Definitivamente, a informação epidemiológica é uma importante ferramenta para o enfrentamento da atual pandemia. Sem informação de qualidade e oportuna é bastante difícil que gestores públicos direcionem medidas efetivas para a redução dos casos e mortes.
O Brasil ocupa a posição de segundo país com o maior número de casos de Covid-19, atrás somente dos EUA. É importante salientar que muitos países testam muito mais que o Brasil. Dentre os 90 países monitorados, o Brasil é o 20º no ranking de testes, testando menos, em comparação com o tamanho da população, que o Equador, Gana, Colômbia, República Dominicana, Uruguai, El Salvador, Peru, entre outros.
Para termos ideia da enorme diferença e divergência de cenários reportados, nos EUA já foram realizados cerca de 70 mil testes para cada 1 milhão de habitantes, enquanto no Brasil esse número é quase 12 vezes menor, sendo 6,5 mil testes para cada 1 milhão de habitantes.
Partindo dessas medidas, é claramente possível estimar que o Brasil tem muitos mais casos que não foram identificados e que logo mais, mesmo testando muito menos, o Brasil será o primeiro em número de casos da doença no mundo.
Em contrapartida, já diante da extrema dificuldade de identificar os doentes dentre a população pela baixa testagem, nos últimos dias ocorreu uma grande corrida dos gestores estaduais e municipais de todo o País no sentido de garantir a ampla divulgação de dados sobre o adoecimento e morte por Covid-19 no Brasil depois do inexplicável “apagão” das informações que eram sistematicamente divulgadas pelo MS e que geravam pautas super importantes de discussão entre os diversos setores da sociedade, comunidades científicas, população, profissionais de saúde, mídia entre outros. É como tentar colocar em prática o velho clichê “o que os olhos não vêm o coração não sente”.
Mas como gestores de todo o País poderão tomar decisão sem ter acesso a informação? No Brasil, o sistema de reporte de casos segue uma lógica hierárquica e um fluxo de informação que segue da notificação feita no nível local, para o regional, estadual para o nível federal, que é o grande albergador das informações, responsável inclusive pela consolidação, análise e divulgação dos dados.
Porém, o detentor dos grandes volumes de dados, decidiu, ao retornar à publicação das informações, mudar critérios de divulgação dos dados de mortes. Ao meu ver, na tentativa, mais uma vez, de minimizar a pandemia que já vem ceifando muitas vidas Brasil a dentro.
A proposta, que não foi bem explicitada quanto ao método, é que as mortes sejam apresentadas pela data de ocorrência e não mais pela data do início dos sintomas e, também, não mais as mortes confirmadas nas últimas 24 horas, padrão adotado mundialmente e que permite um mínimo de comparação entre países.
Assim, prevê-se que o método reduzirá número de mortes diárias porque a maioria notificada é de dias anteriores a ocorrência, sendo que mais da metade das mortes registradas nos dias de março a maio eram de dez dias anteriores.
Outro fator importante é que não existe capacidade laboratorial e diagnóstica no Brasil para fazer testes que liberem resultados em 24 horas e, portanto, para a maioria das mortes não é possível confirmar no mesmo dia da ocorrência.
Em mais uma breve reflexão, saliento que a epidemiologia é uma ciência que usa lógica baseada em evidências construídas em ampla produção científica. E isso tudo que vem acontecendo nas últimas semanas, coordenado pelo Governo Federal, vai contra essas evidências. É um desserviço a todos os esforços que vêm sendo realizado pelas equipes municipais de saúde.
O grande evento a ser monitorado em um epidemia é o momento da exposição, que resultará na infecção dias depois e assim analisar todos os casos e mortes pela data do início dos sintomas nos dá dicas de onde o vírus está circulando e portanto em que locais os gestores devem agir fortemente com medidas oportunas para interromper cadeias de transmissão, a fim de prevenir novos casos e mortes.
Cenário que não pode ser relevado pela análise de mortes ocorridas no dia. A morte analisada pelo dia de ocorrência pode revelar outras mais fragilidades da assistência, menor acesso aos serviços de saúde e outras análises pouco específicas que dão a falsa sensação de que houve a redução das mortes e que assim a epidemia está perdendo forças. O evento morte é um desfecho que precisa ser olhado de forma bem minuciosa, mas divulgá-los pelo dia de ocorrência não colabora com uma informação relevante que possa guiar os gestores de saúde.
Enfim, sigamos nesse enfrentamento que se revela o grande desafio do século, mas que está sendo de forma atropelada, conduzida pelo Governo Federal do Brasil.
Enfermeira, especialista em "Epidemiologia para Gestores" pela Johns Hopkins University, doutora em Saúde Coletiva, com foco em epidemiologia, professora do curso de Medicina do Centro Universitário Christus e epidemiologista da Associação Brasileira de Profissionais de Epidemiologia de Campo
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