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Pandemia: o prejuízo da falta de acesso à informação
Reportagem Seriada

Pandemia: o prejuízo da falta de acesso à informação

Uso da cloroquina, troca de ministros da saúde, discursos pelo fim do isolamento social, falta de transparência em relação aos dados da pandemia no País e até estímulo à invasão de hospitais. Atravessado por polêmicas criadas pelo governo Bolsonaro, o combate à epidemia do novo coronavírus no Brasil enfrenta uma série de dificuldades que compromete resultados. A convite do O POVO, a enfermeira Daniele Rocha Queiroz Lemos, as médicas epidemiologistas Fernanda Colares de Borba Netto e Ligia Kerr e o epidemiologista Antonio Silva Lima Neto fazem uma reflexão sobre a falta de transparência e o cenário da pandemia no País
Episódio 1

Pandemia: o prejuízo da falta de acesso à informação

Uso da cloroquina, troca de ministros da saúde, discursos pelo fim do isolamento social, falta de transparência em relação aos dados da pandemia no País e até estímulo à invasão de hospitais. Atravessado por polêmicas criadas pelo governo Bolsonaro, o combate à epidemia do novo coronavírus no Brasil enfrenta uma série de dificuldades que compromete resultados. A convite do O POVO, a enfermeira Daniele Rocha Queiroz Lemos, as médicas epidemiologistas Fernanda Colares de Borba Netto e Ligia Kerr e o epidemiologista Antonio Silva Lima Neto fazem uma reflexão sobre a falta de transparência e o cenário da pandemia no País
Episódio 1
Tipo Análise Por

Definitivamente, a informação epidemiológica é uma importante ferramenta para o enfrentamento da atual pandemia. Sem informação de qualidade e oportuna é bastante difícil que gestores públicos direcionem medidas efetivas para a redução dos casos e mortes.

O Brasil ocupa a posição de segundo país com o maior número de casos de Covid-19, atrás somente dos EUA. É importante salientar que muitos países testam muito mais que o Brasil. Dentre os 90 países monitorados, o Brasil é o 20º no ranking de testes, testando menos, em comparação com o tamanho da população, que o Equador, Gana, Colômbia, República Dominicana, Uruguai, El Salvador, Peru, entre outros.

Daniele Rocha Queiroz Lemos, enfermeira(Foto: ACERVO PESSOAL)
Foto: ACERVO PESSOAL Daniele Rocha Queiroz Lemos, enfermeira

Para termos ideia da enorme diferença e divergência de cenários reportados, nos EUA já foram realizados cerca de 70 mil testes para cada 1 milhão de habitantes, enquanto no Brasil esse número é quase 12 vezes menor, sendo 6,5 mil testes para cada 1 milhão de habitantes.

Partindo dessas medidas, é claramente possível estimar que o Brasil tem muitos mais casos que não foram identificados e que logo mais, mesmo testando muito menos, o Brasil será o primeiro em número de casos da doença no mundo.

Em contrapartida, já diante da extrema dificuldade de identificar os doentes dentre a população pela baixa testagem, nos últimos dias ocorreu uma grande corrida dos gestores estaduais e municipais de todo o País no sentido de garantir a ampla divulgação de dados sobre o adoecimento e morte por Covid-19 no Brasil depois do inexplicável “apagão” das informações que eram sistematicamente divulgadas pelo MS e que geravam pautas super importantes de discussão entre os diversos setores da sociedade, comunidades científicas, população, profissionais de saúde, mídia entre outros. É como tentar colocar em prática o velho clichê “o que os olhos não vêm o coração não sente”.

Mas como gestores de todo o País poderão tomar decisão sem ter acesso a informação? No Brasil, o sistema de reporte de casos segue uma lógica hierárquica e um fluxo de informação que segue da notificação feita no nível local, para o regional, estadual para o nível federal, que é o grande albergador das informações, responsável inclusive pela consolidação, análise e divulgação dos dados.

Porém, o detentor dos grandes volumes de dados, decidiu, ao retornar à publicação das informações, mudar critérios de divulgação dos dados de mortes. Ao meu ver, na tentativa, mais uma vez, de minimizar a pandemia que já vem ceifando muitas vidas Brasil a dentro.

A proposta, que não foi bem explicitada quanto ao método, é que as mortes sejam apresentadas pela data de ocorrência e não mais pela data do início dos sintomas e, também, não mais as mortes confirmadas nas últimas 24 horas, padrão adotado mundialmente e que permite um mínimo de comparação entre países.

Em mais uma breve reflexão, saliento que a epidemiologia é uma ciência que usa lógica baseada em evidências construídas em ampla produção científica. E isso tudo que vem acontecendo nas últimas semanas, coordenado pelo Governo Federal, vai contra essas evidências. É um desserviço a todos os esforços que vêm sendo realizado pelas equipes municipais de saúde.

Assim, prevê-se que o método reduzirá número de mortes diárias porque a maioria notificada é de dias anteriores a ocorrência, sendo que mais da metade das mortes registradas nos dias de março a maio eram de dez dias anteriores.

Outro fator importante é que não existe capacidade laboratorial e diagnóstica no Brasil para fazer testes que liberem resultados em 24 horas e, portanto, para a maioria das mortes não é possível confirmar no mesmo dia da ocorrência.

Em mais uma breve reflexão, saliento que a epidemiologia é uma ciência que usa lógica baseada em evidências construídas em ampla produção científica. E isso tudo que vem acontecendo nas últimas semanas, coordenado pelo Governo Federal, vai contra essas evidências. É um desserviço a todos os esforços que vêm sendo realizado pelas equipes municipais de saúde.

O grande evento a ser monitorado em um epidemia é o momento da exposição, que resultará na infecção dias depois e assim analisar todos os casos e mortes pela data do início dos sintomas nos dá dicas de onde o vírus está circulando e portanto em que locais os gestores devem agir fortemente com medidas oportunas para interromper cadeias de transmissão, a fim de prevenir novos casos e mortes.

Cenário que não pode ser relevado pela análise de mortes ocorridas no dia. A morte analisada pelo dia de ocorrência pode revelar outras mais fragilidades da assistência, menor acesso aos serviços de saúde e outras análises pouco específicas que dão a falsa sensação de que houve a redução das mortes e que assim a epidemia está perdendo forças. O evento morte é um desfecho que precisa ser olhado de forma bem minuciosa, mas divulgá-los pelo dia de ocorrência não colabora com uma informação relevante que possa guiar os gestores de saúde.

Enfim, sigamos nesse enfrentamento que se revela o grande desafio do século, mas que está sendo de forma atropelada, conduzida pelo Governo Federal do Brasil.

Daniele Rocha Queiroz Lemos, Especial para O POVO

Enfermeira, especialista em "Epidemiologia para Gestores" pela Johns Hopkins University, doutora em Saúde Coletiva, com foco em epidemiologia, professora do curso de Medicina do Centro Universitário Christus e epidemiologista da Associação Brasileira de Profissionais de Epidemiologia de Campo

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