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Cristovam Buarque: "Lula prefere ceder à direita do que ser ditador"
Reportagem Seriada

Cristovam Buarque: "Lula prefere ceder à direita do que ser ditador"

Cristovam Buarque avalia o governo Lula 3 e a atual condução do País pelo PT. Ex-ministro da Educação do governo Lula 1, ele analisa também a gestão Camilo Santana à frente do MEC e faz revelações acerca de sua saída do PDT após disputa interna com Ciro Gomes

Cristovam Buarque: "Lula prefere ceder à direita do que ser ditador"

Cristovam Buarque avalia o governo Lula 3 e a atual condução do País pelo PT. Ex-ministro da Educação do governo Lula 1, ele analisa também a gestão Camilo Santana à frente do MEC e faz revelações acerca de sua saída do PDT após disputa interna com Ciro Gomes
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Dono de extenso currículo na política nacional, o ex-ministro da Educação Cristovam Buarque esteve em Fortaleza, em junho, participando do Fórum Executivo de Educação Pública (Feep). Além de ministro, Buarque foi candidato a presidente pelo PDT, em 2006, senador da República (2003-2019), governador do Distrito Federal (1995-1998) e reitor da Universidade de Brasília (UnB). No entanto, o “título” mais importante, segundo ele mesmo, é o "pernambucano".

Nascido no Recife, Cristovam transitou pelos corredores do O POVO no último dia 21 de junho, quando participou de programa na Rádio O POVO CBN e posteriormente concedeu a entrevista que segue abaixo. Aos 80 anos, Buarque não deixou de ser voz em defesa vigorosa da bandeira da Educação, sendo conhecido por sua inquietação com o tema e por falar sem eufemismos.

Cristovam Buarque, sociólogo e político nasceu em Pernambuco(Foto: Geraldo Magela)
Foto: Geraldo Magela Cristovam Buarque, sociólogo e político nasceu em Pernambuco

O professor avaliou o governo Lula 3 e a condução do País pelo PT, partido do qual já fez parte. Analisou a gestão do ministro Camilo Santana (PT) à frente do MEC e fez revelações acerca de sua saída do PDT, em 2016, na esteira de uma disputa interna que envolvia o cearense e também ex-ministro Ciro Gomes (PDT).

Na data da entrevista ao O POVO, completaram-se 20 anos da morte do ex-governador Leonel Brizola, maior símbolo nacional do trabalhismo pedetista que marcou uma geração da política nacional, o que fez com que o ex-senador fizesse ainda um exercício mental, projetando como o companheiro de fileiras políticas estaria, hoje, num Brasil marcado, e muito, pela turbulência política.

 

 

O POVO - O senhor foi ministro da Educação, cargo que hoje é ocupado pelo cearense Camilo Santana. Como o senhor avalia o desempenho dele à frente do MEC?

Cristovam Buarque - Primeiro, o Lula não poderia ter escolhido um nome melhor. Pela experiência do Camilo e pelo que a gente sabe hoje que ele é um dos grandes líderes no Ceará. Eu tenho um carinho grande por Tasso Jereissati. Acho que foi o grande governador que deu a virada (de chave). Mas hoje o Camilo é um grande líder e é um homem que fez educação. Fez do Ceará uma referência. Veja que eu não usei ‘exemplo’. O problema é que o ministério está errado. O MEC é um ministério do ensino superior. Ele é prisioneiro das universidades e dos institutos tecnológicos e qualquer outro seria também. Veja que além dele, o Lula fez um belo gesto de colocar a Izolda (Cela, hoje ex-secretária executiva do MEC). Então essa dupla é excelente, mas o ministério não é da educação de base, porque a educação de base é municipalizada no Brasil.

Camilo liderou o terceiro PNE, Plano Nacional da Educação. O terceiro. Faz 20 anos que a gente tem esses planos e não dá resultado. Por que? Porque o plano é a ideia, o que dá resultado é ter a ferramenta lá embaixo e a ferramenta está com os municípios. Eu creio que a avaliação desse período não é positiva como deveria para a educação, mas não por causa deles (Camilo e Izolda). Por causa do ministério. Qualquer outro teria essa dificuldade, talvez até maior do que ele, porque ele é mais preparado, tem sensibilidade. Mas no fim fica prisioneiro. Chegou no MEC, fica prisioneiro do ensino superior.

Por isso, defendo que haja um ministério para educação de base. Melhor, eu defendo que o MEC seja um ministério para a Educação de base. E as universidades? Universidades vão para Ciência e Tecnologia como, aliás, acontece nos estados. Nenhum estado do Brasil tem as universidades na secretaria da educação. Ou estão na Ciência e Tecnologia ou em uma secretaria específica ou, no caso de São Paulo, mais vinculado diretamente ao governador. Mas o conselho que dirige é do secretário de Ciência e Tecnologia. Então, minha avaliação é esta: Não podia ter ministro melhor, mas o ministério não é bom.

Professor Cristovam Buarque visitou O POVO neste mês de maio de 2024 (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Professor Cristovam Buarque visitou O POVO neste mês de maio de 2024

OP - O Ceará, como o senhor falou, é uma referência educacional. Na sua avaliação, é possível replicar o modelo cearense em âmbito nacional?

Cristovam - O Ceará é uma referência, mas ainda é muito menos do que deveria ser. Eu gosto de comparar o Ceará não com Pernambuco, com Rio de Janeiro, com Minas Gerais. Eu gosto de comparar o Ceará com a Finlândia, com a Coréia do Sul, com a Irlanda. Lugares que realmente fizeram com que quase todos concluíssem o Ensino Médio. E que esse Ensino Médio seja, de fato, formador para contemporaneidade, que significa o quê? Que todo mundo que terminar o Ensino Médio seja muito bom em português, como os jornalistas do O POVO são. Que todos tenham um idioma a mais. Aliás, assisti a uma fala do vice-prefeito (de Fortaleza) Élcio Batista e ele falou muito nisso.

O Brasil tinha que ser bilíngue. Todos no mundo moderno têm que ser. Todo mundo deveria conhecer as bases da Filosofia, das ciências, Matemática, Geografia, História e poder assistir à televisão e quando falar na Ucrânia, no Oriente Médio, saber o que é aquilo. Todo mundo deveria terminar o Ensino Médio com um ofício. Não vai ser um profissional de nível superior, mas pode ser um bom cozinheiro. Vai ser capaz de ser um garçom que fala três idiomas e entende de vinho. Ou alguém que saiba como tratar um diabético. Ou um fotógrafo. Então, um modelo de ensino que gere um ofício. Todo mundo deve sair do Ensino Médio sabendo que precisa continuar estudando, porque hoje tudo muda muito rápido. E ser capaz de disputar uma vaga na melhor universidade do Brasil, nas mesmas condições que os outros.

O Ceará ainda não conseguiu isso e não conseguiu que as escolas públicas sejam tão boas quanto as particulares mais caras. Já são melhores do que as particulares mais baratas, mas os grandes colégios do Ceará, por exemplo, ainda são os melhores. Nas cidades com boas escolas no sistema público, a classe média alta ainda prefere uma particular. Eu quero que um dia seja o contrário, que os ricos briguem para ter os filhos nas escolas e na universidade pública. E onde é que acontece isso no Brasil? Não é por cidade, é por escola. Os ricos brigam para ter os filhos no Colégio Pedro II (RJ); no Colégio Militar, aqui em Fortaleza. E os municípios têm bons exemplos.

Eu vi, no Tocantins, em Palmas, uma desembargadora entrou na Justiça para conseguir vaga para o filho num colégio municipal. O que também é um absurdo porque tomaria o lugar de uma pessoa pobre. Mas só tinha três escolas assim, eu quero que sejam todas. O Ceará é uma referência, as coisas que fizeram aqui, de combinar os professores, com os pais, com a cidade. O envolvimento da cidade que Sobral consegue. Os pactos que foram feitos aqui são uma referência, mas ainda não são suficientes.

Aí entra outra coisa, replicar. Tendo essa referência já seria muito bom replicar. Mas não vamos replicar esperando que cada prefeito queira, são quase seis mil (municípios). Não dá. Teria que ser o governo federal, tomando a iniciativa de levar o exemplo para o resto do Brasil. Não pode impor, mas a cidade que quiser e não tiver condições peça ao governo federal que a gente federaliza. Uma espécie de federalização voluntária, aí manda professor de carreira federal. Constrói os prédios com padrões federais. Na Copa do Mundo não teve o tal do padrão Fifa? Por que não tem um padrão escola? 

Acho um erro o presidente Lula não ter adotado essa ideia de criar cidades com educação federal. Ele poderia implementar em 100, 150 cidades nesse tempo que resta. Aí sim, seria uma referência. Mas não é possível esperando que os prefeitos repliquem, é preciso o Brasil ir replicar nos municípios.

Cristovam Buarque foi senador, reitor da UnB e governador de Brasília (Foto: CHICO ALENCAR)
Foto: CHICO ALENCAR Cristovam Buarque foi senador, reitor da UnB e governador de Brasília

OP - O senhor foi senador, governador e ministro. Nos últimos anos, a relação entre Congresso e Executivo foi marcada por períodos de turbulência. Como o senhor avalia a dinâmica atual da relação entre o Parlamento e o Governo Federal?

Cristovam - O que provoca a turbulência? O vento. Qual o vento que sopra para provocar a turbulência política no Brasil? Eu acho que é a falta de escolas. Se a gente tivesse, há 30 anos, um sistema educacional formando todo mundo com Ensino Médio completo, com aquelas características que eu lhe disse anteriormente. E eu esqueci uma característica, que é a formação política para ser solidário com o resto do País e com a natureza. Se a gente formasse uma sociedade com estas características não teria o vento que sopra criando turbulência. Que é o quê? Muitos eleitores precisarem vender o voto. Eleitores que não vendem voto, mas não entendem o discurso. Veja que estou colocando a culpa mais em nós eleitores, não sou eleito, hoje sou eleitor. Nós eleitores escolhemos os parlamentares que provocam essa turbulência, numa quantidade imensa de partidos. Cada parlamentar, hoje, só quer saber de sua emenda para dizer que construiu uma obra na sua cidade. A base da turbulência é a falta de educação.

Mas a turbulência existe, como é que se administra? Creio que não tem ninguém melhor que o Lula para administrar isso. O Lula é um bom maestro. Ele não está conseguindo que a orquestra toque a partitura dele. PECs, leis importantes ele não consegue aprovar, mas melhor do que ele a gente não vai ter. O momento que a gente vive é de turbulência. A violência nas ruas, que é uma turbulência social, vem da falta de educação lá atrás, como Darcy Ribeiro alertou: Ou a gente faz escola hoje ou vai ter que fazer presídio no futuro. O que está faltando no governo Lula é sinalizar para onde vai o Brasil. O maestro só toca no presente, quando você vai embora não está mais ouvindo. Então é preciso saber e depois? Está faltando bússola. Nós temos a batuta do maestro, o Lula é uma boa âncora para a turbulência e para que o barco fique aqui, o que a gente não tinha com o Bolsonaro, mas ele não está conseguindo dizer para onde ele quer que o Brasil chegue daqui a 20 ou 30 anos.

Eu posso dar um exemplo que tem tudo a ver com a minha carreira. Eu que criei o Bolsa Escola, que virou o Bolsa Família. Então é claro que eu defendo o fato do Lula trazer isso de volta e ter se organizado bem. Mas ele ainda não disse como é que a gente vai fazer para que daqui a 30 anos, ninguém precise mais de Bolsa Família. É ótimo que a gente tenha o Bolsa Família, mas é uma tragédia se a gente ainda precisar de Bolsa Família daqui a 30 anos. Se precisar vai ter que ter.

Em relação ao Meio Ambiente, o Lula trouxe de volta a proteção das florestas com a Marina Silva, mas o Alckmin, que seria quem deveria fazer isso como ministro da Indústria, ainda não disse como vai ser a indústria que vai respeitar as florestas, de tal maneira que além de conservar gere renda. Como o governador (João) Capiberibe nos ensinou quando era governador no Amapá. Ele conseguiu tirar riqueza das árvores em pé, como ele dizia. Árvore em pé tem valor, gera renda. Está faltando um lado bússola no governo Lula.

FORTALEZA-CE, BRASIL, 20-06-2024: Cristovam Buarque dando entrevista para o repórter Vitor Magalhães.  (foto: Beatriz Boblitz/O Povo)                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           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Foto: BEATRIZ BOBLITZ FORTALEZA-CE, BRASIL, 20-06-2024: Cristovam Buarque dando entrevista para o repórter Vitor Magalhães. (foto: Beatriz Boblitz/O Povo)

OP - O senhor foi candidato a presidente em 2006, pelo PDT, contra o próprio Lula e alguns outros nomes, mas saiu do partido após discordâncias com o ministro Carlos Lupi. Aqui no Ceará, PT e PDT romperam em 2022 colocando então aliados em lados opostos, incluindo os ex-governadores Ciro e Cid Gomes. Como o senhor avalia essa dinâmica da política, de alianças e rompimentos?

Cristovam - Ótima pergunta e vou abrir o coração para dizer o que eu acho. Primeiro, vou dizer algo que pouca gente sabe. Minha discordância com o Lupi, que me fez sair do PDT, foi quando o Ciro entrou. Não que eu fosse contra a entrada do Ciro, mas eu queria ser o candidato a presidente outra vez. Tinha sido em 2006, tinha um recall, acho que estava mais preparado e meu nome tinha ficado mais nacional. O governador do Distrito Federal, tem 2% dos eleitores ali, mas depois que eu fui senador, com aquela tribuna, eu cresci. Eu cheguei a propor uma disputa dentro do partido entre eu e o Ciro, uma prévia. Aí, de repente, inclusive foi aqui no Ceará que eu estava, vi no jornal o Lupi dizendo que candidato já estava escolhido e era o Ciro. Fiquei muito chateado e pensei, pensei, e saí. Sinceramente, falei que ia abrir o coração, e hoje acho que foi um erro (sair do PDT). Deveria ter continuado e feito a disputa interna, mesmo sem ser candidato.

Agora, você disse que eu disputei com o Lula. Eu não disputei com o Lula, eu disputei pela educação. E aí enfrentei três nomes de peso: ele, Alckmin governador e Heloísa Helena, que tinha um charme muito grande com a esquerda. Então eu não disputava com esses grandes nomes. Eu quis fazer o discurso da educação. Se eu tivesse sido candidato naquela época (2018) acho que a disputa já não seria a mesma desigualdade, porque Lula não era candidato e aí mudava muito a figura. Acho que teria tido um espaço maior para levar a bandeira da educação.

Mas voltando aqui, para o local, eu confesso que quando comecei a ouvir os rumores (do racha no PDT), achava que era um teatro dos Ferreira Gomes e que não havia essa disputa tão séria entre eles. Até porque eu cheguei a estar num evento em que estava a senhora mãe deles (Maria José Ferreira Gomes), que foi uma figura que me impressionou muito na única vez que a vi. E ela passava a ideia de ser uma unificadora e que aquela família era “indesuniada”, mas aqui nesses dias e conversando com muita gente eu percebi que é para valer.

Eu acho isso muito ruim, do ponto de vista familiar e emocional. Eu tenho um irmão. Eu lamento, mas lamento mais que isso não tenha uma bandeira clara. Qual é a bandeira clara entre Cid e Ciro? Qual a bandeira clara entre PDT e PT, que compõem o mesmo governo (nacionalmente). Não é por bandeiras, é por disputas eleitorais e isso que entristece mais. Mas eu sou um observador externo, talvez eu esteja enganado. Esses caras fizeram juntos a experiência de Sobral, quem é mais responsável positivamente pelo Ceará ser, hoje, uma referência? Cid ou Ciro? Não dá para separar. Ou estou errado? Não dá. Tenho acompanhado e acho que não é teatro. É uma briga, mas sem uma razão clara.

Dito isso, quero dizer que tenho uma dívida imensa com o Lupi. Saí do PDT quando discordei, mas tenho dito que ele me escolheu. Nós tivemos uma prévia quando fui candidato a presidente (em 2006) teve uma prévia dentro do PDT. Eram três candidatos, dentre os quais havia um cara expressivo que era o Jefferson Peres, que depois foi meu vice. Não era a primeira vez que fazia prévias. Vamos falar com franqueza, o Lupi é forte demais. E eu devo minha candidatura, apesar da prévia, ao Lupi e não esqueço isso. Até porque o ponto mais alto da carreira política é a candidatura presidencial. Muitos falam que é ser presidente, não. Presidente não é política, é destino. É como um papa, todo padre que sai do seminário pode dizer que quer ser cardeal, mas que quer ser papa não. Papa é o Espírito Santo que define. Então presidente é o destino, não é só partido, mas candidato a presidente, sim, é o ponto que considero mais alto da minha carreira. Devo ao Lupi isso.

OP - Neste 21 de junho (data da entrevista), completa-se 20 anos da morte de Leonel Brizola. Qual o legado dele e como o senhor acredita que ele estaria hoje na política, com toda essa turbulência que comentamos?

Cristovam - Eu vou responder essas duas perguntas e acrescentar mais uma a partir disso. Primeiro eu quero agradecer, por me lembrar dessa data. Eu fui ao enterro do Brizola. Lembro que fomos de Brasília ao Rio de Janeiro, carregamos o caixão do Rio de Janeiro a Porto Alegre e de Porto Alegre até São Borja (Interior do RS). Estive lá no momento em que ele foi colocado ao lado do João Goulart e do Getúlio Vargas, estão juntos.

Segundo, como estaria ele (Brizola) hoje? Iria colocar a educação no centro, como algo muito forte, mas eu temo que na economia ele estaria superado. O mundo de hoje é completamente diferente do que era quando ele foi formado nos anos 1950. O nacionalismo, por exemplo, essa coisa maravilhosa já não é mais o mesmo. Houve um tempo em que o mundo era a soma dos países, mas hoje cada país é um pedaço do mundo. Então, a gente não tem mais a liberdade que tinha, porque o que a gente faz aqui repercute no mundo. Queimar a Amazônia repercute no mundo, montar uma central nuclear repercute no mundo. Então, o Brizola, eu acho que se ele não se adaptasse ele teria um discurso não bom para a economia. Sem querer polemizar, mas polemizando, é o que às vezes eu sinto no discurso econômico do Ciro, eu acho que tem uma certa nostalgia. Como eu acho que a esquerda inteira brasileira sofre uma nostalgia de ideias que não se aplicam mais ao mundo de hoje. Um mundo dos limites.

Hoje nós temos limites ecológicos, não dá para todo mundo ter um carro. Aí vai ter que escolher, ou defender o sistema público de transporte ou assumir, como a direita faz, que só alguns vão ter carro. A diferença nossa para a direita é que eles dizem ‘não, só alguns que vão ter consumo alto’. A gente não, mas não dá mais para a gente dizer que todos vão ter consumo alto. A gente vai ter que trazer uma utopia nova, dizer: ‘olha, vocês não vão ter o que os pais de vocês tiveram, mas vocês vão ser mais felizes porque vocês vão ter isso e aquilo’. Os limites ecológicos. Segundo, os limites do Estado, a liberdade e o poder que tinha o Estado antes. Hoje, eles ficaram esgotados. Terceiro, a Previdência. Não vai dar mais para ter a Previdência de antes, porque agora não se tem tantos filhos. O que mantinha a previdência é que os pais tinham muitos filhos. Então, antes da Previdência, os filhos mantinham os velhos, depois os filhos pagavam a previdência. Com isso pagava-se a aposentadoria, mas agora tem poucos. Eu conheço tantos jovens que não querem ter filhos. Isso esgota as finanças.

Então, nós estamos num tempo de era dos limites. A esquerda não percebeu ainda e está prometendo para todos o que, agora, só dá para poucos. Por isso que a direita está ganhando na Europa. Porque a direita diz: ‘Aqui não entra imigrante’. A esquerda diz: ‘Tem que receber os imigrantes’, mas não cabem. O que você tem que fazer é dar apoio aos imigrantes, para que eles não precisem vir. A esquerda deveria estar defendendo um Bolsa Família Mundial. Você pagar para que uma família fique em Honduras é mais barato do que construir um muro nos Estados Unidos. Na Síria, já não dá para segurar porque é guerra, mas onde o problema é a pobreza, dá. Então, a esquerda perdeu isso e acho que o Brizola, hoje, não traria uma proposta econômica, se ele não se modernizasse, mas poderia ter se modernizado pela genialidade que ele tinha.

E o mais importante, como ele agiria na turbulência política?! Pelo menos ele ia ter bússola. ‘Eu quero chegar ali’ e aí iria negociar. O Brizola foi um governo de negociação, como o (Miguel) Arraes. Arraes era o governador dos camponeses, mas o vice dele era usineiro. Ele tinha a bandeira para os camponeses e quando ele trazia um usineiro para vice ele não abandonava os camponeses. Ele, claro, dizia que daria dentro dos limites o que os usineiros vão permitir. Essa greve, que a gente falou da greve dos professores (a paralisação dos professores das universidades federais foi encerrada dias após a entrevista), me toca muito porque sou professor aposentado. Pois bem, sou tocado por isso e não tem recursos para dar e também tem que respeitar que, nesse momento, o governo Lula não tem condições. A não ser que tire dinheiro do Bolsa Família ou dos poderosos. Esses, o governo Lula também desperdiça muito, mas também não tem força para bater na mesa e dizer: ‘Olha, acabou emenda de deputado, vou pegar e colocar para professor universitário.

O orçamento é limitado pelos essenciais, que ele tem que gastar, e pelos poderosos que tomam parte do dinheiro. O Brizola talvez enfrentasse com mais bravura, vamos dizer assim, com mais gauchismo. Mas não vejo como seria tão diferente, não, e seria até temerário. Porque uma coisa que a gente tem que respeitar no Lula, mais que nos outros, é que ele não transige com a democracia. Ele fica com a democracia. Lula prefere ceder à direita do que ser ditador.

A tentação de ser ditador não é só de Bolsonaro, pode ser de qualquer um que quer fazer o bem. Bolsonaro quer fazer o mal, mas poderia ser para quem quer fazer o bem, pensar ‘esses deputados estão atrapalhando’. Isso é um perigo. Felizmente, Lula não tem essa tentação. Aí as pessoas acham que ele está cedendo mais do que deveria. Eu não sei, aí tem que estar por dentro para saber onde limites. Mas eu sinto falta de bandeiras, bandeiras de longo prazo.

O Brizola acho que teria mais bandeiras de longo prazo, sobretudo em educação (...) É um bom exercício, pensar como seria o governo Brizola, um governo Arraes, um governo Juscelino, como seriam esses presidentes hoje. A primeira coisa é que eles teriam que mudar muito suas cabeças. E que lamentavelmente, eu deixo essa mensagem aqui. A esquerda, da qual eu faço parte - embora muitos acham que não porque votei pelo teto (de gastos) e eu não vejo como uma pessoa pode ser de esquerda e defender gastar mais do que o Estado tem que é o que a direita sempre fez no Brasil -, mas eu acho que a esquerda está com a ideia muito nostálgica do passado e não está conseguindo se adaptar ao presente para fazer o que é possível e necessário para o mundo de hoje.

 

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