nossas lutas, então quando a gente tem uma equipe de equidade racial, de gênero, no ministério de Margareth, a gente também entende que essa é a primeira condição para entender que ser presidenta é um trabalho de força coletiva, então, é você não ceder a essa espécie de personalismo. Eu poderia trazer aqui uma lista de violências (enquanto mulher em cargo de poder), mas eu prefiro ficar agora na força e na potência desse ato.
OP- A regeneração da cultura tem uma simbologia muito forte, mas também tem questões práticas que batem à porta, como orçamento e pessoal. Qual o maior desafio prático de reconstruir toda essa dinâmica através da Funarte?
Maria - O desafio prático, bem objetivo, é que nós estamos vivendo uma reconstrução, hoje com a presença de estados e municípios. Eu não vou me alongar nas derrotas, porque elas são muito sabidas, mas nós tivemos uma vitória muito importante que foi a materialização do Sistema Nacional de Cultura, a vitória das leis Lei Paulo Gustavo e Aldir Blanc. Eu posso, sem medo de errar, dizer que talvez essa seja umas maiores conquistas para a cultura nos últimos 40 anos no Brasil. São experiências que materializam o Sistema Nacional de Cultura em definitivo. O Brasil tem a experiência de financiamento à cultura na renúncia fiscal como política pública de fomento mais longeva e ela é extremamente concentradora, de acumulação. Você transfere à iniciativa privada, às empresas, o papel de investimento quase sempre com baixa capacidade de induzir política pública.
De repente, no cenário mais adverso, você consegue o maior orçamento da história para fomento direto e, não só isso, é esse fomento direto para estados e municípios. Cidades que nunca viveram uma experiência de promoção de política, de gestão de política de Cultura. Muitas vezes, é uma diretoria que só tem uma pessoa fazendo aquilo naquele território. Mas qual é o efeito colateral? Não há pacto, não há divisão de responsabilidades definidas sobre qual é o papel de estados, municípios e união. A gente ao lado da materialização do Sistema Nacional de Cultura, desse orçamento recorde, temos que conseguir realmente dividir responsabilidades e coletivizar essas políticas, dar escala através da relação com os entes federados e isso é de uma engenharia, de uma costura, de uma arquitetura.
OP - Como você defenderia o mecanismo de renúncia fiscal via Lei Rouanet para um brasileiro que acha que artistas são sanguessuga de dinheiro público?
Maria - Eu defenderia dizendo que tudo aquilo que é direito precisa de investimento público. Os brasileiros não sabem que a indústria automobilística trabalha com isenção fiscal, que o agronegócio tem políticas de renúncia de investimento. Acho que o ataque (à Lei Rouanet) foi muito programado. É a lei mais longeva de investimento e fomento, mas foi usada como um dispositivo de ataque à cultura, porque o Brasil inteiro de algum modo entende essa dimensão de investimento, de renúncia, mesmo que não entenda com essas palavras, com essas nomenclaturas. Acho que foi uma tática de pegar aquilo que é mais forte no imaginário, porque é a experiência mais longa, a experiência mais sólida mesmo, mesmo que incompleta, imperfeita e transformá-la num xingamento, né? Não é à toa que Gilberto Gil é chamado de Rouanet, né? Então, sim temos que defender.
Uma coisa que eu sempre também defendi é que uma política, mesmo quando ela é incompleta, ela não precisa ser extinta, né? Então mesmo políticas muito bem sucedidas, elas são muito imperfeitas. O próprio “Minha Casa, Minha Vida” é uma política muito imperfeita, porque muitas vezes ela afasta o cidadão que tem o direito à moradia para espaços muito longínquos e não articula aquilo com a sociabilidade, com o trabalho, com direito à mobilidade. Então toda política é passível de uma movida de promoção de mais igualdade, de mais direitos. O que você não pode é demonizar uma política, atacá-la e sobretudo usá-la como experiência de ataque a um campo, um setor.
OP - É possível romper com a narrativa de que a cultura é uma agenda apenas da esquerda no Brasil?
Maria - Olha, eu acho que, inclusive, a direita e a extrema direita entenderam isso muito bem. Eles mobilizaram muito o campo, eles se organizam muito nas suas agendas. Eu acho que eles capturaram essa agenda, essa narrativa com muita eficiência, mas infelizmente não no sentido de promover a democracia, direito, política pública, mas, sim, o efeito de desmoralizar, de atacar. Isso não funciona porque a cultura no Brasil tem uma uma característica de rebeldia, de liberdade. Não diria que a cultura é uma pauta da esquerda. Inclusive, até os anos 2000, muitas vezes foi tratada com uma pauta das elites. Então eu acho que a cultura é nela mesmo um espaço de insurgência, liberdade, emancipação e obviamente está mais ligada a uma pauta progressista, mas não necessariamente é sempre ou será sempre uma pauta de esquerda. Ainda que ela seja libertária, nem sempre ela está a serviço de uma agenda de liberdade.
OP - Como se manter otimista num país tão desigual como o Brasil?
Maria - Uma vez meu companheiro me perguntou isso, no caso, ex-companheiro, porque esses caras não ficam muito não. Ele me perguntou como eu conseguia acreditar tanto no futuro, no amanhã. A gente estava em Salvador, na varanda de casa, e falei: "Há pouco menos de 150 anos pessoas escravizadas passavam aqui na frente, com corrente. Então, é impossível não acreditar". Não dá para você se subordinar a uma ideia mesmo que num recuo da história, num ataque da extrema direita ou agora num ataque muito frontal às populações negras brasileiras, à população periférica. Tem uma coisa que acho que a gente não está debatendo direito que é a cena do tráfico, do crime organizado. Pensar também como as casas legislativas, que deveriam ser a casa do povo, estão muito mobilizadas com o poder da grana, da influência, dos negócios.
Tem muitos fenômenos, mas é impossível não reconhecer vitórias como a organização do povo negro brasileiro, das mulheres no mundo, do enunciado de novo sujeito a exemplo das infâncias, quem poderia tratar há tão pouco tempo crianças como sujeito de direitos? Quem poderia supor que nós traríamos a pauta indígena com tanta convicção e reconhecer os genocídio da população originária? Quem ousaria dizer que, num mundo que quer tanto se polarizar, a pauta ambiental estaria no centro do debate? Se você olha um pouco mais por dentro dos espaços de brutalidade, você entende que há um mundo em movimento e esse movimento está aí para quem quiser ler e ouvir.
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