O home office não era algo estranho na vida da arquiteta, Kaila Lima, 39 anos. Tampouco a necessidade de conciliar as rotinas profissionais com os filhos pequenos. Ela concluiu o mestrado quando a filha mais nova, Maya, hoje com 5 anos, tinha apenas alguns meses, e a mais velha, Cloé, de 8 anos, tinha pouco mais de três. Também já fazia afazeres domésticos quando a empregada não vinha. E, em sua trajetória profissional, vivenciou momentos em que a crise econômica do País derrubou a demanda por seus serviços e trouxe incertezas financeiras.
O problema é quando todas essas vivências ocorrem de forma simultânea, com quase nenhum dos pontos da rede de apoio podendo ser acionados. Em função da pandemia, Kaila e o marido decidiram liberar a babá, e a escola das meninas passou um bom tempo fechada, o que fez com que os quatro passassem a compartilhar o mesmo ambiente da casa e os equipamentos para fazerem suas atividades.|
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A rotina de trabalho passou a ser intercalada ao longo do dia também pelo almoço por fazer, uma roupa para lavar ou explicar a lição para as filhas. E mesmo dividindo muitas dessas tarefas com o marido, que está de home office também, cabe a ela, na maioria das vezes, decidir o que fazer e como fazer. O que não deixa de estar presente também, a todo momento em que precisa sair para visitar um cliente ou uma obra, é o medo e a culpa de, involuntariamente, poder ser o vetor de transmissão do vírus em casa.
“A pandemia trouxe muito isso de você não ter mais o controle das coisas, é difícil até mesmo criar uma rotina. Tem dias que tudo funciona muito bem, mas tem outros que é o jeito que dá, porque nossa atenção fica em concorrência com outras coisas. Com certeza me sinto mais sobrecarregada”, afirma Kaila.
Essa sensação de “ter de lidar com tudo ao mesmo tempo e para ontem” é também a de muitas mulheres que estão no mercado de trabalho. Um estudo feito pela consultoria Deloitte, produzido entre novembro de 2020 e março deste ano, com cinco mil mulheres em dez países, sendo 500 no Brasil, mostrou que a pandemia fez com que 46% das profissionais brasileiras se sintam menos otimistas em relação às suas carreiras.
Porém, um dos pontos que mais preocupa é que hoje uma em cada cinco brasileiras estão considerando deixar o mercado de trabalho por conta de impactos negativos causados pela pandemia. E, dentre as principais razões para isso, estão a sobrecarga (41%), redução de salário mesmo diante de maior número de horas trabalhadas (35%), maior comprometimento profissional aliado a mais cuidados familiares (13%) e dificuldade de ter um equilíbrio pessoal e profissional (10%).
No Brasil, entre as respondentes, 63% são mães, 23% que cuidam de outros familiares e 71% estão trabalhando de forma integral. Do total da amostra, 11% delas ocupam cargos executivos C-Level (líderes de negócio que participam da estratégia da empresa e tomam decisões de alto risco) e 51% estão em empresas com faturamento anual de US$ 1 bilhão a US$ 5 bilhões.
"Mas a gente entende que essa é uma questão que tem que ser trazida à mesa, tem que ser discutida porque partimos de uma realidade em que a mulher é responsável por carregar mil pratos."
Ângela Castro, líder do programa All In da Deloitte, explica que muitas demandas que as mulheres carregam já existiam antes da pandemia, mas essa era uma situação mais subdimensionada porque havia uma rede de apoio, filhos na escola, estrutura logística, maior possibilidade de contratar trabalho doméstico, que abria espaço para que elas pudessem se desenvolver mais profissionalmente. E essa sobrecarga sobre mulheres, culturalmente, é mais forte no Brasil do que em outros países.
"Então, às vezes, se teve uma redução de salário e excesso de trabalho, a conta não bate. Isso tem levado a uma discussão bastante séria e trazendo um risco à carreira das mulheres. Mas a gente entende que essa é uma questão que tem que ser trazida à mesa, tem que ser discutida porque partimos de uma realidade em que a mulher é responsável por carregar mil pratos”.
Quando se olha para o mercado de trabalho de forma mais ampla, considerando também aquelas que estão na informalidade, as que trabalham por conta própria, e as que não exercem trabalho remunerado, o cenário que a pandemia impõe é ainda mais dramático. Principalmente, se a questão for analisada sob a ótica da raça, da renda e da área de residência. Na maioria dos casos, abrir mão de uma carreira não é sequer uma opção.
A pesquisa "Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia", realizada pela Gênero e Número e a Sempreviva Organização Feminista (SOF), com mais de 2,6 mil mulheres no Brasil, em 2020, mostrou, por exemplo, que para 40% delas a pandemia e a situação de isolamento social colocaram a sustentação da casa em risco.
A maior parte das que têm essa percepção são mulheres negras (55%), que no momento em que responderam à pesquisa tinham como dificuldades principais o pagamento de contas básicas ou do aluguel. Elas também são maioria (58%) quando se observa o perfil de desempregadas no País.
Confira a íntegra do estudo
A professora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp (Cesit/ Unicamp), Marilane Teixeira, presidente da SOF, explica que a pesquisa foi feita ano passado, durante a primeira onda da pandemia, mas, hoje, é bem provável que os resultados seriam ainda mais alarmantes, em função do agravamento da crise econômica e da demora no retorno de políticas públicas como o auxílio emergencial. O benefício está sendo pago em valor bem menor, entre R$ 150 e R$ 375, bem aquém da média de R$ 600, pago em 2020. No Ceará, mais de 1,4 milhão de pessoas ficaram de fora da nova rodada do auxílio.
"Hoje mais de 55% do trabalho doméstico que paga, no máximo, um salário mínimo, é feito por mulheres negras e boa parte delas está perdendo o emprego."
“No caso das mulheres negras, isso é muito preocupante, porque elas são as mais afetadas em situações de crise como agora na pandemia. Hoje mais de 55% do trabalho doméstico que paga, no máximo, um salário mínimo, é feito por mulheres negras e boa parte delas está perdendo o emprego. Elas também estão, em sua maioria, em atividades como cabeleireira, manicure, vendedora, que são as atividades que pagam menos e que têm menos reconhecimento.”
Outro aspecto abordado pelo estudo da SOF é que, ao mesmo tempo em que lidam com incertezas financeiras, aumentou a responsabilidade delas dentro de casa. Metade das entrevistadas passou a cuidar de alguém na pandemia. E não se trata apenas de preparar ou servir alimentos, o componente do cuidado que apresentou maior intensificação foi a necessidade de monitorar ou fazer companhia (72,4%). Tampouco está restrita aos cuidados com as crianças, envolvendo também idosos, enfermos e adultos.
"A maior parte das mulheres está exausta ou exposta a um maior grau de vulnerabilidade."
Também 8,4% das mulheres afirmaram ter sofrido alguma forma de violência no período de isolamento. Entre as mulheres com renda familiar de até um salário mínimo, esse percentual sobe para 12%.
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“A primeira coisa a se observar é que aquela ideia romanceada de que o isolamento social iria trazer maior visibilidade sobre o trabalho doméstico, que não é remunerado, de que haveria maior reconhecimento e conscientização das pessoas, inclusive, parceiros, sobre a divisão de trabalho, nada disso aconteceu. A maior parte das mulheres está exausta ou exposta a um maior grau de vulnerabilidade”, afirma Marilane.
Na casa da afroempreendedora, Aliciane Barros, de 38 anos, o impacto da pandemia pode ser medido em muitos aspectos. O mais visível deles é o da renda. Com a sua loja, a CearAfro, no Centro, funcionando com horário restrito e sem poder realizar a Feira Negra, projeto que dá espaço e reúne comerciantes da capital cearense com o objetivo de dar protagonismo às questões da cultura negra e/ou africana, nos moldes de antes, na praça da Gentilândia e com programação cultural, ela viu a sua fonte de renda cair à metade na pandemia.
“Mesmo depois da reabertura, a gente ainda está sentindo o impacto porque mais da metade do nosso público é turista e o auxílio emergencial que está sendo pago nesta segunda rodada é bem mais baixo, então, tem menos dinheiro circulando. Hoje ganho menos da metade do que ganhava e a situação só não é pior porque, graças a Deus, meu marido, que tinha ficado desempregado logo no começo da pandemia, conseguiu um emprego há seis meses.”
Ela conta que ao mesmo tempo em que o dinheiro que entra diminuiu consideravelmente, apesar dos esforços para economizar, as despesas em casa subiram. Não só porque todos passaram a ficar mais tempo em casa, mas também porque os produtos e serviços ficaram mais caros. Em abril, a inflação em Fortaleza foi a segunda maior do País e já acumula alta no ano de 3,36%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
"É muito complicado porque a gente tem que fazer os corres para trabalhar, o serviço de casa e tem todas as outras coisas para dar conta. Sinto que muita coisa está passando batido."
Há também o peso da sobrecarga, que é física - já que o serviço doméstico que sempre ficou sob a responsabilidade dela aumentou - e também é emocional. A dificuldade em ajudar os três filhos, de 19, 15 e 6 anos, no ensino remoto, e a situação das outras mulheres que também dependem do trabalho de venda que é feito por ela, como costureiras e artesãs, têm, muitas das vezes, tirado o sono de Aliciane. “É muito complicado porque a gente tem que fazer os corres para trabalhar, o serviço de casa e tem todas as outras coisas para dar conta. Sinto que muita coisa está passando batido.”
Por Ana Ignez Belém Lima (*)
A sobrecarga de atividades das mulheres tem sido tema de debates frequentes nos últimos anos, das redes sociais ao âmbito acadêmico. Com a pandemia o tema ganhou novos contornos, exigindo de nós um olhar mais amplo. Vimos crescer nos consultórios psicológicos a demanda de mulheres em sofrimento psíquico com sintomas de ansiedade, depressão, estresse e cansaço intenso.
Grande parte dos lares brasileiros se depararam com os seguintes desafios: ensino dos filhos por meio remoto; trabalho em home office; limpeza da casa intensificada; alimentação caseira e em maior quantidade; rotinas alteradas, lazer restrito, adoecimento e perdas de familiares; diminuição de recursos financeiros etc.
Nesse cenário, as mulheres, como dizia Clarice Lispector, já desdobráveis, precisaram descobrir estratégias para lidar com esses novos modos de viver. Veio a constatação empírica, de que, de fato, as mulheres têm excesso de tarefas, são responsabilizadas pela organização do lar e, em muitos casos, são ainda as únicas provedoras. Certamente, nas diferentes classes sociais esses desafios são vividos de forma singular. Contudo, é certo que as mulheres nos mais diversos âmbitos ainda não dividem de forma equitativa as responsabilidades pelos cuidados com os filhos e a casa.
"Então, se a mulher está em fadiga intensa, trabalhando excessivamente ela pode se desorganizar psiquicamente com a sensação de perda do controle de si, baixa autoestima, irritabilidade, angústia generalizada, autocobrança, dentre outras dificuldades."
Essa sobrecarga, em um panorama de crise pode desencadear adoecimento psíquico ou agravar alguns quadros já existentes de comprometimento da saúde emocional feminina. Afinal, fomos mergulhados num cenário de incertezas, caos social e político, excesso de contato com as telas, medo, perdas e falta de controle sobre a realidade. Em contextos de tal natureza, é importante um tempo para cuidar de si, refletir sobre suas emoções, fazer pausas, sentir-se apoiada nas atividades cotidianas, dividir tarefas, regular o sono e a alimentação, manter vínculos com pessoas fora do ambiente familiar e viver os lutos, quando necessários. Essas são algumas possibilidades mediadoras para construir recursos emocionais preventivos e promotores de saúde.
"O sentido de que a mulher é cuidadora coloca sobre ela o peso de olhar por outro sempre, mas quem cuida dela? Saúde mental, tem relação direta com a qualidade de vida e o cuidado."
Então, se a mulher está em fadiga intensa, trabalhando excessivamente ela pode se desorganizar psiquicamente com a sensação de perda do controle de si, baixa autoestima, irritabilidade, angústia generalizada, autocobrança, dentre outras dificuldades. Consequentemente, toda a família também será afetada, pois somos seres de afetos e de interações.
O sentido de que a mulher é cuidadora coloca sobre ela o peso de olhar por outro sempre, mas quem cuida dela? Saúde mental, tem relação direta com a qualidade de vida e o cuidado. Portanto, é um ato político e de direito que as mulheres sejam respeitadas e vivam um cotidiano de partilha na responsabilização e execução das atividades da vida em quaisquer espaços aos quais ela se dedique. Mais do que nunca precisamos de afetos alegres, de vínculos saudáveis, de amor no sentido pleno.
(*) Ana Ignez Belém Lima é psicóloga e professora da Universidade Estadual do Ceará
Com a pandemia, as mulheres passaram a trabalhar mais ou ficarem sem trabalho. São jornadas triplas por dia, juntando obrigações com casa, filhos e carreira. Más condições de trabalho, salários mais baixos e problemas psicológicos.