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Um Supremo mais político sob pressão das ruas
Reportagem Seriada

Um Supremo mais político sob pressão das ruas

Jornalista cearense analisa o crescimento do protagonismo do STF perante a opinião pública, o fortalecimento e as consequências desse processo para o Judiciário

Um Supremo mais político sob pressão das ruas

Jornalista cearense analisa o crescimento do protagonismo do STF perante a opinião pública, o fortalecimento e as consequências desse processo para o Judiciário
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A cientista política e jornalista cearense Grazielle Albuquerque iniciou em 2014 a pesquisa que deu início ao livro recém-lançado. Estudava o Supremo Tribunal Federal (STF) com ênfase ao período entre a promulgação da Constituição e a reforma do Judiciário. Naquele ano foi deflagrada a operação Lava Jato.

No dia do impeachment de Dilma Rousseff, ela estava, como pesquisadora, no acampamento batizado "Moro Lovers", em frente à Justiça Federal, em Curitiba. No julgamento do habeas corpus de Lula, quando foi negado em 2018, ela estava no comitê de imprensa do STF.

Grazielle Albuquerque, jornalista e cientista política(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Grazielle Albuquerque, jornalista e cientista política

"Eu estava fazendo uma pesquisa sobre 1988, sobre anos 1990, com o Brasil explodindo na minha frente", afirmou a pesquisadora. "Eu estava acompanhando a explosão da transição que eu estava estudando".

Da lei aos desejos: o agendamento estratégico do STF mostra o crescimento do protagonismo do Supremo no debate político e da visibilidade pública. A cobertura midiática se multiplicou e ministros se tornaram celebridades.

Um processo que teve um custo, com aumento das cobranças e mesmo ataques aos magistrados. Hoje, há pressões para retringir poderes e limitar mandatos dos integrantes da corte.

Sob o brado de "Supremo é o povo", há o clamor por uma Justiça das ruas, que atenda aos anseios da população e faça isso de forma imediata. Algo que contraria a própria natureza do Judiciário, que por vezes precisa contrariar o clamor popular. "Se o Judiciário vai para esse caminho, vai virar outra coisa, ele não vai mais ser Justiça", diz a autora.

 

 

O POVO - Qual o trajeto percorrido por um STF que era ainda muito fechado ali por volta da época do julgamento do Collor até o tribunal do 8 de janeiro?

Grazielle Albuquerque - O que aconteceu com o Supremo foi um gradativo agendamento. Não é à toa que o livro chama Da lei aos desejos: o agendamento estratégico do Supremo. Ele vai se agendando, ele vai se colocando como pauta. Agendamento é uma expressão que vem da teoria da comunicação, que é o agenda-setting research.

A gente tem que eu chamo de turning points. São pontos de inflexão, pontos de virada dentro desse processo. O que eu chamo de turning point zero é o impeachment do Collor, porque a gente vai ter a primeira vez o Supremo aparecendo como tribunal. Não era protagonista, porque a gente tinha um impeachment por si só muito inflamado, Collor, os "caras-pintadas". Mas, inclusive pelo rito do impeachment, o Supremo tem uma participação na condução do processo. A gente vai lembrar do (Ricardo Lewandowski) no impeachment da Dilma (Rousseff).

Foi o Sidney Sanches o ministro que foi acompanhar o impeachment do Collor. Tinha ali o ali o turning point zero porque é o primeiro momento em que o Supremo vai começar a ser mais visto, o nome vai ser dito de maneira mais incisiva pela imprensa, ainda que de maneira coadjuvante. Depois tem, em 1999, uma CPI do Judiciário, turning point um. De fato ensaiou e acabou que ela não veio a cabo, mas ela nasce num caldo de uma série de denúncias em relação ao Judiciário. No fim dos anos 1990, teve a operação Anaconda, teve o escândalo do superfaturamento da construção do Fórum Trabalhista de São Paulo, que ainda tem nome que virou jargão, que era o Lalau.

Uma série de coisas que vão acontecer no fim dos anos 90 que pautam o Judiciário como também passível de controle, também um Judiciário que precisa prestar contas, que precisa também se colocar como uma instituição da República que de alguma maneira responde à sociedade. Na abertura (política), esse olhar sobre a participação da sociedade, sobre responder, sobre a volta da democracia e instituições mais republicanas, ele estava voltado para Executivo e Legislativo, por motivos óbvios. A gente estava saindo de um período autoritário.

E aí teve impeachment do Collor, CPI nos anos 90, quando há esses escândalos e casos envolvendo o Judiciário. Isso é a anti-sala do que vai acontecer em 2004, que é a reforma do Judiciário. A reforma tramitou por 12 anos. Começa em 1992 e é promulgada em 2004, mas a reforma só é possível porque nos dois últimos anos, em 2003 e 2004, houve um clima muito favorável. E tinha, digamos assim, no background a CPI, as discussões em torno da CPI que tinha acontecido cinco anos antes.

A reforma do Judiciário foi um momento de mobilização também. Jornais dão diversas matérias nos últimos seis meses sobre temas objetos da reforma que são súmula vinculante, havia uma disputa se seria súmula vinculante ou súmula impeditiva de recursos. O chamado controle externo do Judiciário, esse era o nome que se dava à época do que depois se tornou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Essas questões em torno do Judiciário começaram a pautar a imprensa no que eu vou chamar de turning point dois, que é a reforma do Judiciário. E aí a gente tem o mensalão. É o turning point três. É onde eu acho que as coisas explodem. Há uma explosão em relação à visibilidade do Supremo. É um julgamento que mobiliza o tribunal por dois anos, 2012 no julgamento de mérito e 2013 nos embargos infringentes. Julgamentos televisionados, as pessoas acompanhando quase como se fosse uma novela. Ali é um momento para mim de corte. O livro termina no preâmbulo do mensalão. Tem elementos que a gente fala no mensalão, que é quando, para mim, a gente tem um marco para um segundo ato sobre o que vai acontecer no Supremo, que inclusive vai ser objeto de um próximo livro.

GRAZIELLE ALBUQUERQUE é jornalista e cientista política, pesquisadora do sistema de Justiça(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal GRAZIELLE ALBUQUERQUE é jornalista e cientista política, pesquisadora do sistema de Justiça

OP - O que era a cobertura do STF na época do impeachment do Collor, sem TV Justiça, transmissão ao vivo?

Grazielle - Tinha cinco jornais cobrindo Supremo: Correio Braziliense, Estadão, Jornal do Brasil, O Globo e Radiobrás. Esses eram os setoristas fixos e tinha alguns volantes. No fim dos anos 1980, começo dos anos 1990, era muito comum em Brasília setoristas em diversos ministérios. Anos 1980 e 1990 era a explosão do jornalismo.

Se você pegar uma Veja ou uma IstoÉ de 1989, 1992, você vai ver nas páginas de anúncio, junto com os eletrodomésticos que estavam surgindo no Brasil, a Leila Cordeiro e o Eliakim Araújo como anúncio dos jornais da Manchete, ou revistas com anúncio de âncoras de jornais da Globo. O jornalismo era um produto nascente, ou renascente, junto com a democracia brasileira.

Então tinha muitos setoristas espalhados por Brasília. Não tinha a possibilidade de difusão da informação como há hoje, precisava de uma pessoa in loco, não dava para cobrir a distância. E tinha os setoristas dentro do Supremo. O que foi acontecendo ao longo do tempo é que o setoristas deixaram esses espaços (ministérios) e foram se concentrando no Supremo, porque há um saber muito técnico, uma linguagem muito técnica e a cobertura exige relacionamento.

No fim dos anos 1980, havia setoristas que cobriam outros tribunais e o Ministério Público a partir do Supremo. Depois, com o andar da carruagem, nos anos 1990 em diante, concentra-se no Supremo e começa a dividir, você tem de ter alguém só para o Supremo, porque justamente o Supremo começa a ter mais pauta. Mais adiante ainda, além do aumento do número do setoristas, há inclusive setoristas hoje que se dividem na cobertura do Supremo, uns para cobrir bastidor e outros para cobrir processo. Hoje há jornais que têm dois setoristas lá dentro.

O que vai acontecer ao longo do tempo é um olhar mais especializado para o tribunal, porque o tribunal não só ganha mais relevância como o volume de atenção aumenta. O aumento do poder político do Supremo atrai a cobertura e essa cobertura se torna mais especializada. O próprio número de veículos aumentou também. No livro, eu mostro como sai de uma cobertura massivamente impressa para uma cobertura que traz outras audiências. Mesmo antes da TV Justiça, que é de 2004, em 2000 há o início da cobertura televisiva no Supremo de TVs abertas.

Sessão plenária do Supremo Tribunal Federal (STF)(Foto: Carlos Moura/SCO/STF)
Foto: Carlos Moura/SCO/STF Sessão plenária do Supremo Tribunal Federal (STF)

OP - Com essa maior cobertura, os ministros acabam se colocando como atores políticos, inclusive no que dizem em off, com o gravador desligado?

Grazielle - Esse é um processo que eu não sei se tem volta. Esse processo está dado. Não posso achar que ele não existe. O que vai acabar acontecendo, já está acontecendo, é uma regulação disso. A cobrança por um tribunal menos político, um tribunal mais contido se reflete também nessa relação com a imprensa. Depende muito da personalidade dos ministros.

Uma ministra como a Rosa Weber tem uma personalidade muito diferente de um ministro como o Luís Roberto Barroso. Esses elementos são parte do jogo. Importante salientar, esse processo não é só brasileiro, é um processo mundial. O número de entrevistas de juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos nessas duas décadas do século XXI superam em muito as entrevistas dadas até o fim do século XX.

Uma ministra da Suprema Corte norte-americana, a Ruth Ginsburg, foi personagem de dois filmes, um hollywoodiano e um documentário. O mundo passa por um processo de mediatização e isso é uma coisa que está dada. A gente precisa também fazer uma divisão: o que é aparecer e o que é aparecer politicamente. O que é aparecer e como aparecer. Há momentos em que essa essa questão de os ministros falarem, esclarecerem seus pontos, é muito positiva. Se não, como a gente vai esclarecer um ponto, tirar uma dúvida, inclusive repercutir determinadas questões que são legítimas, que são do Poder Judiciário, que impactam a vida a vida das pessoas? Senão a gente de novo volta para um tribunal que não esclarece sobre si.

OP - Essa midiatização do STF submeteu muito fortemente os membros da Corte a um escrutínio popular. Quais as consequências desse processo?

Grazielle - Tem dois lados, um lado muito positivo e muito republicano, que é a sociedade olhando e pensando que Supremo e que Poder Judiciário é esse que eu quero. Isso acontece de uma maneira maior e no mundo inteiro.

Nos Estados Unidos, tem pesquisa sobre o apoio da opinião pública ao Supremo que vai dos anos 1950. O suporte público à Justiça está muito ligado aos valores da democracia. Eu apoio mais a Justiça quanto mais eu apoio a democracia. Se submete o Judiciário ao escrutínio público, igual ao Executivo e ao Legislativo, a gente tira do Judiciário o poder contramajoritário que ele tem. O Judiciário precisa ter a capacidade de às vezes agir contra a opinião pública.

Para tentar fazer uma alegoria, que a função da Justiça é uma função de disjunção, ela é disjuntora. Quando as outras coisas são muito ligadas a essa vontade direta de um momento, o Judiciário está ali para proteger minorias, com uma função muito mais ligada à legislação que propriamente à vontade das ruas. Para isso a gente tem Executivo e tem Legislativo. Se perde demais essa capacidade, o Judiciário perde a natureza dele. Como achar um equilíbrio? Executivo e Legislativo respondem muito rápido, porque a sanção ou o veto em relação a atitudes desses poderes acontece a cada quatro anos.

De quatro em quatro anos eu tenho uma eleição, a população podendo dizer se concorda ou não concorda, referenda ou não referenda este candidato com estas posturas. O papel da Justiça em relação à opinião pública, ou melhor dizendo, ao sentimento de um tempo, ele é mais largo. Não vai virar como um veleiro. Ele é um um transatlântico. Demora mais tempo.

Temos no Brasil a Constituição de 1988 ainda como baliza muito forte. É o sentimento de um tempo, a construção de um tempo e que não tem só como olhar a opinião pública. O Judiciário precisa ser reconhecido como legítimo, precisa ter uma reputação, precisa ter cuidado com a sua reputação, mas isso se estabelece muito mais a longo prazo do que de maneira instantânea, repentina ou num prazo curto, como acontece com o Legislativo e com o Executivo.

Isso também tem a ver com uma coisa que eu acho meio esquecida que é a necessidade de um Judiciário que tenha decisões em que as pessoas reconheçam regularidade, e não decisões ad hoc, hoje eu decido de uma maneira A, amanhã eu decido de uma maneira B, depois eu decido de uma maneira C. Essa regularidade, de conseguir pensar um entendimento coletivo, entendimento que seja equilibrado, eu acho que está também no cerne deste desgaste. Também precisa ser distinguido o que é um olhar sobre o Judiciário do ponto de vista das suas posições, de voto, e o que é o olhar sobre o Judiciário em relação à sua prestação de serviço.

A gente às vezes fica falando só sobre voto dos ministros, entendimento, mas existe na ponta um olhar em relação a quem procura o Judiciário e quem é atendido. A gente tem dados tanto do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) como da FGV (Fundação Getúlio Vargas), a FGV tem o Índice de Confiança na Justiça, que mostra que pessoas de até um salário mínimo que procuram a Justiça e são atendidas tendem a confiar mais na Justiça.

O impacto de um atendimento célere, focado nas pessoas que mais precisam, costuma se reverter numa confiança maior em relação ao Judiciário. É um poder que, sim, precisa do respaldo popular. Mas isso acontece mais na chave da reputação e da legitimidade ou de uma coisa que a literatura chama de suporte público, que está ligado aos valores democráticos. Não à toa, quando houve derrocada dos valores democráticos no Brasil, a gente teve também um ataque maior ao Supremo.

Estátua da Justiça, Supremo Tribunal Federal (STF)(Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil/ARQUIVO)
Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil/ARQUIVO Estátua da Justiça, Supremo Tribunal Federal (STF)

OP - Uma das características desses tempos no STF foram alguns arranca-rabos, brigas entre ministros. Uma das mais significativas foi entre Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa (em 2009), em que um dos temas tinha a ver com o que a senhora mencionou. Barbosa dizia a Gilmar: "Saia à rua". Qual o limite entre ouvir a voz das ruas, atender a voz das ruas? E também sobre esse STF que bate boca publicamente.

Grazielle - O STF está começando a entender o preço de bater boca. Hoje há uma contenção maior nesse sentido. Essa contenção se deve, primeiro, ao governo (Jair) Bolsonaro, que criou uma grande coalizão no Supremo. Ministros que tinham rusgas públicas e entraram no processo de trégua, de amizade diplomática ou coisa que o valha por compreender que existe uma imagem pública, que é arranhada e traz danos muito grandes quando essas discussões se asseveram na frente das câmeras.

A partir do momento em que o Supremo passou a ser mais visto, no fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000 em diante, não se tinha dimensão, porque era uma coisa muito nova, do impacto dessa visibilidade. Quem muito se expõe e acaba tendo de responder. Não se tem controle sobre o resultado de uma ação midiática, 100%. Se calcula o risco. Mas não existe "cumpra-se". Estratégia de comunicação pode dar errado.

O caso mais clássico é o Collor, que pede para as pessoas irem às ruas para apoiá-lo e, na verdade, cria o movimento Cara-Pintada. Foi ele que foi a público anunciar e pedir ajuda. Os ministros não tinham noção disso individualmente, eles passaram a ter. O custo dessas brigas foi muito alto e eu acho que eles começaram a aprender isso agora. Sobre escutar as ruas, uma coisa é a chave da rua do momento. Uma coisa é fazer uma discussão nas ruas sobre modelo de Justiça.

Por exemplo, quando a gente estava discutindo reforma do Judiciário ou quando a gente tá discutindo questão vencimental dos juízes, ou poder de correição do CNJ, a gente está discutindo modelo de Justiça, que interessa a todos os cidadãos. É diferente discutir julgamento. Quando se coloca o julgamento, vamos julgar porque a opinião pública quer assim ou porque a opinião pública quer assado, a gente corre muito risco de ficar refém de uma opinião pública que é volátil e muda de lado. E aí vem a diferença. Executivo e Legislativo respondem de maneira rápida a isso porque precisam dessa resposta para continuar no cargo.

O Judiciário deveria não precisar. Não significa que ele não vá olhar para a rua, mas esse olhar para a rua tem a ver com a mudança mais ampla de um tempo. Por exemplo, os juízes que vieram depois de 1988, que tiveram uma formação ligada ao Código Defesa do Consumidor, ao Código Ambiental, uma série de normas que têm a ver com direito coletivo difuso, que é uma geração de direitos que vem da Constituição de 1988 para frente, não tinha antes, eles têm um pensamento diferente.

Porque a Constituição, que é uma produção legislativa, legítima do Poder a quem cabe criar as leis, mudou paradigma. Você concorda que mudou o entendimento de um tempo? Mas esse entendimento de um tempo mudou de maneira ampla, não foi uma mudança de chave de hoje para amanhã, porque alguém estava gritando na rua. É uma mudança em relação ao espírito de um tempo, mas não é uma mudança rápida, não é baseada no que está acontecendo agora na esquina. É um processo mais maduro de entendimento de que a sociedade mudou e que, portanto, o ordenamento jurídico e as decisões jurídicas têm de mudar de acordo com essas mudanças mais amplas.

OP - Se o Judiciário olha para as ruas da mesma maneira que o Legislativo e o Executivo, ele estaria inserido nesse jogo político de maneira mais inevitável, o que talvez seja o que os populismos autocráticos talvez queiram?

Grazielle - A principal questão é que você perde a essência do que você é. A essência é outra. O Poder Judiciário é pensado para ser contramajoritário. Se ele deixa de ser contramajoritário, ele vai ser outra coisa. O que eu estou querendo dizer é que ele não está mudando só o que ele é para fora. Ele está mudando o que ele é em essência.

Manifestantes golpistas em 8 de janeiro, diante do Supremo Tribunal Federal (STF)(Foto: SERGIO LIMA/AFP)
Foto: SERGIO LIMA/AFP Manifestantes golpistas em 8 de janeiro, diante do Supremo Tribunal Federal (STF)

OP - Esse caráter contramajoritário é pouco compreendido. Tanto que vemos frases como "Supremo é o povo". Como a senhora observa essas reações?

Grazielle - A visão sobre o Judiciário tem ciclos. Há um ciclo de críticas ao Judiciário à esquerda, que era "com o Supremo, com tudo", em 2014 em diante, sai do mensalão e vai até a Lava Jato, impeachment da Dilma. Da Lava Jato em diante, há um novo ciclo, do "Supremo é o povo". Quando a gente não só tem críticas, mas tem ataques aos ministros do Supremo.

A Lava Jato tem um papel fundamental, ela não é o start das críticas ao Supremo. Mas ela é um divisor de águas. Ela, inclusive, muda o entendimento do que é Justiça. Eu acompanhei algumas manifestações pró-Lava Jato como pesquisadora. Lembro de uma, na Avenida Paulista, eu cito inclusive no livro, no fim de 2016, foi a primeira vez que eu vi cartazes questionando os ministros do Supremo na Paulista.

Enquanto o (Sergio) Moro (ex-juiz da Lava Jato e hoje senador) estava com imagem em um carro de som, as pessoas tiravam self ali, havia cartazes contra os ministros do Supremo. Para mim, o mais perigoso, que vai ser inclusive o objeto do próximo livro, é haver uma ideia de Justiça que é da rua. Foge a determinados ritos e trâmites que são importantes. Não garantem que a Justiça vai ser feita. Não é porque eu segui todos os trâmites que eu tenho algo justo, mas você cria filtros que ajudam a ter algo justo. Se eu vou para a rua e crio o personagens, o juiz herói, eu estou saindo do que é também característico da Justiça, que são determinados rituais.

Isso parece bom no primeiro momento. Isso tem um efeito rebote muito complicado no segundo momento. Justamente por isso, porque a opinião pública muda de lado. E muda de lado de uma maneira muito muito volátil. As considerações sobre personagens políticos mudam de maneira muito muito rápida. Se o Judiciário vai para esse caminho, eu não estou dizendo que isso é bom ou é ruim, eu estou dizendo que ele é outra coisa. Ele vai virar outra coisa, ele não vai mais ser Justiça.

Grazielle Albuquerque, jornalista e cientista política, pesquisa sistema de justiça na sua interface com a mídia(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Grazielle Albuquerque, jornalista e cientista política, pesquisa sistema de justiça na sua interface com a mídia

OP - No livro, a senhora se refere ao Supremo como poder que vai se tornando superlativo. E há uma reação do Congresso, também hoje muito mais forte e sob menos tutela do governo, e com poder de mudar a Constituição, inclusive com intenção de mudar atribuições do Supremo. Qual sua avaliação sobre o cenário para dois poderes que crescem e disputam espaços?

Grazielle - A gente está olhando mais para o Supremo porque o Supremo ficou mais poderoso. É o aumento do poder político que chama atenção. Vou dar um exemplo de duas outras instituições. Olha-se mais para a Defensoria Pública da União quando ela começa a atuar na defesa das pessoas em relação ao 8 de janeiro, tem uma atuação política. Os casos mais políticos que chegam ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) costumam ter maior cobertura. Não é só isso. O sistema de Justiça tem na mão uma pérola do ponto de vista da comunicação, que é serviço. Porque o que se faz, em síntese, é serviço de utilidade pública, prestação de serviço para as pessoas.

Eu acho que isso vale uma atenção especial do sistema de Justiça como um todo. Mas é a política que, do ponto de vista da cobertura, chama mais atenção. A Constituição de 1988 já deu muito poder ao Supremo. Havia uma discussão na Constituinte de que Supremo poderia ser só um tribunal constitucional e o STJ faria às vezes de último tribunal recursal.

A coisa acaba configurada de um jeito que o Supremo vira esse órgão que é tribunal constitucional, tribunal originário e tribunal recursal. Tem muito poder concentrado. Além disso, ao longo do tempo o Supremo foi angariando mais poder. Isso não é culpa do Supremo. Não foi o Supremo que disse: me dá aqui. Foi um rearranjo. Um exemplo é a emenda constitucional número 3. Havia em 1988 uma previsão para ação declaratória de constitucionalidade, mas ela vai ser regulada pela emenda número 3 e tem muito a ver com o Plano Real. Fernando Henrique queria evitar aquela enxurrada de ações em relação aos planos econômicos, como aconteceu na era Sarney e com o Plano Collor.

Esse instrumento foi dado ao Supremo para dizer: eu estou declarando que é constitucional, não apenas dizer que é inconstitucional. O livro cita alguns outros exemplos. O aumento do poder do controle de constitucionalidade. A própria reforma do Judiciário. É tudo muito acordado, mas desequilibrou as forças. E deu ao Supremo, sim, aumento do poder político. A gente não está olhando para o Supremo à toa. O olhar para o Supremo tem relação com o impacto das decisões nas nossas vidas. Julgamento sobre célula-tronco e uma série de outras ações de impacto cotidiano. Mas essa celeuma toda que a gente está discutindo agora não são sobre esses casos, em regra.

Em regra, são sobre casos políticos. É o aumento do poder político que traz o aumento da atenção sobre Supremo, que aumenta a cobertura. E o Supremo atuou na construção da imagem sobre si. Ele aprendeu a responder a essa cobertura. Num dado momento, a gente sai de uma resposta que é mais institucional e vira uma resposta mais ligada a personagens e indivíduos. Isso tem um efeito colateral e o Supremo agora está tendo de lidar com esse efeito colateral justamente nesse reequilíbrio.

 Grazielle Albuquerque acompanhou vários julgamentos importantes envolvendo cenário político contemporâneo(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Grazielle Albuquerque acompanhou vários julgamentos importantes envolvendo cenário político contemporâneo

OP - O título "Da lei aos desejos", o desejo tem a ver com essa atuação deliberada do Supremo, essa intenção de construir a própria imagem?

Grazielle - Esse desejo não é só sobre isso, não. O título do livro ia ser: "Para onde os ventos sopram: a construção do agendamento estratégico do Supremo". Agendamento estratégico é a comunicação do Supremo estar olhando para o contexto político. Isso não é bom ou ruim, é uma característica. Mais eficiente a comunicação é se ela fizer isso. Por exemplo, o TSE fez isso na eleição de 2022, com checadores, com rede social, acordo com big techs, porque a resposta tinha um tempo. Ela seria uma resposta inefetiva se ela não tivesse um tempo.

Por que se chama "Da lei aos desejos"? A pesquisa começou em 2014. Eu estava fazendo uma pesquisa sobre 1988, sobre anos 1990 com o Brasil explodindo na minha frente. No dia do impeachment da Dilma, eu estava em Curitiba, no acampamento apelidado de "Moro Lovers", em frente à Justiça Federal. Em todos os protestos de 2016, da Lava Jato, eu estava acompanhando como pesquisadora.

No julgamento do habeas corpus do Lula, em 2018, eu estava no comitê de imprensa do Supremo. Era impossível falar dos anos 1980, dos anos 1990. Eu estava acompanhando a explosão da transição que eu estava estudando. O desejo aí é que o Supremo é atuou de maneira consciente na construção da sua imagem, sim. Mas o desejo tem mais a ver com você sair de uma visão de uma Justiça que é mais institucional para uma visão da Justiça que está ligada ao desejo. O livro para no preâmbulo do mensalão justamente porque eu acho que, do mensalão em diante, a apreciação que as pessoas começam a fazer sobre a Justiça e sobre os ministros é muito mais ligada ao desejo.

OP - Ao desejo em relação à expectativa que nós temos de que o STF decida?

Grazielle - O desejo inclusive em relação aos personagens, ao desejo de uma Justiça da rua. A Justiça que vai responder ao que eu quero agora.

OP - Essa tendência de consumo de personagem se acentua com a proliferação de concessão de liminares individuais, decisões monocráticas?

Grazielle - Com certeza. Quando há uma atuação do Judiciário, uma corte que é muito coberta, o Supremo, onde os indivíduos aparecem mais, é muito mais fácil que esses indivíduos se tornem personagens. Vai mudar de acordo com a personalidade. Tem indivíduo cuja personalidade dificulta que você seja personagem. Pode não impedir o meme. O meme vai vir, mas vai dificultar que isso prolifere. E tem indivíduos com uma atuação que isso se torna mais possível e provável.

OP - As reações ao Supremo, principalmente no Senado, estão dentro da regulação de que a senhora fala ou extrapola?

Grazielle - Há um desequilíbrio, inclusive, em relação a Legislativo e Executivo. Há uma crise maior que o Judiciário, ela é mais ampla. O Judiciário tem a grande novidade de estar colocado em pareia com Executivo e Legislativo. Se a gente pegar de 1988 para cá, é uma novidade. Se a gente estivesse discutindo essa crise em 2004, muito provavelmente não estaríamos falando do Supremo como elemento de governabilidade. E é um fato que hoje ele está lá. Ele é político, a questão é regular qual o escopo político dele. Se ele virar um escopo politico igual a Executivo e Legislativo, ele pede a sua natureza.

O próprio Supremo entendeu que essa superexposição, que parece estar mais atrelada a indivíduos e não à corte, é negativa para o STF mesmo. O custo é muito alto. O que a gente viu no dia 8 de janeiro, eu começo o livro falando isso, é muito sintomático que um poder sem votos tenha sido atacado. No caso do Capitólio, a Suprema Corte americana não foi invadida.

O Capitólio é a representação de um poder eletivo. Há um desequilíbrio geral. A novidade é que o Judiciário participa desse desequilíbrio. A novidade é que o Judiciário é, sim, um componente hoje de governabilidade, talvez não nos moldes tradicionais, mas ele compõe, porque ele tem de conversar com os outros poderes. O que eu acho que vai acontecer, está acontecendo: o Judiciário passou a perceber que o custo dessa exacerbação da visibilidade política ligada aos indivíduos é muito alto. Ele próprio está tentando uma autocontenção.

A ministra Rosa Weber começou a costurar isso internamente, mas a pressão que vem do Senado está chegando. Ela não é uma novidade. Muitos candidatos bolsonaristas já faziam campanha em 2022 mirando o Senado e tendo o Supremo como alvo. Essa pauta passa pelo bolsonarismo, mas é maior que o bolsonarismo. Ela compõe com outros elementos que não são bolsonaristas. Está se tentando um novo ajuste do Supremo junto com Executivo e Legislativo.

Não é novidade para mim que se fosse tentar fazer algo em relação aos poderes do Supremo, porque isso já era anunciado na campanha de 2022. O que eu acho que vai acabar acontecendo e se anuncia é que, mesmo o Supremo tendo tentado fazer isso de maneira mais interna, com a Rosa Weber, dado a pressão do Senado, vai se fazer um acordo e vai se fazer algo mais acordado. Inclusive com o Senado.

Inclusive porque, no Brasil, as mudanças que criam mais raiz costumam ser as mudanças acordadas. A reforma do Judiciário passou 12 anos tramitando. Ela de fato ganha condição de ser efetivada quando passa por um processo que envolve uma conversa entre Executivo, Legislativo e Judiciário, que foi nos anos de 2003 e 2004.

Grazielle Albuquerque pesquisa sistema de Justiça(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Grazielle Albuquerque pesquisa sistema de Justiça

OP - Esse Supremo mais político leva também os presidentes a fazerem outro tipo de indicação de ministros, mais jovens e mais ligados politicamente, como Flávio Dino?

Grazielle - A gente tem, por exemplo, o Nelson Jobim. Ele foi deputado, atuou na reforma do Judiciário pelo Legislativo. Depois, tornou-se ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso. E atuou na reforma do Judiciário pelo Executivo. E o Nelson Jobim depois se tornou ministro do Supremo e presidente do Supremo e também atuou na reforma do Judiciário, promulgada justamente quando ele estava como presidente do Supremo. Estou falando de um indivíduo que estava no Legislativo, passa pelo Executivo e vai para o Judiciário.

OP - Depois volta ao Executivo, como ministro do Lula.

Grazielle - Acho que isso responde que o Dino não é uma novidade. A novidade é que a gente está olhando mais para isso. Mais do que o indivíduo, a avaliação que eu faço é mais sistêmica. O Supremo passou a ser ponto de governabilidade. Não à toa, o Lula conversa muito hoje com Alexandre de Moraes, que foi indicado pelo (Michel) Temer, e conversa muito hoje com Gilmar Mendes, que foi indicado por Fernando Henrique Cardoso. Tem hoje um elemento de governabilidade muito forte e essas figuras têm trânsito político de maneira mais acentuada.

As indicações para o Supremo, seja do governo Lula, seja da Dilma, vão mudar um pouco. No governo Lula, eram muito mediadas e tinha a figura do Márcio Thomaz Bastos, que fazia essa mediação. Na Dilma muda um pouco, mas eram indicações mais conversadas. Pós-Lava Jato, Lula 3, o Lula disse isso sempre, desde o início, havia um caráter muito mais pessoal das escolhas. Teve inclusive o custo da prisão dele. E eu acho que o elemento da governabilidade entra também.

OP - Nesse Supremo com mais visibilidade, de que forma decisões foram afetadas?

Grazielle - A literatura mostra que, a partir da TV Justiça, há votos mais longos. Quando há votos de visibilidade menor, há a mais tendência de acordo. A visibilidade impacta nas decisões. O modo de decidir muda, porque sai de decisões que permitem mais acomodação, voltar atrás. E há o aumento do tamanho dos votos. A gente está, de novo, num outro momento em que a gente precisa de um pouco mais de estudo para afirmar. Tem plenário virtual que chegou, essa decisão em relação aos votos monocráticos, é preciso acomodar um pouco mais essas mudanças para que se veja as decisões.

OP - Lula chegou a falar em sigilo de voto dos ministros. Qual sua opinião? E, para além de bom ou ruim, seria viável?

Grazielle - Eu não acho viável. Eu não sou do time que acha que existe bem ou mal, acho que a TV Justiça e essa exposição trouxeram contribuições muito importantes. Inclusive de accountability, transparência. O que acho que o Lula levanta talvez seja uma sinalização em relação à questão de uma institucionalidade menos pautada nas ruas. A questão para mim sempre foi de modulação, de regulação. Qual é o qual é o limite que você tem? Qual é o ponto? É para o ministro falar sempre ou não é para falar nunca? Quais são as situações em que você fala e que você não fala?

 

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