Logo O POVO+
Sobre déspotas, números e invasões
Reportagem Seriada

Sobre déspotas, números e invasões

Uso da cloroquina, troca de ministros da saúde, discursos pelo fim do isolamento social, falta de transparência em relação aos dados da pandemia no País e até estímulo à invasão de hospitais. Atravessado por polêmicas criadas pelo governo Bolsonaro, o combate à epidemia do novo coronavírus no Brasil enfrenta uma série de dificuldades que compromete resultados. A convite do O POVO, a enfermeira Daniele Rocha Queiroz Lemos, as médicas epidemiologistas Fernanda Colares de Borba Netto e Ligia Kerr e o epidemiologista Antonio Silva Lima Neto fazem uma reflexão sobre a falta de transparência e o cenário da pandemia no País
Episódio 4

Sobre déspotas, números e invasões

Uso da cloroquina, troca de ministros da saúde, discursos pelo fim do isolamento social, falta de transparência em relação aos dados da pandemia no País e até estímulo à invasão de hospitais. Atravessado por polêmicas criadas pelo governo Bolsonaro, o combate à epidemia do novo coronavírus no Brasil enfrenta uma série de dificuldades que compromete resultados. A convite do O POVO, a enfermeira Daniele Rocha Queiroz Lemos, as médicas epidemiologistas Fernanda Colares de Borba Netto e Ligia Kerr e o epidemiologista Antonio Silva Lima Neto fazem uma reflexão sobre a falta de transparência e o cenário da pandemia no País
Episódio 4
Por

Na semana em que 40 mil brasileiros morreram vítimas da infecção pelo novo coronavírus, consolidando o País como novo epicentro mundial da doença, dois acontecimentos deixaram perplexos aqueles que estão na linha de frente do combate à pandemia.

Antonio Silva Lima Neto (Tanta), médico epidemiologista(Foto: ACERVO PESSOAL)
Foto: ACERVO PESSOAL Antonio Silva Lima Neto (Tanta), médico epidemiologista

Na terça-feira (9/6), o ministro interino da Saúde afirmou que apenas os óbitos por Covid-19 ocorridos naquela data seriam divulgados formalmente na coletiva de imprensa. Mortes anteriores, com confirmação laboratorial naquele dia, não seriam anunciadas.

Caso a imprensa e a sociedade civil desejassem saber o número total de novas fatalidades constatadas nas últimas 24 horas no país, deveriam verificar o aumento nas colunas de dias anteriores.

Na quinta-feira (11/6), o presidente da República, em live, conclamou seus seguidores a invadir hospitais dedicados ao tratamento da Covid-19 para filmar leitos que, segundo ele, poderiam estar vazios. O objetivo da ação não ficou claro.

O controle da narrativa é muito difícil sem o uso da censura como dispositivo formal. Tanto que o Ministério da Saúde voltou atrás após um consórcio de empresas de comunicação decidir divulgar os dados de forma independente.

Também não foi dito à população que a disponibilidade de leitos é fundamental em cidades com curva ascendente de casos, nem que nas regiões que já que ultrapassaram o pico, uma rede assistencial de retaguarda é necessária para eventual recrudescimento da transmissão, associado à redução da taxa de isolamento prevista com a flexibilização.

Historicamente, manipulação de dados durante epidemias, especialmente em regimes despóticos, costuma ser artifício comum. O exemplo brasileiro mais citado ocorreu na epidemia de meningite que afetou principalmente a cidade de São Paulo na primeira metade dos anos 1970, durante a Ditadura Militar.

Na ocasião, segundo documentos do Arquivo Nacional, o governo proibiu a divulgação dos dados. Esses só vieram a público em 1974, quando aulas escolares e eventos esportivos foram suspensos. Estima-se que mais de 2,5 mil mortes tenham ocorrido naquela epidemia.

Caso a tentativa recente de mudar a forma de contabilizar os óbitos por Covid-19 tenha sido engendrada com intuito de sugerir que a mortalidade estava em declínio, esta revela, além de má fé, impressionante ingenuidade.

O controle da narrativa é muito difícil sem o uso da censura como dispositivo formal. Tanto que o Ministério da Saúde voltou atrás após um consórcio de empresas de comunicação decidir divulgar os dados de forma independente.

A progressão temporal das fatalidades e as mortes acumuladas a cada dia são dados importantes para o monitoramento epidemiológico. Combinados, permitem análises complementares, que contribuem para respostas mais eficientes à pandemia.

Ao contrário da recorrente “maquiagem” de dados, é inédita, repulsiva e criminosa a situação em que um chefe de Estado estimula apoiadores a transgredirem normas de saúde pública elementares e adentrarem espaços de cuidado, adaptados a pacientes com uma doença transmissível que já causou a morte de milhares de pessoas.

Nosso desastre sanitário ganha mais um contorno. Autoridades agora além de romper regras de isolamento social, desrespeitam diretamente profissionais de saúde e ameaçam o cuidado a que os brasileiros têm direito inalienável.

Antonio Silva Lima Neto, Especial para O POVO

Epidemiologista, pós-doutor pela Universidade de Harvard, integrante do Comitê Científico do Consórcio Nordeste para enfrentamento da pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19), professor do Curso de Medicina da Universidade de Fortaleza (Unifor)

O que você achou desse conteúdo?