Logo O POVO+
Rachel Gadelha: a produção cultural entre burocracias e encantamentos
Reportagem Seriada

Rachel Gadelha: a produção cultural entre burocracias e encantamentos

Diretora-presidenta do Instituto Dragão do Mar (IDM), a gestora cultural Rachel Gadelha compartilha desafios da produção cultural e defende modelo de OS no Ceará

Rachel Gadelha: a produção cultural entre burocracias e encantamentos

Diretora-presidenta do Instituto Dragão do Mar (IDM), a gestora cultural Rachel Gadelha compartilha desafios da produção cultural e defende modelo de OS no Ceará
Por

 

Existe uma célebre frase dita pelo cantor, compositor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil na música “Rep”, presente no álbum “O Sol de Oslo”, que dimensiona a importância de oferecer novas possibilidades de acessos culturais à população. Ao afirmar que “o povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”, Gil ressalta como o acesso aos bens culturais permite novas formas de ver, ouvir e sentir o que é até então desconhecido.

A frase não foi proferida em vão. Até hoje, ela é capaz de influenciar modos de se lidar com a cultura e com as políticas públicas direcionadas ao campo. No caso de Rachel Gadelha, isso é real. “Esse é um mantra para mim em toda a minha atuação como produtora e como gestora”, afirma.

Rachel Gadelha, diretora presidenta do Instituto Dragão do Mar(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Rachel Gadelha, diretora presidenta do Instituto Dragão do Mar

Gestora e produtora cultural, atualmente está na presidência do Instituto Dragão do Mar (IDM) e carrega consigo uma larga atuação no campo da cultura no Ceará. Ela defende o investimento em projetos de cultura para a infância para estimular a vivência cultural - além de enfatizar a importância de políticas culturais para a população.

“Meu sonho de consumo é um dia chegarmos em uma sociedade que sinta que precisa de arte e da cultura como quem precisa de pão”, pontua. A cearense também esteve à frente da gestão do Cineteatro São Luiz, participou do Conselho Municipal de Políticas Culturais e lançou o livro “Produção Cultural: conformações, configurações e paradoxos”.

Em entrevista ao O POVO, a pós-graduada em Políticas Públicas e Gestão Cultural relembra a trajetória na cultura e destaca a relevância do produtor cultural e defende a Organização Social (OS) como melhor modelo para a gestão de equipamentos públicos de cultura no Ceará.

 

 

O POVO: Como começou o seu envolvimento com a cultura? A partir de que momento percebeu o encantamento com a área?

Rachel Gadelha: Essa pergunta é muito boa, porque é exatamente o que eu gosto de estudar hoje: como a nossa história individual se relaciona com o campo e com as políticas públicas. Ao mesmo tempo que somos influenciados nós também influenciamos. Eu fiz uma pesquisa para identificar o campo da produção cultural, a cidade e os fazeres. Eu sou bem fruto disso. No final da década de 1970 e no começo da década de 1980, eu frequentava os ambientes culturais de Fortaleza.

Coloque uma frase descritiva da imagem

Começamos a ver a política cultural no Ceará ter uma valorização interessante, surgimento da lei de incentivo federal, estadual, a reforma do Theatro José de Alencar… Era o início do que seria uma profissionalização.

Naquela época, jovem, ia para o Estoril, existiam festivais no período do governo do Lúcio Alcântara como prefeito, apresentações perto da universidade, convivi com artistas, tinha o “Projeto Pixinguinha” (criado em 1977 e realizado pela Funarte com a proposta de circulação de shows a preços acessíveis pelo Brasil), então foram grandes momentos que marcaram a história da nossa cultura. Fomos formados como público.

Depois, fui fazer Ciências Sociais, Antropologia na Unicamp, comecei a estudar Antropologia Visual, multimeios, depois passei para documentário, cinema e para produção. Quando voltei para o Ceará, peguei um momento no qual o campo também estava se modificando, com o governo do Fernando Henrique Cardoso. Começamos a ver a política cultural no Ceará ter uma valorização interessante, surgimento da lei de incentivo federal, estadual, a reforma do Theatro José de Alencar, as primeiras formações em arte e cultura… Era o início do que seria uma profissionalização.

 Rachel Gadelha, gestora cultura, foi uma as idealizadoras do Festival de Jazz de Guaramiranga (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Rachel Gadelha, gestora cultura, foi uma as idealizadoras do Festival de Jazz de Guaramiranga

OP: Como era a profissionalização nesse contexto?

Rachel: Eu me lembro que no começo, quando começaram a pedir prestação de contas, era surreal e diferente do que vivíamos. A produção era muito intuitiva, os artistas se reuniam em grupo para fazer ações comunitárias, não existiam grandes patrocínios, eram os amigos que dividiam as coisas, que apoiavam. Nesse momento - final dos anos 1980 e começo dos anos 1990 - começou a mudar essa possibilidade de profissionalização. Foi ali que percebemos a possibilidade de se profissionalizar e trabalhar na cultura, não exatamente o artista, mas o que chamamos de produtores culturais. Foi aí que comecei a trabalhar com produção cultural. Nessa geração, aprendemos a nos profissionalizar, tivemos que ser meio autodidatas. Ninguém nos ensinou. Tivemos que ir lá e aprender a fazer.


OP: Você falou que pensa muito no contato com a cultura também a partir da experiência individual. Você vem de uma família de artistas, sendo sobrinha-neta do artista plástico Nilo Firmeza, o Estrigas, marido de Nice Firmeza. Isso teve influência em você de algum modo?

Rachel: Sim. Até o sociólogo francês Pierre Bourdieu fala em “hábitos”, ou seja, aquilo que incorporamos em nossos caminhos. Desde criança, eu frequentava o Minimuseu Firmeza. Os artistas estavam sempre lá. Ouvia sempre as conversas, meu tio falar, sempre naquela ambiência. Além disso, meu pai ouvia The Beatles em casa, eu tinha um tio que trabalhava com Os Mutantes, então tudo isso gera um ambiente.

Na época que eu era adolescente, não havia uma política cultural muito efetiva aqui, mas existia o Projeto Pixinguinha, que trouxe para o Brasil todo o conhecimento de novos artistas emergentes. A universidade também tinha um papel muito importante. Era um ambiente de estudos, de sociabilidade, mas também de efervescência cultural. Somos frutos dessas vivências e por isso é tão importante também trabalharmos com formação de públicos e com democratização do acesso.

Você me fez essa pergunta e eu me lembrei de tantas pessoas que foram ao Cineteatro São Luiz e disseram guardar memórias profundamente relevantes, afetivas e simbólicas do que sentiram quando estiveram lá. Então, é isso: tudo que você oferece quando criança ou jovem amplia e gera repertório. Esse é outro desafio para nós que trabalhamos com política cultural: mensurar. Você pode até saber quantas pessoas foram para o equipamento, seus bairros de origem, mas como medimos o que essas pessoas sentiram ou o que essa ida provocou nelas? Quantas pessoas falam que começaram a fazer arte porque viram um filme, um show ou leram um poema que mudou suas vidas? Como medimos isso?

Eu me lembro que convivia com uma geração mais velha do que eu, como Augusto Pontes, Rogaciano Leite Filho e Petrúcio Maia. É algo que me instiga: como nossos precursores, essas pessoas que abriram as portas para vivermos e sentirmos a arte, vêm repercutindo até hoje?

OP: Seria um equilíbrio entre a fruição e o sentido utilitarista da arte, então?

Rachel: Não digo nem “sentido utilitarista”. Podemos até mensurar o aspecto da arte, com a economia da arte ou os indicadores de território e de público, mas a questão é sobre o que aquele contato provocou em uma pessoa. Acho que é algo que precisamos avançar muito no Ceará: trabalhar políticas culturais para a infância. Nem todas as crianças vão virar artistas ao terem acesso à cultura, mas elas serão pessoas mais sensíveis, criativas e com repertório simbólico maior.

Isso abre um outro universo. Então, voltando ao começo da sua pergunta: sim, acho que pela família e pelas experiências que eu pude viver eu tive a possibilidade da descoberta. Eu me lembro que convivia com uma geração mais velha do que eu, como Augusto Pontes, Rogaciano Leite Filho e Petrúcio Maia. É algo que me instiga: como nossos precursores, essas pessoas que abriram as portas para vivermos e sentirmos a arte, vêm repercutindo até hoje?

OP: É interessante quando você traz o repertório tanto da sua vivência pessoal quanto da sua experiência profissional. Com essas duas trajetórias em mente, como você definiria, então, a cultura?

Rachel: Existem as visões tradicionais da cultura, que tratam dela como “tudo aquilo que fazemos, produzimos, pensamos e expressamos”. A cultura é quase como o ar. Uma vez uma pessoa me perguntou se a cultura era um produto. Eu respondi que, se ela for um produto, é também a matéria-prima e o processo. Se formos olhar historicamente, era a “cultura letrada”, e o Gilberto Gil (quando foi ministro da Cultura) trouxe a visão das dimensões simbólicas, econômicas e cidadãs.

A dimensão simbólica é tudo o que temos para expressar. A cidadã é porque a cultura é um direito essencial, não é um luxo. A econômica existe porque a cultura tem um potencial muito grande de gerar renda. Ela dialoga com toda a sociedade. Podemos falar da cultura com o turismo, com a natureza, com a saúde, segurança pública, então se trabalharmos pelo viés da cultura eu acho que conseguiremos melhores resultados.


OP: Gostaria agora de mencionar um outro lado: o da produção cultural. Em um artigo publicado na revista Pensamento & Realidade, você falou sobre a importância do produtor cultural no sistema organizativo da cultura. Aproveito para perguntar: qual a relevância do produtor cultural atualmente?

Rachel: Vou falar um pouco desse momento no Ceará para você perceber melhor a importância do produtor cultural. Nos anos 1990, vimos pessoas da sociedade civil começarem a criar projetos culturais no Ceará. Era o início das leis de incentivo. A política cultural sendo impactada e impactando. Na época, o FHC falava que a cultura poderia ser um negócio, incentivando, assim, as empresas a apoiarem.

Aquele conjunto de políticas abriu a possibilidade de alguns desbravadores começarem a se organizar para fazer projetos e eventos. Dessa época, você tem a Valéria Cordeiro, o David Linhares (que fez a Bienal de Dança), o Wolney Oliveira (com o Cine Ceará), a Nilde Ferreira (com o Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga), só para citar alguns casos. Foi a primeira vez que produtores cearenses começaram a realizar grandes eventos. Eles impactaram em todos esses campos.

A Bienal de Dança, por exemplo, foi responsável por uma geração de pessoas no Estado que tiveram acesso a um repertório que talvez nunca tivessem. Companhias do mundo inteiro se apresentaram no Ceará, houve trocas entre artistas, formações, veio um curso de dança, enfim… Vários profissionais - e me encaixo nessa geração - começaram a pensar em projetos. Eu e a Mária Amélia Mamede criamos a Via de Comunicação e idealizamos o Festival de Jazz & Blues de Guaramiranga, que teve a primeira edição em 2000. É uma história surreal, porque olhando hoje para trás tinha tudo para não dar certo.

Rachel Gadelha, diretora presidenta do Instituto Dragão do Mar, fez Antropologia na Unicamp e é mestre em Políticas Públicas pela Uece(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Rachel Gadelha, diretora presidenta do Instituto Dragão do Mar, fez Antropologia na Unicamp e é mestre em Políticas Públicas pela Uece

OP: Por quê?

Rachel: Tinha a questão de fazer um festival de jazz no Ceará em uma cidade do Interior no período do Carnaval. Nós fizemos por um conceito - por isso a importância também de você pensar, trabalhar, formular e estudar. Às vezes, o produtor cultural tem isso: diante de vários desafios ele enxerga uma oportunidade. Fizemos o festival.

Na época, o Ceará ficava deserto no Carnaval, então quisemos propor uma alternativa para as pessoas que não gostavam da festividade. O Estado era muito associado à praia e ao sol. Quisemos trabalhar Guaramiranga (uma serra), que tem uma força cultural e uma vocação para a arte. O jazz foi escolhido porque é um tipo de música no qual o talento do instrumentista é muito grande. Queríamos ressaltar o valor do instrumentista cearense. Juntando essas coisas, decidimos promover o evento - e muitos disseram para desistirmos da ideia, mas entendemos que se não fizéssemos o festival as pessoas nunca levariam a sério.

A cidade não contava com estrutura de grande porte. Assim, respondendo à sua pergunta sobre a importância do produtor cultural: em uma iniciativa de sociedade civil, digamos, conseguimos impactar na região, na infraestrutura, na economia, no turismo, na autoestima, no repertório das novas vocações produtivas… São muitas coisas que os produtores trazem à sociedade.

Rachel Gadelha, gestora cultura na área pública (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Rachel Gadelha, gestora cultura na área pública

OP: Como você caracterizaria a visão governamental sobre a cultura no tempo em que atuou como produtora?

Rachel: No governo do FHC, eles vendiam o conceito de cultura como um grande negócio. Era muita ligação com os departamentos de marketing. Você precisava fazer grandes eventos para chamar a atenção. Entra o governo Lula e há uma mudança radical de valores, de ideias, de proposições e de formas de fazer. Não era mais fazer um evento grande em termos de imagem. Era mais interessante fazer um evento relevante em seu aspecto cultural, mais cidadão - inclusive em questão de acesso.

Os produtores tiveram que traduzir mais uma vez essas políticas em ação. Muitas vezes eles agem onde o Estado não alcança. O Estado pensa as políticas, mas são os produtores que muitas vezes criam, propõem e executam, fazendo girar a economia. Foi nesse período que eu voltei para Barcelona e resolvi fazer um mestrado.

Eu queria estudar o campo da produção cultural e sua relação com as políticas. Foi aí que fiz esse trabalho contando um pouco a história de quem é esse profissional, como ele se formou e qual a presença dele na história. O organizador da cultura existe há muitos anos, mas não existia como uma atividade reconhecida, era totalmente intuitivo. Fiz um estudo de como era a produção cultural no Ceará, a produção nas décadas de 1960 e 1970, todo esse processo e o governo Lula. Hoje, nós estamos vivendo outro momento histórico. O final do governo Lula mostrou muito para nós, com tantas políticas importantes. Exige muito da sociedade civil garantirmos essas conquistas.


OP: Pelo que você relata, mostrou as novas possibilidades e também as novas exigências do que pode ser feito. Em relação à produção cultural, o que você percebeu de demandas da área cultural ao longo desses anos tanto para o público quanto para artistas?

Rachel: Eu estive muitos anos no lugar da produção cultural, dentro da sociedade civil, fazendo esses projetos. Muitas vezes nós nos sentimos sozinhos. Eu procurava o Estado em todas as instâncias. Quando um produtor cultural faz essa busca, não necessariamente ele está querendo dinheiro. Está querendo apoio, compreensão ou integração. Então eu via como era difícil a sociedade civil fazer.

Depois que publiquei o livro "Produção Cultural: conformações, configurações e paradoxos” eu trabalhei um período na gestão do Cineteatro São Luiz. Foi uma honra ter feito aquilo. Posso falar mais sobre isso daqui a pouco, mas estive um pouco nesse lugar também assessorando o secretário de Cultura Fabiano Piúba, tendo a visão de Estado. Agora, tenho a oportunidade de ter a visão da Organização Social para dizer que para que essas políticas sejam efetivas nós precisamos contar com todo mundo. Precisamos olhar por todos os lados. Precisamos do Estado.

Não podemos andar para trás em nenhuma das conquistas. Precisamos do campo cultural e falar com os agentes culturais, que são os artistas, os gestores, os produtores e os técnicos, mas a sociedade também precisa entender que a vivência cultural também diz respeito a ela. Se fortalecermos os agentes culturais e sua relação com a sociedade (e vice-versa) também conseguiremos que o Estado não se ausente, como vivemos (em nível federal) nos últimos anos.

Meu sonho de consumo é um dia chegarmos em uma sociedade que sinta que precisa de arte e da cultura como quem precisa de pão. Precisamos valorizar isso. É uma construção.

OP: Mas como demonstrar para a sociedade e para o poder público a importância de se alcançar isso?

Rachel: A primeira coisa é educação. Precisamos investir bastante em educação, em projetos de cultura para a infância e trabalhar com crianças na escola. O Alemberg Quindins fala sobre uma educação integrada, que as crianças de um determinado território tenham acesso aos conteúdos culturais na escola, mas também vão aos mestres, aos fazedores de cultura e ao patrimônio dos bairros. Precisamos trazer isso para as pessoas para entenderem como isso faz parte da vida delas. Meu sonho de consumo é um dia chegarmos em uma sociedade que sinta que precisa de arte e da cultura como quem precisa de pão. Precisamos valorizar isso. É uma construção.


OP: Será que tivemos esse vislumbre na pandemia?

Rachel: Pois é. Parece que sim e parece que não. Alguns vislumbres que tivemos na pandemia já foram esquecidos…

Rachel Gadelha, gestora pública na área da cultura no Ceará e um das pioneiras no trabalho de produção cultural no Estado(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Rachel Gadelha, gestora pública na área da cultura no Ceará e um das pioneiras no trabalho de produção cultural no Estado

OP: Naquele momento em que as pessoas precisaram se isolar em casa, sem poder acessar eventos e outras atividades, o que acabou salvando também foi a arte, não é?

Rachel: É, mas parece que as pessoas já se esqueceram disso, infelizmente. Falamos do São Luiz e eu lembro que ele é um exemplo de política cultural que tenta mostrar para as pessoas como elas são merecedoras daquilo e que é para todos.

Eu tive a alegria de ser convidada para ser a primeira gestora do Cineteatro após a reinauguração. Nós, que trabalhamos com produção cultural, enfrentamos muitos desafios, mas vamos para cima para tentar resolver as questões. O São Luiz é um equipamento muito importante. A população ansiava por essa volta. Ele viveu toda a pujança do Centro, do cinema de luxo, mas também viveu a decadência pela qual o Centro de Fortaleza passou, além da criação dos cinemas nos shoppings. Ele quase virou uma igreja evangélica, mas por uma iniciativa da Fecomércio ele foi adotado temporariamente até o governo estadual fazer o restauro.

Tínhamos esse desafio de reabrir e vinha a pergunta: o que faz o São Luiz hoje? Fomos beber na fonte da sua tradição. Um lugar que foi acesso para muitas gerações. Queríamos que fosse esse lugar ainda para muitas pessoas que ainda não o frequentavam. Há a questão de ele ser um cinema de rua na Praça do Ferreira que dialoga com uma diversidade. Fomos encontrando formas de ser uma casa acolhedora, que recebesse várias pessoas que ainda não tinham o hábito cultural ou haviam se esquecido disso para que desmembrasse para outros equipamentos. Houve experiências incríveis de trabalhar com escolas. Tudo isso é política cultural em ação.

Vi o Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, falar que para ser gestor é necessário ter visão ampla e trabalhar com todos os públicos, com um repertório ampliado. A volta do São Luiz, conquistando novos públicos, é uma experiência muito interessante. Mas os desafios não acabam. O Gilberto Gil tem uma frase que diz: “O povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”. Esse é um mantra para mim em toda minha atuação como produtora, como gestora no São Luiz e agora no IDM. Ela é pautada em oferecer às pessoas aquilo que elas ainda nem sabem o tanto que precisam e gostam.


OP: Existe uma visão, talvez um mito, de que o povo, no Brasil, não consome muita cultura, como no caso de teatro, por exemplo, por falta de incentivo. Será que isso realmente acontece na prática? De todo o modo, quais caminhos devem ser seguidos para mostrar ao público as possibilidades de consumir cultura?

Rachel: Como falei, a primeira coisa, para mim, é a educação. Trabalharmos a cultura com a educação e também envolver a comunicação. Imagina se as televisões e os streamings apresentassem a nossa produção cultural e artística com mais ênfase? Acho que são lados que temos muito ainda a caminhar. Mas temos uma responsabilidade também.

O gestor não pode se acomodar e ficar em uma “bolha” com o mesmo público - sejam universitários ou artistas, por exemplo. Temos que pensar em como ir mais longe, como sair do centro e chegar nos bairros, sair da capital e chegar no interior - e não só para apresentar, mas para ouvir, conhecer e entender. Eu tenho a compreensão de que toda escola é um centro cultural em potencial.

O Estado tem que dar as condições, assim como a sociedade e os produtores também precisam fazer acontecer. São muitas possibilidades, mas temos ainda muito a conquistar no Brasil ainda - e olha que o Ceará é um dos locais privilegiados no campo das políticas culturais, referenciado no Brasil inteiro. Temos investimentos, apoio, uma classe organizada, que reivindica, além de equipamentos novos. Mesmo assim, ainda há muito por fazer.

OP: Quando você assumiu a presidência do IDM, o então secretário Fabiano Piúba afirmou que você teria o desafio de "modernizar a gestão do IDM, na qualificação e fortalecimento da Rede Integrada dos Equipamentos Secult, no que toca ao conceito, programa, custeio, manutenção, programação e gestão". O que você buscou tocar no IDM ao assumir a gestão? Foi possível realizar o que tinha planejado?

Rachel: Eu estava na sociedade civil, em um equipamento e dando assessoria, e então fui convidada para o Instituto Dragão do Mar. É importante esclarecer que o IDM não é o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Ele é uma Organização Social qualificada pelo Estado do Ceará para fazer a gestão de equipamentos culturais. É uma instituição privada sem fins lucrativos. A criação já foi uma coisa visionária.

Foi feita para a gestão do Centro Dragão do Mar, que na época também foi dentro daquele contexto de crescimento do campo cultural no Ceará. O governo teve a visão de entender que o Estado não ia conseguir fazer a administração direta de um centro cultural daquele porte. A história do IDM está muito ligada à história da Secult e vice-versa, além de estar muito ligada à história do campo cultural do Ceará.

Fazemos a gestão de equipamentos para quatro secretarias e de equipamentos que aparentemente não têm conexão entre si, mas aí vem algo que estamos trabalhando que é a gestão em rede.

Nos últimos 25 anos, digamos, quase tudo o que aconteceu no campo da cultura de uma certa forma passa pelo IDM ou pela Secult. O instituto ficou por anos com poucos equipamentos. No governo Camilo Santana houve um crescimento exponencial. Vários equipamentos da Secult foram para a gestão do IDM. Passamos de três para 16 equipamentos, e o IDM não teve tempo de se preparar para isso. Foi nesse contexto que entrei, com o desafio de modernizar e reestruturar essa gestão. Foram inúmeros desafios.

Quando entrei, todos os processos eram físicos. Imagina fazer a gestão de 16 equipamentos com todos os processos em papel? Então, primeiro fomos fazer um planejamento do que era o Dragão, para depois uma ampla reforma administrativa. É impressionante o que vivemos nesses três últimos anos. Fazemos a gestão de equipamentos para quatro secretarias e de equipamentos que aparentemente não têm conexão entre si, mas aí vem algo que estamos trabalhando que é a gestão em rede.

Cada instituição tem sua singularidade, mas todas estão integradas e têm o que compartilhar e aprender. Todas têm que cumprir certos processos de trabalho, porque estão sob gestão do IDM, mas são todos equipamentos públicos da Secretaria da Cultura, do Meio Ambiente, do Esporte, enfim, do governo. Há esse sentido de políticas de transversalidade.

OP: Como atua o IDM enquanto uma OS?

Rachel: O IDM é um parceiro qualificado para a gestão. O Estado dá as diretrizes, a OS as traduz em ações e metas e executa essas diretrizes, prestando contas para a sociedade e para o Estado. Uma organização social é muito importante para as coisas acontecerem bem. É uma grande responsabilidade. Você lida com o Estado, com os artistas, com os produtores, com os públicos, os técnicos, os gestores, a sociedade… É essa administração da cultura, mas aliada com o pensamento político, com as diretrizes de como podemos colaborar para a sociedade. É um trabalho muito importante, rico e instigante.


OP: Esse modelo atualmente é o melhor modelo para gestão de equipamentos?

Rachel: Conversamos muito a respeito disso. É possível aperfeiçoar? Sim, mas não conheço um modelo melhor. As pessoas pensam que OS é “solta” ou uma privatização, mas não é. É fundamental a importância do Estado. Ele tem que deixar claro quais são as políticas públicas prioritárias. Outras coisas que ele tem que fazer bem são monitorar e avaliar.

A OS tem uma facilidade de gestão que o Estado não tem. Você lida com a diversidade de especificidades que o Estado jamais conseguiria alcançar na rapidez que esse campo pede. Por exemplo, há um espetáculo no qual você precisa comprar sangue para um cenário. Como você, enquanto Estado, explicaria isso sendo regido pela lei 8.666/93, em que tudo precisa de três orçamentos? Em um exemplo hipotético, porque ele não está mais vivo, mas se fizéssemos um espetáculo com o Patativa do Assaré eu não teria condições de fazer três orçamentos para ele.

São especificidades que a cultura tem de formas de gestão que o Estado não tem a agilidade necessária. É preciso esse casamento: o Estado dá as diretrizes, acompanha e monitora, e a OS trabalha com transparência e eficiência. Ainda acho a melhor forma de gestão, tanto que em São Paulo é um modelo profundamente incorporado.

Rachel Gadelha, gestora cultural

Com a volta do governo Lula reativando as políticas, o que tenho notado é que estamos em plena transição. Há uma nova geração de produtores e de gestores estudando e se capacitando

OP: Em 2015, você publicou o livro "Produção Cultural: conformações, configurações e paradoxos", com um estudo das políticas públicas de cultura nos últimos 20 anos e um panorama da atividade no Ceará. Houve alguma atualização de lá para cá? Que novas análises podem ser feitas das políticas públicas de cultura no Estado?

Rachel: Houve. Escrevi o livro até o final do governo Lula. De lá para cá, vivemos uma grande perplexidade na área cultural para além dos retrocessos. Dedicaram-se a destruir as políticas culturais. Comparo a uma peste de gafanhotos devido à velocidade e amplitude. Queriam destruir tudo. Junto com isso, teve uma pandemia. As pessoas ficaram angustiadas tentando resistir e sobreviver. Houve leis como a Aldir Blanc, vimos artistas em situação de vulnerabilidade.

Deu a sensação de que era como um castelo de areia. Tudo que achávamos que tínhamos construído foi ruindo. Hoje, porém, acho que vivemos um outro momento. No Ceará, conseguimos avançar muito. As pessoas até falavam como o Estado era “um oásis” para o resto do Brasil, porque a situação estava bem pior. Com a volta do governo Lula reativando as políticas, o que tenho notado é que estamos em plena transição. Há uma nova geração de produtores e de gestores estudando e se capacitando, procurando se aprofundar. Quando comecei a trabalhar, as pessoas diziam que produtor era aquele que “sabia fazer”.

Em outro momento diziam que produtor é aquele “que pensa”. Acho que estamos entrando em um momento de produtores que formulam, que olham para várias necessidades sociais e como você pode agir para contribuir para a política, para pressionar o Estado, como você pode fazer a gestão da cultura. Você tem que ter toda essa dimensão simbólica sensível, mas tem que conhecer de administração, de processo, de tudo.

OP: Como analisa a situação no Ceará?

Rachel: Acho que estamos vivendo uma transição de profissionais mais qualificados, uma ampliação do mercado de trabalho no Ceará. Leis como a Paulo Gustavo e a Aldir Blanc, que exige que os municípios também se organizem, que os projetos sejam bem elaborados, que tenham boas prestações de contas… Sinto que estamos em plena profissionalização e expansão do mercado. Entretanto, ainda há muitos desafios. Não podemos perder nenhuma conquista.

O Estado não pode retroceder, mas precisamos também avançar para o mercado chegar na sociedade, para que caso uma outra vez entre um governo “maluco” e queira mexer na cultura a própria sociedade possa defendê-la. Ainda há a questão da interiorização, como podemos criar mercados locais e proporcionar mais formação. Temos desafios pela frente, mas sinto que o Ceará caminha. As pessoas estão se profissionalizando e estamos avançando.

 

O que você achou desse conteúdo?