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Maior medalhista paralímpico do Brasil, Daniel Dias levanta bandeira contra capacitismo
Reportagem Seriada

Maior medalhista paralímpico do Brasil, Daniel Dias levanta bandeira contra capacitismo

Ex-nadador, que soma 100 medalhas entre Paralimpíada, Parapan e Mundiais, além de diversos recordes, usa trajetória vitoriosa nas águas para incentivar outros jovens com deficiência a entrarem no esporte

Maior medalhista paralímpico do Brasil, Daniel Dias levanta bandeira contra capacitismo

Ex-nadador, que soma 100 medalhas entre Paralimpíada, Parapan e Mundiais, além de diversos recordes, usa trajetória vitoriosa nas águas para incentivar outros jovens com deficiência a entrarem no esporte
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Nascido em 24 de maio de 1988, Daniel de Farias Dias sempre foi ligado aos esportes, ao lúdico e à atividade física.

Com a má formação congênita dos membros superiores e na perna direita, o sonho de um dia se tornar jogador de futebol permeou seu imaginário, alimentado por jogos realizados com amigos nas ruas e escolas de Campinas (SP), mas foi substituído pela sede das águas em 2004, após uma reportagem que exibia o sucesso do nadador Clodoaldo Silva nas Paralimpíadas de Atenas, quando, pela primeira vez, vislumbrou a possibilidade da prática do esporte paralímpico.

Com quatro ouros, quatro pratas e um bronze conquistado em Pequim-2008; seis ouros em Londres-2012; quatro ouros, três pratas e dois bronzes na Rio-2016; e três bronzes em Tóquio-2020, Daniel Dias é o maior medalhista paralímpico do Brasil, com 27 medalhas, e almeja, após a trajetória vitoriosa nas piscinas, criar um legado positivo no que diz respeito à inclusão esportiva das pessoas com deficiência no País.

Daniel Dias é até hoje o atleta paralímpico masculino com mais medalhas em Jogos(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Daniel Dias é até hoje o atleta paralímpico masculino com mais medalhas em Jogos

Em passagem por Fortaleza para o Congresso Brasileiro de Ortopedia Técnica, no início de setembro, em Fortaleza, a lenda esportiva falou, em entrevista exclusiva de quase 50 minutos ao O POVO, sobre as dificuldades em uma vida tendo o preconceito e o capacitismo como obstáculos, e as alegrias em enxergar o esporte como catalisador de grandes oportunidades.

Salientando a deficiência como uma característica, e não uma definição, Daniel expressou os sentimentos sobre cada conquista, feitos que o colocaram como o único brasileiro a conquistar três Prêmios Laureus, honraria também conhecida como o Oscar do esporte mundial. Entre Mundiais, Jogos Parapan-Americanos e Paralimpíada, foram exatamente 100 medalhas.

O ex-atleta — hoje palestrante e atuante nas redes sociais, ainda ligado ao esporte — também frisou o legado que pretende deixar ao compartilhar a própria trajetória em livros e por meio do Instituto Daniel Dias, que atende 500 crianças e adolescentes com deficiência.

 

 
 

O POVO - Nas suas redes sociais, tem um vídeo em que você conta como foi para seus pais receber a notícia de um filho com deficiência. Como eles lidaram com isso? E você, na infância?

Daniel Dias - Nesse vídeo, eu conto uma experiência que meus pais passaram, e eu sei disso deles me contando. É diferente quando você vive e lembra. Eu era bebê. Mas é claro que eu começo a lembrar quando eu começo a ir para a escola, e aí também chega num momento que você entende que tem a deficiência. Então a gente passa por esses processos de identidade. Aí, sim, foi um dos momentos desafiadores da minha vida, onde eu tive que enfrentar o preconceito, hoje chamado de bullying, e lidar com isso, toda essa dificuldade, foi um momento desafiador para mim, porque, convenhamos, a sociedade é preconceituosa.

A gente ainda tem que falar sobre isso. "Ah, como você acha que a gente quebra a barreira do preconceito?". Falando sobre isso, a gente precisa falar sobre as pessoas, trazer conhecimento, mostrar para elas. A minha infância passa por isso, mas, ao mesmo tempo, foi uma infância como de (qualquer) outra criança da minha idade na época. Hoje, é claro que as crianças não vivem muita coisa que eu vivi na infância: eu joguei futebol, brinquei na rua, soltei pipa... Fiz tudo isso, mas ainda tive que lidar com o preconceito.

Eu tive uma infância incrível, mas tive que entender muitas coisas da minha vida e tive que mostrar que eu podia. Mostrar para mim mesmo e para as pessoas ao meu redor, porque o que eu mais ouvia é que eu não ia conseguir, que não ia dar certo, que uma pessoa com deficiência não pode sair de casa e tantas outras coisas, que eu ouvia e precisava entender isso. E eu tive que lidar com isso já muito pequeno.

Mas tudo isso me fortaleceu para que eu pudesse hoje estar onde estou e ainda poder falar sobre isso, porque eu sei que tem muitas crianças com deficiência que ainda enfrentam isso. E não só criança, pessoas com deficiência. "Daniel, agora adulto, com medalha...", não, tem muita coisa ainda que eu enfrento que você vê o preconceito. Essa luta não pode parar.

Daniel Dias se aposentou da natação profissional depois dos Jogos de Tóquio-2020, realizados em 2021(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Daniel Dias se aposentou da natação profissional depois dos Jogos de Tóquio-2020, realizados em 2021

OP - Ainda na infância, você precisou passar por cirurgias e até sua mãe atuou como fisioterapeuta. Qual foi a importância desse suporte dela?

Daniel - São dois papéis fundamentais. Para mim, estar hoje na Abotec (Associação Brasileira de Ortopedia Técnica) é algo incrível, junto com a Ottobock, justamente porque eu sei do desafio. Eu tive que passar por uma cirurgia para poder usar a prótese, e isso meio que me trouxe um trauma. Eu lembro que não podia ver gente de branco.

Eu chegava num ambiente para colocar a prótese, fazer o encaixe, o momento de prova de prótese, e eu não deixava eles fazerem. Então eu passava 50 minutos chorando. Quem é pai e mãe sabe: uma criança chorando, chega uma hora, mesmo que seja seu filho, que vai te incomodando. E eu não deixava eles fazerem nada. Até que a fisioterapeuta falou para a minha mãe: "Olha, vou te ensinar". Porque a gente morava no interior de Minas Gerais (Camanducaia) e ia até São Paulo, na AACD, e tinha que passar por esse tratamento, essa fisioterapia. Eu não deixava, e minha mãe falou: "Vou aprender, então". A fisioterapeuta falou: "Você aprende e faz na tua casa, aí você vem uma vez a cada 15 dias", porque a gente estava indo todo dia. Foi isso que a gente fez.

Então, eu falo que ela foi minha mãe, mas também minha fisioterapeuta. E também foi a sabedoria da fisioterapeuta naquele momento de entender que eu precisava daquilo, de ensinar minha mãe, e minha de aprender, de certa maneira, mesmo não tendo o curso, para que eu pudesse ter a caminhada que tenho, usar a prótese como uso. Tenho encontrado alguns fisioterapeutas e falo: "Vocês são muito importantes. No dia que vocês entenderem isso ainda mais, principalmente numa reabilitação de um paciente, de um usuário de prótese, isso vai realmente ajudar muito".

OP - A adolescência é uma fase em que as pessoas tentam se encaixar em grupos, ciclos de amizade, e talvez você teve que lidar com o preconceito. Como foi essa época?

Daniel - O primeiro ponto que eu digo é que todo adolescente passa por uma crise de identidade, seja um adolescente com deficiência ou não. A gente também passa. Teve esse processo na minha vida. Você vai ali num grupo de amigos e começa a entender. Muitos questionamentos passam (pela cabeça): "Será que eu vou namorar? Será que eu vou ter uma vida, um relacionamento?". Você passa, de fato, a se questionar em muitos pontos, porque acha que a deficiência vai te limitar, inclusive nesses pontos. Eu tive que entender muitas coisas, realmente também entender minha deficiência.

E aí foi quando eu aprendi e hoje compartilho com muitas pessoas com deficiência: a deficiência é uma característica, mas não é uma definição. Se eu for me apresentar para vocês, para quem não me conhece ou até mesmo para quem me conhece como atleta, eu posso falar: "Sou o Daniel, tenho má formação congênita, tenho 36 anos...". Estou me apresentando, falando as minhas características, mas não estou falando uma definição do Daniel. A minha definição não é a má formação congênita. Mas eu estou falando isso aqui numa conversa muito rápida, agora você imagina um processo numa adolescência toda.

Muitas frustrações nesse caminho, de muitos sentidos: frustração de pessoas que eu achava que eram amigos falarem da minha deficiência; buscar um relacionamento com uma menina e entender o preconceito dela... Muitas coisas aconteceram nesse processo que me fizeram compreender e entender que não foi fácil, mas, ao mesmo tempo, eu entendi que além da deficiência ser característica, não existe ninguém... Nesse grupo mesmo que eu estava, se eu olhar agora, nós não somos iguais. Oito bilhões de pessoas no mundo, nós somos diferentes, não tem uma pessoa igual a outra.

Daniel Dias, ex atleta e dono de 27 medalhas na natação paralímpica(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Daniel Dias, ex atleta e dono de 27 medalhas na natação paralímpica

Isso é algo incrível. Se quer quebrar a barreira do preconceito... Porque hoje é lindo, as pessoas têm discursos maravilhosos sobre diversidade, inclusão, igualdade, eu acho até muito bonito, mas, na prática, se faz muito pouco. Então eu fui entendendo que precisava entender que a deficiência não me define, é uma característica minha, mas também que a diferença deveria nos unir, não nos separar.

Se eu pegar o meu relacionamento com a minha esposa, ela é completamente diferente, mas não é por causa da deficiência apenas. A deficiência é uma das coisas que ela é diferente, mas tem tantas outras coisas... Então, eu fui entendendo isso. Mas isso foi numa resposta de cinco minutos, e eu entendi isso numa adolescência toda, que tem hormônios, tem a deficiência, coisas que eu tive que ir construindo para hoje poder falar.

OP - E como surge a natação na sua vida?

Daniel - No meio de tudo isso, passando por todo esse turbilhão de emoções, de sentimentos, preconceito, o esporte sempre esteve presente. Desde muito criança, eu sempre fiz esporte, mas nada de alto rendimento. Eu nem conhecia esporte adaptado, eu nem sabia que existia Paralimpíada, não se falava sobre isso. Não era um negócio que você via anunciando ou qualquer mídia falava. Não era assim que funcionava.

Eu tinha, quando criança, o sonho de ser jogador de futebol e aquilo foi... Não vou dizer morrendo, mas foi ficando para escanteio, porque eu não via jogadores de futebol com deficiência, então comecei a pensar: "Poxa, isso não dá para eu fazer", porque não tem uma referência.

E aí eu continuo fazendo a Educação Física na escola, brincando na rua, fazendo atividade física — nem vou trazer como esporte —, que, para mim, era muito importante, me ajudava bastante. Disputava campeonatos na cidade, campeonatos na escola, mas ficava muito limitado a futebol, nada de natação. Experimentei outros esportes: fiz basquete, vôlei, joguei handebol, mas tudo em âmbito escolar.

Com 16 anos, em 2004, eu lembro que estava sentado na sala da minha casa e passou na TV uma propaganda, um anúncio: "Hoje, no jornal tal, vocês vão ver o atleta paralímpico que está conquistando muitas medalhas na Paralimpíada de 2004, em Atenas". Eu falei: "Nossa, cara, existe, então, o esporte para pessoa com deficiência".

E aí foi onde eu vi o Clodoaldo Silva, que é outra grande referência do movimento paralímpico. E eu até brinco com ele: "Você é um culpado por eu estar e ter conquistado isso, mas uma culpa boa, fica tranquilo". É dessa maneira que eu conheço o esporte paralímpico e decido ali: quero ser um atleta, quero fazer isso também e vou para a natação. Com 16 anos já que eu começo a fazer natação, isso no final de 2004 e início de 2005.

Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro-2016: Clodoaldo Silva, Joana Maria Silva, Susana Ribeiro e Daniel Dias no pódio do Revezamento 4x50m livre
Foto: Washington Alves/Exemplus/COB
Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro-2016: Clodoaldo Silva, Joana Maria Silva, Susana Ribeiro e Daniel Dias no pódio do Revezamento 4x50m livre

OP - No início, você já almejava chegar ao alto nível, às grandes competições, ou aconteceu naturalmente?

Daniel - Se eu falar que já almejava, não. Se você falasse para aquele garoto de 16 anos: "Escreve uma carta aqui, o que você pretende conquistar na sua carreira?". Eu não chegaria nem perto do que eu conquistei. Mas, sim, eu pensava em, pelo menos, descobrir mais sobre o movimento paralímpico, entender mais. E aí eu ia decidir se seria atleta ou não. Quando eu entro no esporte paralímpico, aprendo sobre ele, conheço e começo a nadar, eu falo: "Legal isso aqui, quero ver o que é, como é. Será que dá para ser atleta?".

Começam esses questionamentos, e aí eu vou, em junho de 2005, para a minha primeira competição, conquisto duas medalhas de bronze, num Campeonato Brasileiro, e falo: "Isso que eu quero fazer. Quero buscar ser um atleta, realmente tentar representar o Brasil numa competição internacional". Posso dizer que a braçada inicial — pontapé inicial é no futebol — é em junho de 2005, quando eu falo: "Vou buscar isso aqui, fazer isso, treinar mais, me dedicar mais". É onde eu começo a sonhar.

Aí, sim, eu começo a sonhar com algo profissional, de trazer isso como uma profissão fazer o esporte, mas eu não sabia se ia para um Campeonato Mundial tão já ou se ia para a próxima Paralimpíada, que era em Pequim, mas naquele momento eu já traço esse objetivo na minha vida, de buscar ser um atleta profissional. Não se falava tanto nisso também. Não só no movimento paralímpico, até mesmo no olímpico não se falava tanto de ser profissão.

Eu até brinco que se eu ia em algum lugar e ia preencher uma ficha médica, por exemplo: "Qual a sua profissão?", "sou da natação", "tá, mas o que você faz?", "sou atleta", aí a pessoa olhava para mim e dizia: "Eu preciso saber o que você faz". A gente lidava com isso, hoje mudou bastante. Eu falo profissional nesse sentido, de ir representar o Brasil numa Paralimpíada. Era o grande sonho.

OP - Você tem uma ascensão muito rápida, em 2008 já estava na Paralimpíada. Seus pais apoiaram a carreira profissional na natação?

Daniel - Isso é legal, porque foi uma ascensão muito rápida. Em 2006, eu já vou para o meu primeiro Campeonato Mundial. "Seus pais entendiam de esporte?". Não. A gente fazia atividade, mas meus pais nunca entenderam de natação. Claro que depois que eu estou nela e começo a carreira, aí a gente vai entendendo mais. Eu lembro que vou para o meu Campeonato Mundial, em Durban (na África do Sul), com toda a dificuldade, a gente faz aquela ligação a cobrar, internacional... Não era internet como hoje.

Eu consigo falar com eles e, na primeira prova que eu nadei, eu bati recorde mundial, nos 200m medley. Eu liguei para eles e já fazia uns dez dias que não conseguia falar com eles, porque não era tão fácil. Liguei: "Pai, mãe, bati o recorde mundial, ganhei medalha de ouro". Aí, os dois: "Ah, tá bom, mas por que você não ligou antes?". Recorde mundial? O que é isso, a gente nem sabe, ficaram mais bravos por eu não ter dado satisfação (risos).

Daniel Dias disputou 4 paralimpíadas e conquistou 27 medalhas, sendo 4 ouros e 4 pratas(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Daniel Dias disputou 4 paralimpíadas e conquistou 27 medalhas, sendo 4 ouros e 4 pratas

Essa era a minha família, no sentido de conhecimento do esporte. Não era uma coisa que a gente conhecia. Para chegar ao ponto de "acho que tenho talento e futuro nisso", por incrível que pareça, mesmo indo para Campeonato Mundial, conquistando medalha, sendo recordista mundial, não era uma coisa para mim de "tenho um grande talento, vai dar muito certo".

Mas quando eu vou para Pequim, três anos depois de começar, conquisto nove medalhas ali, saio como maior medalhista dos Jogos, já saio como um dos nomes da natação paralímpica brasileira e mundial... Ali eu começo a entender: "Eu tenho uma diferença, alguma coisa". Porque não é normal você ir na primeira Paralimpíada e conquistar nove medalhas. Eu confesso que nesse momento, depois de três anos no esporte, na primeira Paralimpíada: "Pô, realmente acho que tenho um grande talento, preciso treinar mais, me dedicar". Uma virada de chave acontece ali, onde eu começo a entender o grande talento que eu tinha.

OP - Quando você volta da primeira Paralimpíada com nove medalhas, sente falta de maior reconhecimento e valorização no Brasil?

Daniel - Claro que eu estou contando aqui a medalha de ouro, as conquistas, mas tem tudo isso. É claro, eu não dava entrevista e, de repente, passo a dar entrevistas, mas concordo muito com o que você fala. Eu sempre penso: se fosse um atleta olímpico que fosse para uma Olimpíada e conquistasse nove medalhas, como que ele ia chegar (ao Brasil)? Esse cara não ia conseguir chegar no País, de mídia e tudo mais.

Não quer dizer que não teve (reconhecimento): teve uma procura, dei entrevistas, fui para alguns programas, mas isso dura um pouco e já passa. Mas, para mim, era tudo novo, tudo incrível, espetacular. Eu estava chegando, dando entrevista, falando, volto para a minha cidade, no interior de Minas, pequena, tem o carro do Corpo de Bombeiros me esperando. Aquilo para mim era... Poxa, "mãe, tô na Globo".

Mas depois, é claro, com o tempo das conquistas, eu fui entendendo isso, que realmente a gente estava muito aquém de uma visibilidade de uma Olimpíada, mas que aquelas conquistas poderiam construir algo ou, pelo menos, contribuir. Se a gente parar para pensar e vir para os dias de hoje, o que a gente já evoluiu de mídia... Está ideal? Não acho, acho que ainda se dá muita importância para Olimpíada e que tem que dar, mas tente dar a mesma visibilidade para a Paralimpíada. Basta a gente ver o que a Olimpíada esse ano, em mídias, e o que foi a Paralimpíada. A gente bate recorde em Paris, 25 medalhas de ouro, 89 no total... Tem muita coisa que a gente tem que evoluir.

Isso lá em 2008 não era diferente, mas estava começando um ganho de mídia. Quando eu volto, até tenho uma foto que eu guardo, tinham TVs ali para me entrevistar e tudo, mas a gente sabe que não era como se fosse um atleta olímpico. Mas era uma construção, e a gente continua construindo isso para, um dia... Eu sempre falo que a gente não quer roubar espaço de ninguém, não está aqui para comparar, nós estamos querendo o nosso espaço apenas. E acho que a gente vem conquistando.

Daniel Dias na final dos 100m livre na Paralimpíadas 2012, em Londres
Foto: Buda Mendes/CPB / 08/09/2012
Daniel Dias na final dos 100m livre na Paralimpíadas 2012, em Londres

OP - E logo depois dos Jogos de Pequim você também ganha o Prêmio Laureus, que é considerado o Oscar do esporte...

Daniel - Na realidade, as coisas na minha vida e na minha carreira aconteceram muito rápido. No primeiro Campeonato Mundial, cinco medalhas, cinco recorde das Américas; no primeiro Parapan, oito medalhas de ouro; primeira Paralimpíada, nove medalhas, quatro de ouro; aí vem o Prêmio Laureus, me torno o único brasileiro a ter três estatuetas, anos depois. Quando eu ganho esse Prêmio Laureus, eu me vejo ao lado de Zinedine Zidane, Rafael Nadal, Roger Federer, Lewis Hamilton... Eu via esses caras na TV, competindo, e de repente estou no mesmo prêmio que eles, que alguns deles não ganharam, e eu ganhei. Isso é incrível.

E é um prêmio que, naquele momento, eu me torno o quarto brasileiro a ter uma estatueta, o primeiro atleta paralímpico brasileiro a ganhar uma estatueta, e, entre esses quatro, tem o Pelé. Ali, para mim... "Cara, eu ganhei um prêmio que o Pelé ganhou". E nós estamos falando do Pelé, entendeu? Espetacular. Sinceramente, não pensei muito naquele momento, porque foi acontecendo, as coisas foram acontecendo, e eu sempre fui um atleta muito focado.

Quando eu ganhei, em 2009, pelos feitos de Pequim, em 2010 eu já tinha um Campeonato Mundial importante, então já estava focado, pensando lá. As coisas foram acontecendo muito rápido, eu não pensava tanto. "Daniel, quando você pensou?". Eu passo a pensar quando decido me retirar do alto rendimento, anos depois.

De repente, eu nado a Paralimpíada do Rio, conquisto nove medalhas também, e as pessoas chegam para mim: "Você sabe que se ganhar essa nona medalha, vai se tornar o maior atleta masculino da história?", "não, eu não sei". Não tinha parado para pensar nisso. Aí, eu ganho nove medalhas, me torno o maior atleta masculino da história, e não só de Paralimpíada, mas de Olimpíada. E eu espero que demore para alguém conquistar isso (risos). Não estou falando para não conquistar, mas demora um pouquinho, deixa eu curtir esse título (risos).

Não é nem uma questão de ser ingênuo ou não, é que eu não parava para pensar e contar. Eu simplesmente treinava, me dedicava, sabia quantas provas ia nadar, e as coisas aconteciam. Saía de uma prova, conquistava medalha, ia para outra, de repente, na competição, saía com nove medalhas... Quando eu paro para pensar mesmo, já mais maduro, pensando em parar: "Poxa, estou com 24 medalhas em Jogos Paralímpicos, em apenas três edições"... É naquele momento que eu passo a pensar.

Quando ganho o primeiro Laureus, não. Só pensei o seguinte: "Estou entre a nata do esporte". Atletas que eu via pela TV e que jamais imaginei que um dia ia conhecer, estou conhecendo. Conquisto três Laureus, hoje faço parte da Academia Laureus, estou no Conselho da Academia, onde estamos eu, Cafu e (Emerson) Fittipaldi, entre outro atletas mundiais que são referências. Hoje eu voto em quem vai ganhar. Então é muito legal isso, tudo que o esporte foi proporcionando.

Daniel Dias deseja instalar duas sedes de seu instituto no Ceará(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Daniel Dias deseja instalar duas sedes de seu instituto no Ceará

OP - Com o sucesso e as conquistas, você se dava conta que poderia servir de inspiração para outros jovens com deficiência entrarem no esporte?

Daniel - Isso vem a acontecer em 2016 também. Eu digo que 2016 foi um marco muito grande, em muitos sentidos: um marco para o movimento paralímpico, no sentido de que as pessoas já ouviam falar, até já me conheciam, mas, de repente, se veem na oportunidade de assistir ao vivo. Tanto é que nos Jogos do Rio, na Paralimpíada, bate-se o recorde de pessoas no Parque Olímpico. A questão da inspiração... É claro que eu ia para lugares antes disso, alguém chegava para mim e falava: "Poxa, você é uma inspiração", de repente você encontrava outro. Mas é no Rio que eu digo que fica um legado intangível.

A pessoa foi lá para me assistir, fez questão de levar o filho, e eu via muitas crianças sem deficiência... Eu lembro como se fosse hoje: eu saía da prova, olhava para a arquibancada e brinco que parecia um estádio de futebol. A brincadeira não é que não parecia, parecia mesmo um estádio. A gente não tinha nunca vivido isso. Sendo bem sincero, eu falo muito para os atletas: "'Talvez você não vá viver isso mais', porque o brasileiro sabe fazer um festa, sabe torcer".

Eu saía da prova, olhava para arquibancada e uma criança sem deficiência falava: "Você é um exemplo para mim". Nem nos meus maiores sonhos eu imaginei que o esporte podia proporcionar aquilo, uma criança sem deficiência admirar uma pessoa com deficiência. Ela estava quebrando uma grande barreira ali, do preconceito, porque estava olhando o atleta, a performance, a força de vontade, a determinação, ela não estava olhando a deficiência. A deficiência era uma mera característica ali, mas que, para ela, não fazia diferença. Para mim, ali a gente começa a alcançar esse legado intangível.

Hoje, é claro que essa criança não está mais criança, anos depois, mas tem muitos que eu encontro e falam: "Eu estive lá, te vi nadando, conquistando medalha". E você vê o olhar de admiração, não de coitadinho, esse capacitismo que tanto se fala. Não, a pessoa olha a garra, a determinação que eu tive para chegar naquele momento e conquistar tudo aquilo.

Então 2016 tem esse marco também: "Cara, eu sou uma inspiração para as pessoas". Não estou nem entrando em ponto de deficiente ou não, uma inspiração para as pessoas, seja adulto ou criança. Você via uma grande responsabilidade? Isso, sim, claro, mas não via como peso. Via como uma grande oportunidade também de mostrar o valor do ser humano.

Supercampeão, Daniel Dias mantém o Instituto Daniel Dias, que atende 500 crianças e adolescentes com deficiência(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Supercampeão, Daniel Dias mantém o Instituto Daniel Dias, que atende 500 crianças e adolescentes com deficiência

OP - E como foi para aquele jovem que morava no interior de Minas Gerais ganhar medalhas de ouro no Brasil, diante da família?

Daniel - O Brasil viu, estava lotado, foi tudo muito lindo, tudo maravilhoso, mas foi espetacular ter a minha família. Eu lembro que, em 2009, quando a gente sabe que vai sediar os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, ali eu não tinha esposa, muito menos filho, mas eu falo: "Seria incrível se eu conseguisse chegar no Rio, classificar para os Jogos, e ter filhos me assistindo". E Deus me agraciou com isso, eu pude casar no percurso e ter dois filhos na época, os dois meninos, assistindo, vibrando, acompanhando.

E foi os Jogos que eu mais chorei, parecia que tinha alguma coisa naquela água, não é possível (risos). Eu subia no pódio, olhava para eles... Mas é que daí eu lembrava de tudo que eu tinha passado para chegar até lá. E não só isso, meus pais também estavam lá, que são pessoas que sofreram comigo esse preconceito no início da minha vida, passam por isso, por todo aquele momento de descobrir que têm um filho com deficiência. Às vezes, numa conversa assim, a gente tenta trazer, mas, poxa, foi uma vida construída até lá. Cada vez que eu subia (no pódio), essa emoção tomava conta. E ali eu me permiti.

Tem a música do Roberto Carlos, "o importante é que emoções eu vivi" — não vou cantar porque eu nado melhor (risos) —, mas eu busquei viver grandes emoções, porque a vida é feita de momentos. O amanhã pertence ao amanhã, não sei o que vai acontecer, a gente planeja tudo; o hoje está acontecendo, então a gente tem que aproveitar esse momento, porque ontem já foi. Eu falei: "Tenho que viver agora, vou viver essas emoções".

Chorei mesmo, dei até volta olímpica, pegava meus filhos no colo. Eu lembro da direção da prova correndo atrás para eu não fazer, e eu falei: "Vou fazer, sim, estou aqui no Brasil, não vou viver mais isso". Eu fui muito feliz em muitas coisas que eu fiz, apesar dos momentos difíceis que a gente passa. Tenho grandes recordações por ter tido eles (familiares) lá comigo, vibrando, torcendo, acompanhando, porque, no final das contas, é a família que sabe o que você passa, o que você enfrenta para chegar até lá. Foi incrível realizar mais esse sonho na minha vida.

O ex-atleta ainda está ligado ao esporte, hoje dá palestras e atua nas redes sociais, ainda ligado ao esporte(Foto: Buda Mendes/CPB)
Foto: Buda Mendes/CPB O ex-atleta ainda está ligado ao esporte, hoje dá palestras e atua nas redes sociais, ainda ligado ao esporte

OP - A decisão de se aposentar surgiu a partir das mudanças nos critérios de classificação paralímpica "Em 2019, atletas classificados como S6, com menos dificuldades motoras, passaram a competir na classe S5, da qual Daniel Dias faz parte"  ou você já pensava em parar?

Daniel - (A mudança), sim, influenciou na decisão, mas não foi por causa disso. Já estava nos meus planos. Após 2016, com toda essa conquista, eu penso: "Preciso parar em algum momento". E nada melhor do que você parar no grande palco, que é uma Paralimpíada. Em 2016 eu queria nadar ainda, só não sabia se ia ser mais um ou dois ciclos. Então eu já estava decidido, conversando, estruturando tudo isso na minha vida, porque eu queria também estar pronto para isso, me preparar para isso. É muito importante, os atletas têm que pensar nisso, construir isso, ter um plano de carreira, e eu tracei isso. Foi fácil? Não, foi difícil parar, não é fácil.

Logo após Rio-2016, em 2017 já começam a acontecer algumas coisas de classificação e, em 2019, vem mesmo (a mudança), onde só confirma. Não concordo, quero deixar bem claro, continuo não concordando com tudo que aconteceu de mudanças. As justificativas não fazem muito sentido, no meu ponto de vista, inclusive a gente apresentou algumas possibilidades de soluções. Eu entendo que não se pode fazer uma mudança no meio de um ciclo. Quer fazer? Então devia ter sido feito lá em 2017, para que todo atleta possa se preparar, afinal, hoje a classificação define a vida do atleta paralímpico.

A gente tem que parar de ter uma classificação subjetiva e ter uma classificação objetiva. Eu não posso achar, tenho que ter certeza. Para mim, hoje, essa é a grande dificuldade da classificação. Mas ela contribui para uma decisão que já seria tomada. Não foi o fator, mas contribui. E falei para a minha esposa: "Vou conversar com as crianças, eles podem não entender. Dependendo da reação deles, vai ser tomada a minha decisão".

Eu lembro que sentei com os três, a Hadassa, minha filha menor, era bebezinha, então ela, com certeza, não entendeu nada do que eu estava falando, mas os dois meninos já entendiam. Eu sento e falo para os dois: "Olha, o papai vai parar", "parar? O que é isso?", "o papai vai aposentar", "aposentar?". Aí, eu digo: "O papai não vai nadar mais. Depois dessa Paralimpíada que vai acontecer, papai não vai nadar mais. O que vocês acham?". Quando eu termino de falar isso, tentando explicar, eles saem comemorando e começaram a listar um monte de coisa que eu faria com eles, porque eu deixei de fazer pensando na minha profissão. Umas coisas muito simples, como andar de bicicleta, que se eu caísse e me machucasse, iria perder treino.

Ali, naquela reação deles, naquela vibração deles, eu olho para a minha esposa: "Está decidido. Vou parar, vai ser a última". Mas mesmo me preparando, tendo um planejamento, não foi fácil quando eu, em 1º de setembro de 2021, subo no bloco para nadar minha última prova e, mais uma vez, me permito viver emoções, sentir aquele momento. Quis Deus que fosse uma prova rápida, de 50m, mas foi uma eternidade, um filme que passou na minha cabeça naquele momento.

Brasileiro Gabriel Araújo, o Gabrielzinho, foi uma das maiores estrelas dos Jogos Paralímpicos de Paris-2024(Foto: Buda Mendes/CPB)
Foto: Buda Mendes/CPB Brasileiro Gabriel Araújo, o Gabrielzinho, foi uma das maiores estrelas dos Jogos Paralímpicos de Paris-2024

OP - Você já sabia o que faria quando se aposentou? Se continuaria no esporte, iria curtir a família...

Daniel - Eu tinha alguns planos, alguns objetivos, mas um ciclo depois que passa, muita coisa mudou, muita coisa aconteceu. Planos que eu pensava que ia seguir, não segui; outros vieram, novas coisas surgiram. Mas eu tinha um plano, que o principal deles era cuidar do meu instituto, ajudar a fomentar o esporte paralímpico, porque, acreditem ou não, tem muito deficiente em casa ainda. O nosso Brasil é gigante, tem muita gente que não tem tanto acesso assim, eu tenho sentido isso.

E a minha ideia era que, assim como eu pude ver o Clodoaldo e começar a nadar através de uma associação, era, através do meu instituto, poder ajudar a fomentar a natação paralímpica e, com isso, ajudar o esporte paralímpico. Quer dizer que todo mundo do instituto você sonha que seja atleta? Não. Eu não posso sonhar por eles, mas eu quero contribuir e dar oportunidade para que eles entendam que ser campeão na vida cabe a escolhas que a gente faz. É esse o objetivo do instituto, esse era o meu principal foco. Tanto é que eu estudei pensando nisso, parei pensando nisso, em construir isso.

Hoje, de tantas outras coisas que surgiram e eu ainda faço, tipo palestras, a medalha que eu sonhava em conquistar após a carreira está sendo construída, que é cuidar do instituto. E que um dia a gente possa ter, pelo menos, um polo do instituto em cada estado brasileiro, isso vai ser incrível. Aí você pode me entregar essa medalha, quando isso acontecer. A gente está no processo, está com 500 crianças já, em algumas cidades, como Curitiba (PR), Ponta Grossa (PR), Hortolândia (SP), Valinhos (SP), indo para Atibaia (SP) agora... É um projeto que vem crescendo, expandindo e que eu já pensava que precisava focar no instituto.

Assim como eu tive oportunidades, eu quero dar oportunidades. "Daniel, então quer dizer que você não sonha que um menino ou uma menina do seu instituto chegue na...", não, eu sonho também. A gente sabe que de uma quantidade, a qualidade vem. E que sonho seria... Imagina, uma criança daqui a dois ciclos, talvez, estar numa Paralimpíada e possa falar: "Eu nadei no Instituto do Daniel Dias". Isso seria simplesmente incrível.

OP - O seu instituto tem projeto de instalar dois núcleos aqui no Ceará...

Daniel - São dois lugares (Aquiraz e Caucaia) que já têm um projeto de triatlo, com um grande amigo, que hoje trabalha comigo também e foi triatleta, nosso gestor de projetos, que é o Juraci Moreira. Eu falei para ele: "Quero ir para o Ceará, fazer um projeto lá". Pode parecer que não, mas tem muito deficiente em casa ainda, principalmente crianças, e que o esporte vai possibilitar essa criança de sair de casa e dar uma outra visão, pelo menos.

A gente está com esse projeto em fase de captação e é importante para a gente, para a gente conseguir trazer esse projeto. É um projeto que vem fazendo uma diferença muito grande nessas cidades que eu falei, mas eu tenho um sonho muito grande de estar vindo aqui (ao Ceará) e, quando a gente vem, não vem para uma temporada, vem para ficar muito tempo. E que esse projeto, quando acontecer aqui, que não acabe mais. Esse é o nosso sonho, o objetivo. É o que eu falei da medalha: essa é uma medalha que eu estou buscando. A gente já está com dois projetos aprovados para cá, na fase de captação.

No Reino Unido, na Paralimpíada de Londres 2012, Daniel Dias quebra o recorde mundial e conquista a medalha de ouro nos 50m livre de natação(Foto: Marcio Rodrigues/CPB)
Foto: Marcio Rodrigues/CPB No Reino Unido, na Paralimpíada de Londres 2012, Daniel Dias quebra o recorde mundial e conquista a medalha de ouro nos 50m livre de natação

OP - No ano passado, você lançou um livro, "Valores de Ouro", em que fala da sua carreira e também sobre esporte. A intenção era transmitir esses valores?

Daniel - Sabe aquela frase que você tem que ter filhos, plantar uma árvore e escrever um livro? (risos) Eu falei: "Poxa, está faltando só escrever um livro agora". Tem a minha biografia, que está sendo construída, mas é um livro mais amplo, algumas pesquisas que a gente vai fazendo, que a gente também quer lançar em breve, mas eu quis pegar o boom de Jogos (Paralímpicos), esse é um ano legal, bacana, em que se fala muito de Olimpíada, Paralimpíada, valores no esporte, e eu já tinha algumas coisas escritas sobre isso.

Se você entrar no site do COI "Comitê Olímpico Internacional" , você vai ver os valores do esporte, e eu coloquei (no livro) alguns a mais, que eu sempre falo. São valores que estão dentro de cada um de nós e, por vezes, na correria da vida, do jeito que vivemos, esses valores não se perdem, mas vão sendo deixados um pouco de lado. E é nessa ideia que esse livro surge.

Não é minha biografia, mas tem, claro, histórias minhas ali, momentos cruciais da minha vida, e os valores que eu trago do esporte, como igualdade... Falo sobre preconceito, o preconceito que eu enfrentei na escola, o bullying, e tento trazer justamente o quanto o esporte me ensinou sobre igualdade. Vou trazendo esses pontos, da minha história junto com o esporte, e tudo que potencializou para esses valores estarem presentes na minha vida.

OP - Você se inspirou no Clodoaldo Silva, depois fez história e este ano, em Paris, tivemos o Gabrielzinho com muito destaque. Ele é o seu sucessor?

Daniel - O Gabrielzinho é um cara carismático, dançarino e, além de tudo, é um atleta excepcional. A performance que ele tem é fora da curva. O tanto que esse menino treina, o tanto que ele se dedica, a gente que conhece e está mais próximo vê isso. Sem peso nenhum, mas, sim, seria o cara que... Hoje não tem o Daniel, mas tem o Gabriel. Eu até falo que rimou tudo, né, Gabriel? Então continua no "el" que vai ficar bom.

Eu sempre digo que o esporte tem que ter uma referência. Teve o Clodoaldo, depois vem o Daniel e agora vem o Gabriel. Que bom isso, que bom que a gente tem essas referências. O Gabriel foi um sucesso em Paris. Não só aqui no Brasil, mas em Paris a gente via passando nos telões, teve até uma comparação com o Pelé. Isso foi incrível. Imagina o tanto que a gente vem batalhando, o quanto cresceu desde a minha primeira Paralimpíada e hoje ter o Gabriel é muito importante. É importante, porque hoje as crianças não vão olhar só para o Daniel. O Daniel não está competindo mais. Não quer dizer que as crianças não vão me ver, mas vão ver o Gabriel competindo.

Mas eu também diria que a Carol Santiago — falando da natação — é outro nome que é muito importante. Não que o Gabriel não seja, acho que ele é a cara do movimento paralímpico hoje. Todo mundo que fala, independente de ser natação ou não, Gabriel é o cara. Mas a Carol Santiago, para a natação, é muito importante, porque ela vem e fortalece algo que precisava, que é a natação paralímpica feminina. A Carol abre portas, mostra que a gente também tem uma natação feminina muito forte, tanto é que traz, junto com ela, Cecília (Araújo), Mari Gesteira, a Lídia (Cruz) e tantas outras menina. Mas, sem dúvida, o Gabrielzinho é a cara do movimento paralímpico.

Daniel Dias na entrevista aos jornalistas do O POVO Afonso Ribeiro e Iara Costa(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Daniel Dias na entrevista aos jornalistas do O POVO Afonso Ribeiro e Iara Costa

OP - Você foi o melhor da história?

Daniel - (risos) É cedo para falar. Eu fui um grande atleta. Acho, acho, que vão demorar para superar essas 27 medalhas — e que sejam 50 anos, pelo menos (risos). Mas hoje eu tenho uma ideia de tudo que eu construí e não é pouco. É bastante coisa. Se eu pegar de Paralimpíada, são 27 (medalhas), mas tem Campeonatos Mundiais, que são 40, tem Parapan, que são 33. Dá 100 medalhas. E das 100, 78 são de ouro. É um número expressivo, é algo grandioso.

Com muita humildade, eu paro e tenho grande orgulho de tudo isso, de tudo que eu construí na minha vida. Eu só tenho que agradecer muito a Deus e às pessoas que estiveram sempre ao meu lado, apoiando, incentivando, acreditando. Quando falam "maior da história", acredito. Acredito. E acho isso muito bacana, porque hoje também posso ser um porta-voz da pessoa com deficiência. Hoje, pelo menos, as pessoas podem me chamar e elas vão parar para ouvir.

E que eu, através das conquistas, possa contribuir ainda mais com tantas pessoas com deficiência que existem no Brasil a serem bons advogados, bons médicos, o que elas quiserem. E que a gente possa ir crescendo nisso. Esse é um grande sonho e, ao mesmo tempo, vejo que essas conquistas possibilitaram isso.

Brasileiro Gabriel Araújo, o Gabrielzinho, faturou medalha de ouro na natação nos Jogos Paralímpicos de Paris(Foto: Wander Roberto/CPB )
Foto: Wander Roberto/CPB Brasileiro Gabriel Araújo, o Gabrielzinho, faturou medalha de ouro na natação nos Jogos Paralímpicos de Paris

OP - Qual a maior lição que você tira de todas as suas conquistas da carreira?

Daniel - Achei que você ia falar "qual medalha você destaca", aí é difícil, sendo bem sincero (risos). A maior lição que eu tiro é que... Para mim, uma mudança crucial que acontece é quando se fala de PCD. O que é PCD? Pessoa com deficiência. E a maior lição que eu tiro de tudo isso é que, antes da deficiência, eu sou uma pessoa. As pessoas passaram a olhar para o Daniel, antes da deficiência, como uma pessoa, como um grande atleta, admirar, respeitar.

E essa é a maior lição que eu tiro. Antes da deficiência, tem a pessoa. Eu sou uma pessoa como você, com uma característica diferente. Mas antes dessa minha característica, eu sou uma pessoa. E as pessoas precisam de três coisas muito simples: um sorriso, de amor e de respeito. Quer um mundo melhor? Sorria, ame e respeite.

OP - Ao longo da entrevista, você citou sua mãe, que também foi sua fisioterapeuta, sua esposa, seus filhos... Qual a importância da família na sua trajetória?

Daniel - Família é a base de tudo. E quando eu falo isso, não estou falando que tenho uma família perfeita. É como qualquer outra família, para para olhar na sua família, você sabe que não é uma família perfeita, mas, ao mesmo tempo, a família é nossa melhor escola. Foi na família que eu passei bons momentos, momentos difíceis, e foi ela que esteve ao meu lado em todos esses momentos. Pô, 100 medalhas é incrível, 27 medalhas paralímpicas, sensacional, mas e quando eu pensei em desistir? E quando o Daniel chegou em casa e falou: "Eu não quero mais isso?".

Quem esteve comigo nesse momento foi a minha família. Só eles sabem esses momentos que eu passei, olhei para eles e falei: "Não vai dar". E eles dizendo: "Vai dar, nós estamos contigo, nós acreditamos em você". Isso é a família. A família é a base de tudo e é o que eu tento passar para os meus filhos: "Vocês vão ter momentos difíceis, vão passar por momentos desafiadores, mas saibam que quando chegar aqui em casa, nós vamos olhar para vocês e dizer: 'Vai dar tudo certo'. Não estou falando que vai ser fácil, mas vai dar tudo certo, porque a gente está junto". E foi isso que a minha família sempre me mostrou.

Não quer dizer que todas as coisas deram certo, porque a gente fala só das medalhas de ouro, mas os quartos lugares, os oitavos lugares, isso a gente não fala. Mas teve. Para chegar a 100 medalhas, perdi bastante, caí bastante, mas aprendi com tudo isso, e a família sempre me dando esse suporte. É nisso que eu sempre acredito e é por isso que falo bastante disso.

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