Há experiências que deixam marcas profundas na vida de uma pessoa: um livro que muda a forma de ver o mundo, uma viagem que reinventa os sentidos, a conquista de um diploma tão sonhado. Para muitos, no entanto, nada se compara ao impacto transformador de um filho.
A chegada de uma criança é capaz de virar rotinas de cabeça para baixo, redefinir prioridades e interromper noites de sono. Mais do que isso, abre novas janelas de percepção. Homens que escolheram viver a paternidade de forma ativa, não como coadjuvantes, mas como protagonistas, relatam que novos sonhos passaram a dominar seus pensamentos.
Junto com esses sentimentos, porém, surgem também dúvidas, angústias e responsabilidades que antes pareciam distantes. Na rotina diária, pais cearenses compartilham os desafios enfrentados e as preocupações com o futuro dos filhos, abordando temas como machismo, racismo, violências e a necessidade de prepará-los para o mundo.
Pais de meninas, de crianças negras e neurodivergentes comentam sobre os desafios de enfrentar uma sociedade ainda marcada por desigualdades. Ao mesmo tempo, enfatizam o desejo de não criar seus filhos em bolhas ou trincheiras de medo. Com esperança no coração, eles almejam formar cidadãos conscientes, fortes e livres, que saibam, acima de tudo, que podem sempre encontrar neles um porto seguro quando precisarem.
A paternidade ativa tem emergido no Brasil como uma verdadeira "revolução silenciosa", conforme apresentado pelo O POVO+ em 2024. Trata-se de um movimento atual que busca reconfigurar o papel do pai na família e na sociedade, desafiando eventuais ciclos de abandono ou negligência que marcaram a infância de muitos desses próprios homens.
Com uma maior participação dos pais na criação e desenvolvimento de seus filhos, que vai muito além da tradicional figura do provedor severo e distante, uma nova geração de homens busca dar mais do que o "sustento familiar". Eles oferecem apoio, carinho, orientação e o amor incondicional que no passado não receberam.
Nesse contexto, o pai é convidado a compartilhar com a mãe, em pé de igualdade, tanto as responsabilidades materiais como também o compromisso com o cuidado, o afeto e o desenvolvimento dos filhos. O escritor Marcos Piangers, especialista em paternidade, destaca a importância dos homens se reconectarem com suas emoções e sensibilidade, desafiando a masculinidade tradicional, muitas vezes vinculada a comportamentos rígidos e distantes.
Para ele, a paternidade pode ser uma "oportunidade de cura" e de redescoberta das emoções mais genuínas, permitindo que o homem se liberte de uma "prisão masculina".
O objetivo dessa nova perspectiva é que a palavra "pai" por si só seja sinônimo de amor, cuidado, presença e responsabilidade, sem a necessidade de adjetivos que glorifiquem comportamentos que deveriam ser inerentes a essa figura. É uma busca por construir um ambiente familiar mais harmonioso, onde a casa não seja um campo de batalha, mas um porto seguro de paz e afeto.
Assumir a paternidade é embarcar em uma jornada de descobertas e, também, renúncias, na qual, por vezes, é preciso abrir espaço para que as necessidades dos filhos se sobreponham às vontades pessoais. Quando essa relação envolve crianças com especificidades ou inseridas em contextos marcados por desigualdades, o ato de cuidar se torna ainda mais desafiador e, ao mesmo tempo, mais transformador.
Longe da visão tradicional do "pai provedor", a paternidade ativa se mostra como um chamado à presença constante e sensível, desconstruindo expectativas e reconstruindo afetos dia após dia.
Nesta reportagem, O POVO+ mergulha nas inquietações e esperanças de pais que vivem essa realidade. Eles compartilham como questões individuais moldam a criação de crianças com histórias singulares, seja por um diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA), pela identidade racial ou de gênero e pelo enfrentamento cotidiano a uma sociedade ainda marcada por preconceitos.
Para pais como Italo Coelho, a paternidade atípica intensifica os desafios e transforma o futuro em um território de incertezas constantes. Segundo ele, o diagnóstico costuma chegar para nomear o que antes era dúvida, mas pode trazer consigo também medos e angústias.
Pai de Benjamim, de 4 anos e 8 meses, diagnosticado com autismo de nível 1 de suporte, Italo é advogado e relata que a identificação da condição do filho trouxe o "peso do rótulo".
Apesar de já ter bastante conhecimento sobre o autismo por conta de sua atuação profissional e até suspeitar que ele próprio seja atípico, com indícios de TDAH e possível autismo, o diagnóstico de Benjamim gerou uma reflexão profunda.
Ao lado da esposa, Alice Siebra, psicóloga que teve papel crucial ao perceber os primeiros sinais, Italo comenta que sua missão é preparar o filho para o mundo. Ele reconhece que a sociedade ainda não está completamente preparada para acolher pessoas autistas e, por isso, preocupa-se com a possibilidade de Benjamim ser olhado ou tratado de forma diferente por conta da condição.
“Meu filho não precisa andar com cordão se não quiser, porque quase ninguém percebe que ele tem algum grau de autismo se não estiver com o cordão. Mas, se ele quiser usar, estará exercendo um direito pelo qual muita gente lutou. Ao mesmo tempo, esse cordão pode atrair olhares preconceituosos. Eu, particularmente, sou uma pessoa que não se importa muito com o que os outros pensam, e é essa postura que vou tentar transmitir para ele”, comenta.
Italo entende, no entanto, que comentários ou olhares carregados de preconceito podem, em algum momento, recair sobre o filho. Por isso, ele e Alice focam em promover o autoconhecimento desde cedo, como forma de fortalecer Benjamim emocionalmente. “Primeiro, o Benjamim sabe que tem autismo, ele tem essa consciência para se preparar melhor. E segundo, ele está no jiu-jitsu…”, diz, começando uma longa gargalhada.
“Mas é só por precaução, para se defender. Agora é óbvio que a arte marcial também ajuda no desenvolvimento sensorial e no autocontrole emocional, para lidar com as situações do dia a dia”, complementa.
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O advogado cearense Ítalo Coelho trilha uma jornada de paternidade que desafia convenções e amplia debates sobre masculinidade, saúde mental e inclusão. Pai de Francisco Benjamim de Alencar, de 4 anos e 8 meses, Ítalo vive com intensidade o cotidiano de criar um filho autista, dentro de um projeto familiar que recusa trincheiras de medo, aposta no autoconhecimento e enfrenta, de frente, as injustiças de um mundo ainda pouco acolhedor à diversidade.
Benjamim foi diagnosticado com autismo nível de suporte um após 2 anos de observação clínica e terapias especializadas. Nascido em novembro de 2020, o menino chegou ao mundo em meio à pandemia de Covid-19. O diagnóstico, embora esperado por causa de atrasos no desenvolvimento da fala e questões sensoriais, impôs um novo ritmo à vida da família, que reorganizou prioridades e passou a transformar o cotidiano em espaço de escuta, presença e construção coletiva.
A decisão de contar ao filho, desde cedo, que ele é autista, reflete um princípio que atravessa todas as escolhas de Ítalo e Alice Siebra, sua esposa. Eles buscam preparar emocionalmente Benjamim para lidar com o mundo como ele é, e não como a família gostaria que fosse. “Ele precisa saber quem é, entender os limites e as forças que carrega. Isso não se ensina escondendo a realidade”, afirma o pai.
Na prática, essa preparação envolve desde conversas sobre sentimentos até aulas de jiu-jítsu, que servem para auxiliar na regulação sensorial e no desenvolvimento do autocontrole. Ítalo, que já enfrentou depressão e convive com diagnóstico de TDAH, projeta no filho o cuidado que ele próprio demorou a receber.
Embora reconheça os privilégios da classe média, como acesso a plano de saúde e terapias, Ítalo não romantiza o processo. A jornada exige investimento financeiro, suporte psicológico e vigilância constante contra o capacitismo e a desinformação.
A construção da paternidade que Ítalo vive hoje é resultado de rompimentos internos com um modelo tradicional de masculinidade. Criado em uma estrutura mais rígida e distante, ele busca ser uma referência afetiva diferente para o filho. “Eu sou o primeiro homem que o Benjamim vai observar. Quero que ele veja que homem pode cuidar, pode sentir, pode ser vulnerável.”
Diante da possibilidade de o filho sofrer discriminação, o advogado não hesita em afirmar que usará todos os meios legais para proteger Benjamim. “Não vou baixar a cabeça. Quero que ele saiba que tem direitos e que pode responder ao mundo com firmeza”, menciona Ítalo, que cita como inspiração o juiz Alexandre de Moraes da Rosa, que ostenta publicamente seu diagnóstico de autismo.
Para ele, representatividade e luta caminham juntas, por isso a paternidade que Ítalo busca passar para o filho é uma questão também de política, justiça e reconstrução. Em cada gesto cotidiano, da escuta paciente às aulas de artes marciais, há ali um projeto de formação cidadã, um enfrentamento ao preconceito e uma aposta na potência da diferença.
Sem idealizações, mas com esperança concreta, construída todos os dias entre dúvidas, diálogos e descobertas. “Meu maior sonho é que ele seja um cara massa, que saiba que pode ser quem quiser, e que sempre vai poder contar comigo”, resume.
A cor da pele e o gênero também atravessam diretamente os pensamentos de quem exerce a paternidade. Pais de meninas, especialmente meninas negras, compartilham angústias diante de um mundo em que o machismo e o racismo ainda são estruturais. Lourival Pereira, Jeferson Ferreira e Cláudio Sena refletem sobre a responsabilidade de educar suas filhas em um contexto marcado pela desigualdade entre homens e mulheres.
Auxiliar de produção, Lourival Pereira é mais conhecido como Rival MC, por sua atuação artística no mundo do rap. Dono de uma pele negra e de um sorriso fácil sempre que fala da filha Ana Júlia, de 1 ano e 5 meses, ele conta que o interesse pelas discussões de gênero já existia em sua trajetória, mas se aprofundou quando descobriu que seria pai de uma menina.
Ele explica que muitos detalhes do cotidiano, frequentemente vistos como bobagens ou “piadinhas”, carregam vestígios de preconceito ainda normalizados socialmente. Por isso, passou a redobrar os cuidados com falas e atitudes, sobretudo quando está próximo da filha.
Como primeira figura masculina na vida de Ana Júlia, Rival MC diz sentir um alerta constante para que se tornar uma referência de masculinidade positiva e saudável. Para isso, reforça a importância de manter um lar em harmonia e cultivar uma relação respeitosa com a esposa, Amanda Jéssica. Ele acredita que o modo como trata a companheira servirá como espelho e padrão para quando a filha crescer e começar a se relacionar.
“A gente tem que deixar o ambiente o mais harmonioso possível para a Ana Júlia entender que aquilo é um lar ideal”, afirma.
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Nos bastidores dos palcos e longe dos microfones, o rapper cearense Rival MC, nome artístico de Lourival Pereira, vive sua performance mais transformadora: a de pai. Aos olhos da pequena Ana Júlia, de apenas 1 ano e 5 meses, ele quer ser mais do que um artista. Ele busca ser a referência segurança e presente para a filha, que nasceu em um lar de amor consciente e compromissado, que tem como cenário de infância uma casa onde se canta, se lê, se dança, mas, principalmente, se aprende e se cuida.
Para Rival MC, a descoberta da paternidade foi arrebatadora. “É um sentimento que só quem é pai entende”, resume. Ao saber que seria pai de uma menina, então, sentiu o peso redobrado da responsabilidade. “A gente vive numa sociedade ainda muito machista. Isso exige da gente um processo constante de desconstrução”, explica.
Ele já vinha nesse caminho desde que mergulhou na cultura hip-hop, e passou a repensar atitudes e falas. Hoje, dialoga com a esposa Amanda Jéssica com abertura para ser alertado caso reproduza, ainda que involuntariamente, comportamentos que não condizem com o homem que deseja ser.
Essa transformação se estende ao cotidiano da casa. Lourival acredita que crianças reproduzem o que veem, por isso faz da relação com a mãe de Ana Júlia um modelo de respeito e harmonia.
A paternidade consciente também envolve um olhar atento para o mundo que espera por Ana Júlia. Rival MC e Amanda têm a plena noção dos riscos que meninas enfrentam e já iniciam um processo educativo desde agora, ainda que a filha mal fale. “A gente cuida para que ela saiba se proteger, para que cresça sabendo com quem pode contar”, confirma.
O acolhimento, diz ele, sempre virá antes de qualquer atitude. “Se acontecer algo com ela, primeiro quero que se sinta segura para nos contar. Depois, vamos agir. Mas ela precisa ter certeza de que os pais são seu porto seguro."
Quem também vivencia questões parecidas e mantém esse sinal de atenção sempre ligado é o produtor cultural Jeferson Ferreira, conhecido como Jeff Lobo de Wakanda. Em 2024, ele foi um dos personagens da reportagem do O POVO+ que mostrou como homens que não tiveram amor e cuidados paternos na infância precisaram se tornar a referência que nunca tiveram.
Na ocasião, ele compartilhou como precisou lidar com questões internas profundas para poder proporcionar à filha “tudo aquilo” que lhe faltou quando criança. E não se trata de bens materiais, mas de afeto, carinho e presença, elementos fundamentais no desenvolvimento emocional de qualquer criança.
Agora, Jeff retorna ao O POVO+ destacando a importância de construir, de forma contínua, uma estrutura familiar que valorize a escuta e a empatia, sobretudo em relação às dores que atravessam as mulheres negras. Para ele, não se trata apenas de cuidar da filha Josiane Vitória, a Jojô, de 1 ano e 9 meses, mas de educá-la com consciência de sua identidade e das violências simbólicas e estruturais que poderá enfrentar.
“Tem uma parada chamada solidão da mulher negra, que atinge as mulheres desde a infância. Isso faz com que elas sejam excluídas e invisibilizadas nos locais, como a escola ou grupos de amigos. A Jojô sempre vai ser ‘a negrinha’. Então é esse tipo de violência que preocupa a gente”, comenta, referindo a si e a sua esposa Geiziane Pereira.
Jeff reconhece que não sabe como será o futuro, mas tem convicção sobre o presente. “Atualmente, o mundo é bem cruel para quem tem a nossa herança ancestral. E isso é duas ou três vezes pior para quem é mulher. Então essa questão das violências, do machismo estrutural... tudo isso nos preocupa muito.”
A maior esperança de Jeff é que a filha esteja preparada para enfrentar as adversidades, coisa que ele e a esposa não tiveram na própria infância. O casal se empenha em prepará-la para lidar com o racismo, o bullying, o machismo e a gordofobia, ensinando-a a se defender e a responder com firmeza diante das violências cotidianas.
“A Jojô está cercada por pessoas com ‘letramento suficiente’ para ensiná-la e acolhê-la. Ela vive em um ‘grande quilombo’”, afirma, referindo-se à rede de apoio afetiva e politicamente consciente que cerca a filha.
Entre as estratégias, ele destaca a importância de incentivar o diálogo desde cedo. O objetivo é mostrar à filha que ela pode sempre recorrer aos pais quando sentir medo ou insegurança, além de desenvolver uma autoconsciência afetiva e o entendimento de que a realidade é difícil, mas que ela não está sozinha.
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É no compasso das conversas no sofá, nas caminhadas de fim de tarde, nas risadas partilhadas sem pressa, que Jeferson Ferreira, conhecido como Jeff Lobo de Wakanda, constrói a ponte mais importante da sua vida: a que liga seu coração ao de Josiane Vitória, sua filha de 1 ano e 9 meses. Produtor cultural, ele se define acima de tudo como pai presente.
A paternidade entrou na vida de Jeff sem manual. Mas ele fez questão de aprender na prática. Criado em um contexto em que a figura paterna era ausente, decidiu que a história com sua filha seria diferente. “Eu queria que a minha filha olhasse pra mim e soubesse: esse é o cara que não me largou”, afirma com serenidade.
Jeferson faz questão de estar por perto, nas tarefas escolares, nos momentos de dúvida, nos silêncios compartilhados. “A gente tem que estar. Não é só dar comida, é dar afeto. É ensinar que o mundo é difícil, mas que ela tem com quem contar”, menciona.
No cotidiano, Jeff busca construir uma relação horizontal com a filha, onde o respeito não nasce do medo, mas da confiança. Por conta disso, a educação de Josiane também passa por conversas sobre o mundo que a cerca. Jeff e a esposa Geiziane Pereira não querem esconder da filha as dificuldades de ser mulher, negra e periférica em um país atravessado por violências estruturais. Mas também não vão permitir que o medo a imobilize.
Para Jeff, isso é um pilar da formação de Jojô, como a chama carinhosamente. Ele quer que ela se reconheça bonita, capaz e merecedora de tudo o que sonhar. "A gente vive numa sociedade que tenta apagar a gente. Então em casa, eu trabalho pra que ela nunca duvide de quem é."
Os impactos de uma estrutura social machista preocupam profundamente pais de meninas negras, mas não apenas. Professor da Universidade de Fortaleza (Unifor), Cláudio Sena compartilha inquietações semelhantes sobre o papel da mulher em uma sociedade marcada pelo patriarcado, especialmente no Nordeste, onde a figura do “machão” ainda é socialmente valorizada.
Pai de Alice, de 3 anos e 6 meses, ele relata viver um processo constante de desconstrução, buscando vigilância no uso das palavras, no tom de voz e nas atitudes do dia a dia. Para isso, reconhece o papel fundamental da esposa, Mariana Fontenele, cuja sensibilidade e vivência o ajudam a perceber armadilhas sutis do machismo estrutural.
Um de seus maiores desafios, afirma, é evitar que a filha cresça em uma “bolha”, protegida de tudo, e ao mesmo tempo permitir que ela vivencie o mundo real, com suas complexidades.
“Eu me preocupo em não enclausurá-la nessa bolha e em apresentá-la, de certo modo, à vida real, para que ela experimente e seja afetada pelos sentidos. Confesso que, com muito temor, às vezes acabo soltando demais para que ela possa aproveitar algo, correr algum risco. Mas acho que é para isso que estamos aqui: para viver experiências, e não simulações”, reflete.
Com anos de vivência em sala de aula, Cláudio observa que muitos jovens crescem sem encontrar algo que os motive, seja no trabalho, em um hobby ou no convívio social. Muitos, segundo ele, passam a vida buscando esse sentido ou se acomodam em zonas de conforto, sem descobrir o que realmente os move. Por isso, longe dos desejos tradicionais, ele deposita em Alice o anseio de que ela encontre prazer e realização no cotidiano.
“Eu ficarei feliz se ela conseguir encontrar algo que a satisfaça. Não precisa ser medicina, nem direito, nem nada disso, só algo que lhe traga uma felicidade sincera, que permaneça e não seja momentânea. Ela vai passar por momentos bons e ruins, isso é inevitável. Mas o mais importante é que encontre algo que faça a roda girar, que lhe dê estímulo para se levantar todos os dias”, conclui.
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A cada manhã, quando leva a filha Alice para a escola, Cláudio Sena carrega muito mais do que a mochila infantil ou o lanche do dia. Leva consigo a responsabilidade de formar uma pessoa preparada para o mundo. Professor universitário, Cláudio é pai de uma menina de 3 anos e 6 meses, e com ela aprendeu a reconfigurar prioridades, reaprender emoções e redimensionar o que, de fato, importa.
A chegada de Alice, muito desejada por ele e pela esposa Mariana Fontenele, foi um divisor de águas. "Foi um bom susto", relembra. A frase revela o tom com que Cláudio encara a paternidade: sem idealizações, mas com disposição sincera para mergulhar na complexidade da experiência. “É diferente daquela felicidade incondicional que muita gente posta. Tem alegria, mas também tem medo, dúvida, responsabilidade. E tudo isso é legítimo.”
Na rotina da família, a presença é um valor inegociável. Mesmo com a carga de aulas e compromissos acadêmicos, Cláudio se organiza para levar Alice à escola quase todos os dias e, quando possível, vê-la até mesmo no intervalo do almoço. “É cansativo? Sim. Mas não é sofrimento. É escolha”, afirma.
Ser pai de uma menina, para Cláudio, veio acompanhado de uma tomada de consciência ainda mais aguda sobre as desigualdades estruturais que atingem o corpo feminino. O desafio, então, é criar Alice sem enclausurá-la em uma bolha protetora, longe de um mundo hostil e cheio de riscos. Cláudio também entende que é preciso deixar a filha sentir, explorar, descobrir-se.
“As pessoas estão aqui para serem afetadas pelo mundo. Criar uma criança em um ambiente simulado, só com opções seguras, não prepara ninguém para a vida real”, compreende.
Ao mesmo tempo em que se empenha para apresentar o mundo à Alice da maneira melhor maneira possível, Cláudio rejeita o título de “superpai”. Para ele, não se trata de heroísmo. É sobre corresponsabilidade. “A mãe também está ali, o tempo todo. A diferença está em como a sociedade enxerga isso. Quando um pai é presente, vira destaque. Quando a mãe faz o mesmo, dizem que é obrigação. E isso precisa mudar.”
Cláudio não projeta um futuro específico para Alice. Seu desejo é simples: que ela encontre uma atividade que a faça feliz todos os dias. Que tenha liberdade para ser quem quiser, com o apoio de um pai que estará sempre por perto, sem impor caminhos, mas oferecendo base sólida para que ela escolha os próprios.
Em tempos em que o mundo exige pressa e produtividade, Cláudio Sena aposta no tempo partilhado, na escuta e na presença como formas de cuidado. Está criando Alice com afeto e consciência, sem fórmulas prontas, mas com o firme compromisso de não ser omisso. E, nesse processo, vai moldando não só o amanhã da filha, mas também se transformando em um pai mais humano.
>> Ponto de vista
Por Marcelo Bloc *
Ser pai é, por si só, um deslocamento de eixo. É aprender a se colocar em segundo plano, a priorizar os interesses de outrem — um filho — acima dos próprios. Quando essa paternidade é atípica, como no caso de quem cria uma criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA), essa entrega se intensifica, os desafios se multiplicam e o futuro se torna um campo constante de incertezas.
Em uma sociedade ainda marcada pelo machismo estrutural — que em 2025 segue vendo o pai como coadjuvante na criação dos filhos —, discutir a paternidade atípica é também questionar o que se espera da figura paterna. Trata-se muito menos de prover financeiramente e muito mais de estar presente emocionalmente, de forma ativa, constante e sensível.
O diagnóstico de TEA geralmente chega como um turbilhão. Mistura alívio — por finalmente nomear aquilo que antes era dúvida — com angústia, medo do futuro e um certo luto pelo “filho idealizado”. Para muitos pais, isso impacta o vínculo inicial, exigindo tempo e, muitas vezes, suporte psicológico para reconstruir esse laço afetivo.
A saúde mental dos pais atípicos é um tema urgente. A sobrecarga emocional e física é real, mas pouco debatida. O acesso a tratamentos especializados para os filhos — muitas vezes caros e excludentes — já é limitado; cuidar da própria saúde mental, então, costuma ficar em segundo plano. Como oferecer equilíbrio emocional a uma criança neuroatípica se o cuidador está à beira do esgotamento?
A ausência de uma rede de apoio amplia a sensação de solidão. Muitos pais enfrentam jornadas silenciosas, onde pequenas conquistas — quase imperceptíveis para quem vê de fora — se tornam grandes vitórias internas. São momentos de exaustão, mas também de intensa conexão.
Apesar disso, estudos mostram que pais de crianças com TEA exercem papel fundamental no desenvolvimento emocional, cognitivo e social dos filhos. Brincadeiras físicas, incentivo à perseverança, evocar memórias e oferecer segurança impactam diretamente no progresso da criança. No entanto, a divisão desigual das tarefas persiste. Muitas mães relatam assumir sozinhas a responsabilidade prática e emocional, mesmo quando o pai está presente.
Mas talvez o que mais aflige pais e mães atípicos seja o futuro. Como será a vida de uma criança neuroatípica quando crescer? Quem cuidará dela na ausência dos pais? Haverá inclusão real, trabalho, independência, vínculos afetivos? Essas perguntas, sem respostas claras, habitam os pensamentos diariamente.
É doloroso perceber que, ao contrário do que se espera da trajetória de um filho — crescer, ganhar autonomia e seguir seu caminho —, muitas vezes o sentimento é de que será preciso estar presente para sempre. E essa impossibilidade de garantir o “para sempre” corrói silenciosamente. Não se trata de falta de fé no desenvolvimento, mas do medo legítimo de uma sociedade ainda despreparada para acolher plenamente.
A paternidade atípica é, no fundo, um chamado à desconstrução. Desconstruir o papel tradicional do pai. Reconstruir afetos. Redesenhar rotinas. E, sobretudo, aprender a viver um dia de cada vez, celebrando o que pode parecer pequeno, mas que, para nós, é imenso.
Porque amar, nesse caminho cheio de incertezas, é insistir todos os dias em acreditar no possível.
* Marcelo Bloc é repórter de Política do O POVO e orgulhosamente pai de Luiza Bloc
A paternidade ativa, explica a socióloga Tuany Abreu de Moura, mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), parte de um princípio simples, mas ainda distante da realidade de muitas famílias: o compromisso efetivo com o cuidado diário dos filhos. Mais do que “ajudar”, diz ela, trata-se de assumir a corresponsabilidade pela vida da criança.
Com estudos avançados sobre paternidade ativa, Tuany comenta que esse conceito não nasce, necessariamente, vinculado a causas como antirracismo ou inclusão. No entanto, quando os pais se envolvem de forma genuína, é comum que outras preocupações atravessem esse exercício, seja com a questão racial, seja a vivência com filhos neurodivergentes. “Há uma interseccionalidade nesse lugar da paternidade”, observa.
Para Tuany, é fundamental reconhecer que a paternidade ativa é plural. Existem pais ativos liberais, conservadores ou progressistas, com diferentes engajamentos sociais. E, embora as estratégias variem, ela defende um ponto central: “A principal estratégia não é criar filhos para lidar com o preconceito, mas criar filhos que não sejam preconceituosos.”
O caminho, portanto, está em ensinar desde cedo que o mundo é plural e que o respeito deve ser estendido a todos os seres vivos, humanos ou não. “O ideal é que nossos filhos tenham esse olhar diverso e sejam aliados daqueles que sofrem, capazes de se unir em comunidade para enfrentar as dificuldades coletivamente”, afirma.
A socióloga também destaca que o exemplo dentro de casa é determinante. Em casais heterossexuais, por exemplo, a divisão igualitária de responsabilidades oferece à criança uma noção concreta de respeito e parceria. “Crescer em um ambiente harmonioso, com paz e respeito, é aprender a respeitar pelo respeito”, resume.
Série mostra os traumas da ausência do pai e como um grupo de homens desafia ciclos de abandono que marcaram suas infâncias para montar o quebra-cabeça da paternidade na vida adulta