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A necropolítica e a necessidade de uma ‘frente pela vida’
Reportagem Seriada

A necropolítica e a necessidade de uma ‘frente pela vida’

Uso da cloroquina, troca de ministros da saúde, discursos pelo fim do isolamento social, falta de transparência em relação aos dados da pandemia no País e até estímulo à invasão de hospitais. Atravessado por polêmicas criadas pelo governo Bolsonaro, o combate à epidemia do novo coronavírus no Brasil enfrenta uma série de dificuldades que compromete resultados. A convite do O POVO, a enfermeira Daniele Rocha Queiroz Lemos, as médicas epidemiologistas Fernanda Colares de Borba Netto e Ligia Kerr e o epidemiologista Antonio Silva Lima Neto fazem uma reflexão sobre a falta de transparência e o cenário da pandemia no País
Episódio 3

A necropolítica e a necessidade de uma ‘frente pela vida’

Uso da cloroquina, troca de ministros da saúde, discursos pelo fim do isolamento social, falta de transparência em relação aos dados da pandemia no País e até estímulo à invasão de hospitais. Atravessado por polêmicas criadas pelo governo Bolsonaro, o combate à epidemia do novo coronavírus no Brasil enfrenta uma série de dificuldades que compromete resultados. A convite do O POVO, a enfermeira Daniele Rocha Queiroz Lemos, as médicas epidemiologistas Fernanda Colares de Borba Netto e Ligia Kerr e o epidemiologista Antonio Silva Lima Neto fazem uma reflexão sobre a falta de transparência e o cenário da pandemia no País
Episódio 3
Tipo Análise Por

O Brasil tem sido conhecido, nacional e internacionalmente, pela sua transparência quanto ao acesso à informação, em especial, na área da saúde. Já houve momentos em que a informação de dados de uma epidemia foi subtraída da população, com sérias consequências para a saúde.

Não por acaso, durante a ditadura militar, isto ocorreu com a epidemia de meningite meningocócica na década de 70. A maior epidemia de meningite da história do País grassava na cidade de São Paulo e, por omissão do governo e censura à divulgação dos dados, encontrou um terreno fértil para que a doença avançasse por todos os bairros daquela capital.

Lígia Kerr, médica epidemiologista(Foto: ACERVO PESSOAL)
Foto: ACERVO PESSOAL Lígia Kerr, médica epidemiologista

A epidemia deixou um rastro de crianças e adultos mortos ou com graves sequelas, que só não foi maior por causa do diagnóstico precoce nos serviços de saúde, que tinham suas instalações abarrotadas de casos, ao contrário do que o governo publicamente anunciava.

Depois de quase meio século, estamos assistindo a mais um episódio desta falta de transparência durante a primeira pandemia por um coronavírus: a Covid-19. O governo tenta manipular os dados subtraindo parte dos óbitos do total que deveria ser informado, na contramão do padrão mundial seguido por todos os países.

Esta subtração tem várias consequências. Uma delas é tentar transparecer para a população que a situação está melhor do que aquela divulgada pelo governo, o que pode resultar em milhares de vidas perdidas se a população flexibilizar as medidas de prevenção no momento errado, como distanciamento social e uso de máscaras, por exemplo.

A outra, igualmente séria, é dificultar o trabalho dos pesquisadores que precisam deste tipo de informação para estimar modelos que ajudam a compreender o comportamento da epidemia e apontar quando se deve implantar o distanciamento social ou quando é possível flexibilizar as medidas de prevenção.

Milhares de vidas foram salvas pelas medidas de distanciamento social implementadas corretamente no País, apesar da falta de apoio do presidente. O Brasil, com a decisão de ocultar os dados, vai além e consolida seu descompromisso com a saúde, com a ciência, com a redução de danos aos mais vulneráveis e com seus compromissos internacionais de gerar dados de qualidade e comparáveis aos que o resto do mundo vem produzindo.

O governo está praticando aquilo que tem sido denominado de necropolítica, conceito desenvolvido para caracterizar a situação em que o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer. Desta política resulta que, para certos setores da sociedade, como os negros, os gays e os pobres, é negada sua humanidade, permitindo qualquer tipo de violência, de agressões e até a morte.

O Palácio do Planalto decidiu que “salvar” a economia está acima de salvar vidas mesmo quando, paradoxalmente, não há economia sem vidas. A ocultação dos dados procura esconder a verdadeira face da epidemia.

O governo está praticando aquilo que tem sido denominado de necropolítica, conceito desenvolvido para caracterizar a situação em que o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer. Desta política resulta que, para certos setores da sociedade, como os negros, os gays e os pobres, é negada sua humanidade, permitindo qualquer tipo de violência, de agressões e até a morte.

Embora a epidemia da Covid-19 tenha chegado ao País via classes sociais mais abastadas, nestas fases posteriores quem mais tem sofrido e morrido pela Covid-19 são os pobres, os negros e os pardos.
As taxas de mortalidade entre estes seguimentos sociais têm se mostrado várias vezes acima para todas as faixas etárias. Quando uma pessoa mora em um bairro com piores condições de infraestrutura e que concentra favelas suas chances de morrer são significativamente maiores.

O Governo Federal tem acusado os governadores dos estados brasileiros de “inflarem” casos e óbitos pela Covid-19 a fim de receberem mais recursos. Na realidade, os gestores e pesquisadores sabem que o que ocorre é exatamente o oposto, ou seja, existe uma enorme subnotificação de dados.

O Brasil não está testando o suficiente para conhecer a totalidade dos seus casos. Aquilo que conhecemos e é divulgado é, de fato, somente a ponta de um iceberg. Um estudo sorológico recém realizado no Brasil mostrou dois aspectos importantes da epidemia: primeiro, uma enorme desigualdade na distribuição da doença, atingindo significativamente mais as regiões norte e nordeste, e segundo, que para cada caso conhecido existem, de fato, 7 outros não registrados pelo sistema oficial.

E foi por tudo isto que a Organização Mundial da Saúde, a imprensa nacional e internacional, os secretários estaduais da saúde e diversas entidades saíram em protesto diante de tamanha insensatez por parte do Governo Federal.

Hoje, os brasileiros se sentem abandonados a sua própria sorte diante da gravidade da Covid-19. Por isto, diante de um governo que se recusa a conduzir o País, cabe aos diversos setores da sociedade construir uma Frente pela Vida, que aponte uma saída para a maior crise planetária e sanitária que vivemos neste século, implementando ações para salvar vidas diante desta grave epidemia e de um poder executivo inepto.


Lígia Kerr, Especial para O POVO

Médica, professora titular da Universidade Federal do Ceará, pós-doutorado em epidemiologia na Harvard School of Public Health e pós-doutorado em epidemiologia na University of California San Francisco

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