6 de janeiro de 2021 no Capitólio, em Washington, e 8 de janeiro de 2023 na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Datas que conectam duas democracias cujas relações diplomáticas completam 200 anos em 2024. Movimentos de natureza parecida, o brasileiro explicitamente inspirado em ideais, personagens e práticas dos Estados Unidos. Ambos com intenção de questionar resultado eleitoral adverso e evitar a posse dos adversários eleitos.
Brasil e Estados Unidos tiveram e têm problemas parecidos em suas democracias, afirmou Elizabeth Frawley Bagley, embaixadora dos Estados Unidos no Brasil. Ela salientou serem dois dos maiores regimes democráticos do planeta, e com diversidade maior que qualquer outro país no mundo.
Em comum, também, o fato de Luiz Inácio Lula da Silva e Joe Biden terem "difíceis antecessores", disse se referindo a Jair Bolsonaro e Donald Trump, respectivamente. Ela afirma que os dois governos já trabalham em conjunto para fortalecer as instituições democráticas.
Bagley considera haver muita sincronia e similaridade entre Lula e Biden. Ela destacou que o presidente dos Estados Unidos conhece bem a trajetória no sindicalismo do governante brasileiro. A embaixadora citou o encontro entre os dois nos quais, conforme relata, Biden se referiu a Lula como "campeão" da causa, à frente de presidentes americanos como Franklin Roosevelt e John Kennedy. "Eles (Biden e Lula) realmente se importam profundamente com as mesmas coisas”, pontuou.
Elizabeth Frawley Bagley visitou Fortaleza no começo deste mês, em agenda de fortalecimento das relações diplomáticas entre os dois países, por ocasião dos 200 anos de relações diplomáticas. Ela teve compromissos também relacionados a empoderamento feminino e combate à violência de gênero. No dia seguinte à entrevista, teve encontro com a ativista cearense Maria da Penha.
Neste tema, a embaixadora destaca inclusive diálogo com a ministra Cida Gonçalves (Mulheres) no sentido de Estados Unidos e Brasil liderarem discussão internacional sobre o tema. "O Brasil tem uma oportunidade, como presidente do G-20, de empoderar esse assunto, destacar esse problema", afirmou, destacando a lei brasileira como "uma das melhores do mundo".
A embaixadora americana ainda tratou de futuras parcerias entre EUA e o Brasil, especialmente com Fortaleza, cidade a qual ela afirmou “ter muito potencial”.
A agenda da embaixadora incluiu também a entrega do prêmio "Mulheres Brasileiras que Fazem a Diferença", que celebra personalidades de destaque em diversas áreas. Ela estava acompanhada por May Baptista, cônsul-geral no Consulado Geral dos Estados Unidos no Recife, e Jeffrey Lodermeier, cônsul para Imprensa, Educação e Cultura do Consulado dos EUA no Brasil.
"Eu acho que mostramos 200 anos de amizade. E eu sei, nós tivemos nossos problemas ao longo do caminho. Os Estados Unidos não foram perfeitos também, mas eu acho que temos de sublinhar o fato de sermos dois países enormes, as duas maiores democracias (...) E somos mais diversos do que qualquer outro país do mundo e isso é um benefício para todos nós”, disse a embaixadora.
O POVO - Quais projetos a embaixada pretende desenvolver com o Instituto Maria da Penha. O que motiva o governo americano a participar desse tipo de iniciativa e que diferença se espera fazer na vida de meninas e mulheres do Brasil?
Elizabeth Frawley Bagley - Nós realmente nos importamos com esse assunto, eu particularmente me importo muito com essa questão, eu trabalho nisso. E eu estava enviando mensagem para a minha filha, que é advogada em caso de estrupo, porque ela ia aos hospitais e era a primeira a conduzi-las após o estrupo. De mulher para mulher em vez de ter de lidar com homem, que pode ser não exatamente, como você sabe, gentil com elas.
Nós comemoramos o Dia Internacional das Mulheres. Eu estava falando com a Luiza Trajano (empresária) por um longo tempo. Ela veio para mim e disse: "Eu quero acabar com a violência contra as mulheres em quatro anos". Ela foi muito direta, “Você vai me ajudar”. E ela disse: "A primeira pessoa com quem precisamos falar é a Cida", ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, que ela conhecia. Então, ela telefonou na hora. Eu estava em São Paulo. E nós fomos conhecê-la logo em seguida. Nós almoçamos e falamos sobre problemas de amplitude geral em todo o mundo e como podemos lidar com isso.
Ela até disse que está em reforço para a aplicação da lei. Eu estou ciente. Eu tenho olhado para tudo isso, que chamamos de Vawa (Violence Against Women Act), lei de violência contra as mulheres nos Estados Unidos. Foi renovado no ano passado, e foi amparado pelo então senador Joe Biden. (O Vawa foi apresentado por Biden quando era senador em 1990 e aprovado em 1994). Então, ele se preocupa profundamente com isso também.
Eu venho trabalhando nisso há anos. Com a Hillary Clinton, para começar. E quando eu ouvi sobre a Maria da Penha, quis conhecê-la. Então, isso está em andamento há meses, por causa da minha agenda, e da dela, e eu estou realmente ansiosa para falar com ela. E eu quero falar sobre as maneiras pelas quais podemos ajudar. Nós já íamos ajudar, eu vou falar pra ela, ela já sabe, que nós vamos traduzir o seu livro para o inglês (Sobrevivi...posso contar, editora Armazém da Cultura).
E eu também quero conversar com ela sobre o que nós podemos fazer, talvez até aumente isso, e foi sobre isso o que nós conversamos com a ministra, de fazer isso do modo correto e usar no G20. Porque de todas as partes do G20, esse é provavelmente o primeiro dos três pilares.
Um é igualdade racial, é igualdade de gênero e combate à pobreza. Este é o primeiro pilar. O segundo pilar é desenvolvimento sustentável e meio ambiente, e o terceiro é mudar a governança. Governos mundiais mudando, expansão do Conselho de Segurança da ONU.
Eu penso que essa é uma oportunidade para o Brasil, como presidente do G20, de empoderar esse assunto, destacar esse problema. Realmente estar na vanguarda disso com uma lei que é na verdade uma das melhores no mundo.
Eu estou pedindo para a minha equipe descobrir quantas leis para os países do G20 existem contra a violência baseada em gênero. E talvez nós pudéssemos ter algo que possamos anunciar.
OP - A lei Maria da Penha é um grande avanço no Brasil em termos de direitos das mulheres na legislação, mas há problemas na eficácia das leis. A colaboração internacional pode ser uma contribuição? Como nações podem se juntar para garantir que leis sejam mais eficazes e realmente protejam as mulheres?
Bagley - Eu acho que nós precisamos, primeiro de tudo, dar destaque. E se temos algo no G20 como modelo no nosso ou em outros países, a pior parte é a aplicação da lei. Como nós podemos melhorar a fiscalização? O ato em si é muito bom. Mas como você aplica isso?
Nós precisamos conscientizar as pessoas, e esses livros são sobre isso, falar sobre respeito, dignidade, todas essas coisas que são elementares. E também, em termos de legislação, precisamos achar caminhos para que essas leis possam ser executadas. Há muito o que pode ser feito, unindo corações e mentes.
Não é bom a menos que você possa aplicá-lo. Há um monte de coisas que estão sendo discutidas, mas é preciso pensar como aplicar isso. É necessário conscientizar as pessoas, meninos e meninas, quando eles estão na escola. É preciso falar a respeito de dignidade e todas essas questões.
É elementar, em termos da lei é necessário achar maneiras de ser aplicadas. Coisas como a minha filha estava fazendo, que era ser voluntária, fazer um treinamento de seis semanas em um hospital em Nova York, de plantão todas as noites, e muitas vezes ninguém telefona. Mas de vez em quando, no meio da noite, alguém liga para dizer que houve um estupro. E eu acho que há muitas coisas que podem ser feitas.
Ter certeza de que as pessoas entendem que isso é realmente um problema, isso é um grande problema nos Estados Unidos. É duro.
OP - Após a lei Maria da Penha, o Brasil aprovou a Lei do Feminicídio, sobre crimes graves contra mulheres. A senhora também mencionou Vawa. Estados Unidos e Brasil podem ser protagonistas em uma mudança mundial no assunto?
Bagley - O Brasil tem uma oportunidade de ser um destaque neste quesito. Há um grupo empoderamento da mulher, e há tantos grupos com energia e procurando por empoderamento. E isso faz parte do processo.
OP - Brasil e os Estados Unidos celebram neste ano 200 anos de relações diplomáticas. Quais são as principais marcas dessa relação que dura tanto tempo?
Bagley - Tudo o que estamos fazendo é porque o bicentenário é muito importante. Primeiro de tudo, nós fomos os primeiros. Nós chamamos o embaixador, ele foi a Washington, na Casa Branca, apresentou as credenciais, e foi aí quando começou a relação diferenciada, quando reconhecemos a independência do Brasil de Portugal. Isso foi em 26 de maio de 1824.
O país seguinte a reconhecer o Brasil foi Portugal, em setembro de 1825. Estávamos cerca de um ano e meio à frente de todo mundo (no reconhecimento da independência brasileira). E eu perguntei aos meu amigos europeus: "Por que vocês não fizeram o mesmo?" Ele disse que foi por respeito a Portugal, mas nós fomos os primeiros e eu estou muito orgulhosa disso.
Eu acho que mostramos 200 anos de amizade. E eu sei, nós tivemos nossos problemas ao longo do caminho. Os Estados Unidos não foram perfeitos também, mas eu acho que temos de sublinhar o fato de sermos dois países enormes, as duas maiores democracias, a segunda maior presença militar, segunda maior economia. E somos mais diversos do que qualquer outro país do mundo e isso é um benefício para todos nós.
Nós temos os nossos problemas de imigração agora, mas nós somos uma nação de imigrantes. Meus avós vieram da Irlanda e eu sou cidadã irlandesa, com muito orgulho. Há muitos de nós e há muitos de vocês todos. Eu me lembro a primeira vez que vim e alguém disse: "O meu nome é Cavaleri". Eu disse: "Isso soa italiano", e ela falou: "Não, a minha família está aqui há séculos".
Eu fui embaixadora em Portugal, e todos têm nomes portugueses e aqui vocês têm nomes alemães, italianos, japoneses. E é como os Estados Unidos, você pode ser irlandês, havaiano.
OP - A senhora falou da importância de duas grandes democracias estarem colaborando juntas. Os dois países tiveram problemas com movimentos antidemocráticos. Como a colaboração internacional pode ajudar para que situações como essas não aconteçam novamente?
Bagley - Nós certamente tivemos os nossos problemas. Nós somos países que tivemos, cada um, difíceis antecessores (Donald Trump e Jair Bolsonaro). Nós tivemos o dia 6 de janeiro, vocês o 8 de janeiro dois anos depois. Nós tivemos eleições polarizadas. Nós temos essa direita, pessoas loucas, fazendo coisas nas redes sociais e isso é algo que o presidente Lula e o presidente Biden estão preocupados nas nossas eleições presidenciais, nas nossas eleições em particular.
É a importância que se viu na carta escrita pelo presidente Biden logo após a celebração da democracia que o presidente Lula fez em janeiro. Eu fui à Casa Branca e disse: "Presidente, você precisa ver isso". Nas eleições no Brasil, que foram difíceis, no minuto em que Lula foi anunciado, nosso presidente foi o primeiro a congratular. E ele também ligou e o convidou para visitar a Casa Branca e ele veio seis semanas depois.
E mesmo durante a campanha, o nosso secretário de Defesa veio, o conselheiro de Segurança Nacional, gente do departamento de Estado. Basicamente, apenas conversando com seus interlocutores e dizendo para aceitar a eleição. E realmente já sabíamos dos nossos grandes problemas de reabilitação, algo que ninguém jamais imaginou que teríamos, poderia acontecer aqui também. Então, houve orientação para se certificar de que a democracia seria defendida no Brasil. E eles fizeram.
E eu acho que isso é uma incrível indicação de onde nós estamos, e essa carta é simplesmente linda. Isso foi basicamente a celebração da democracia e de todas as coisas que estamos fazendo juntos. Os planos de ação para eliminar o racismo e discriminação.
O nosso secretário do Comércio esteve em dezembro com o (Geraldo) Alckmin, eles se reuniram para falar sobre como podemos melhorar o comércio e o investimento. E há um número de coisas que estamos fazendo juntos e isso é uma das ações do bicentenário que provam o nosso longo relacionamento. É também uma celebração da democracia, direitos humanos, valores que dividimos e tudo isso será apontado durante todos os meses e todos os dias durante o ano.
OP - Parece uma pergunta óbvia, mas, em momentos como estes em que vivemos agora, por que é tão importante defender a democracia e os países trabalharem juntos para defendê-la?
Bagley - Porque a democracia é o único modo de as pessoas viverem com escolha. Não é um sistema perfeito. É uma confusão. Mas não há pessoa que não seja confusa. A alegria de poder discutir coisas diferentes, mas diferentes, pacificamente para dar às pessoas o direito e as oportunidades de avançar.
OP - Haverá uma parceria entre Fortaleza e o Havaí. O que Fortaleza tem de importante para os Estados Unidos nos escolherem. O que será essa parceria?
Bagley - Eles escolheram Fortaleza e o Havaí, há outras cidades como Manaus. São duas de 12 no total na América do Sul, América Central e América Caribenha, o que é bastante e isso diz muito. Vocês têm duas fabulosas universidades aqui, há muito sobre carreira de negócios, inovação, educação. Então é Fortaleza no mapa, vocês tem muito potencial.
OP - Haverá um evento nessa parceria?
Bagley - Haverá em maio. Fortaleza será anfitriã de 24 cidades, 12 dos Estados Unidos. Fortaleza foi escolhida para ser a anfitriã disso, o que é uma grande honra. É sobre parceria.
É tão óbvio, mas ninguém pensou sobre isso antes. Na primeira visita do presidente Lula à Casa Branca, o presidente Biden sabia tudo sobre o seu movimento trabalhista e ele disse: "Você será o campeão". Mais um campeão do que, ele disse, FDR (Franklin D. Roosevelt), JFK (John F. Kennedy) e qualquer outro. Você foi o campeão, ele disse. Nós temos de nos unir nisso.
Ambos se preocupam muito com o movimento trabalhista, com os direitos dos trabalhadores e com o trabalho decente. Óbvio que o Lula se importa muito, é o que ele é, e o Biden também. Há muita sincronia, similaridade entre eles dois. Eles realmente se importam profundamente com as mesmas coisas.
E a parceira pelo direito dos trabalhadores fará parte do G20, eles estão trabalhando nisso agora, enquanto conversamos. Quando nosso secretário de Estado veio, foi uma das primeiras coisas que ele perguntou, e o Lula disse que temos o ministro do Trabalho e a sua secretária trabalhando. A Casa Branca e o Planalto estão envolvidos.
Então há algo muito forte vindo e nos pediram outra parceria em transições energéticas, que é algo que o presidente Lula e o Itamaraty pediram a mim.
OP - E Fortaleza tem papel nisso?
Bagley - Sim. Hidrogênio verde, minerais, sais.
OP - A senhora falou sobre a expectativa de encontrar a Maria da Penha, porque ela é um ícone no Brasil na luta pelos direitos das mulheres e justiça. O que você pensa sobre essa figura?
Bagley - Eu mal posso esperar para conhecê-la (a embaixadora se encontrou com Maria da Penha no dia seguinte à entrevista). Ouvi muito sobre ela, o que aconteceu. Faz 19 anos que ela trabalhou para conseguir esta lei e aqui está ela, sabe. As pessoas dizem ao conhecê-la que é muito poderoso, porque ela é claramente uma pessoa poderosa. Todo mundo deve apenas honrar e respeitar. O fato de ela ser um instituto agora, já se passaram 18 anos e acho que o melhor que podemos fazer para honrá-la é garantir que a lei seja aplicada.
Do que adianta ter muitos atos se você não os aplica. É isso o que eu quero falar com ela. O que nós podemos fazer para ajudar, já estamos fazendo um pouco, mas como podemos ajudar?
Nos Estados Unidos nós temos o Vawa, lei de violência contra as mulheres. É o “bebê” do presidente Biden. Temos alguns dos mesmos problemas. Minha filha trabalha nisso há muito tempo, eu trabalhei contra o tráfico de pessoas nos Estados Unidos. Eu conheço essa situação e ela sabe ainda melhor do que eu porque ela estava na linha de frente.
Os policiais podem não ser sensíveis a isso ou pensar que a mulher não estava certa. Não é apenas no nosso país ou um problema brasileiro, está em todo o lugar. Minha filha esteve nisso, mas eu acho que você tem que institucionalizar com formação de assistente social também para homens.
Como você trata as mulheres na sua vida, sua namorada ou mãe, ou qualquer outra pessoa? Pois há uma educação no começo, desde o jardim da infância, você sabe que tem de ser bom. Você conhece as pessoas, respeita-as e trata-as com bondade e dignidade. Há muito o que ser feito. Mas eu acho que ela é definitivamente um símbolo de resiliência.
CElizabeth Frawley Bagley se encontrou com a Maria da Penha no dia 6 de abril. A embaixadora classificou o momento como "inspirador"
A juíza federal Joana Carolina Lins Pereira recebeu da embaixadora o certificado como uma das seis vencedoras do prêmio Mulheres Brasileiras que Fazem a Diferença 2024. A entrega ocorreu na Sala de Sessões das Turmas Recursais do edifício-sede da Justiça Federal do Ceará (JFCE)
A entrevista foi realizada em inglês, a pedido da embaixada. A tradução foi feita pelos autores
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