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Nunca houve tanta cocaína apreendida em portos brasileiros
Reportagem Seriada

Nunca houve tanta cocaína apreendida em portos brasileiros

Volume interceptado pela Polícia Federal em pouco mais de quatro anos é 165,88% que toda a década anterior. Novos portos no País, como os do Ceará, entraram de vez na movimentação criminosa da droga pelos mares do mundo. O POVO abre nova série sobre o tráfico marítimo

Nunca houve tanta cocaína apreendida em portos brasileiros

Volume interceptado pela Polícia Federal em pouco mais de quatro anos é 165,88% que toda a década anterior. Novos portos no País, como os do Ceará, entraram de vez na movimentação criminosa da droga pelos mares do mundo. O POVO abre nova série sobre o tráfico marítimo
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A descoberta aconteceu na madrugada de um sábado, horário aparentemente inocente. Foi em 28 de janeiro deste ano. A inspeção era de rotina em um navio com bandeira de Malta — pequeno arquipélago no sul da Europa —, que havia partido do porto de Vila do Conde, em Barcarena (PA). Estava atracado em Fortaleza, no dia seguinte partiria para Natal (RN), depois pegaria a rota no Atlântico rumo à Europa. Os 10 quilos (kg) de pó branco, acondicionados em oito tabletes, estavam em duas bolsas dentro da "caverna" do navio, como é chamada a estrutura que forma o esqueleto da embarcação. Ninguém foi preso. É o caso mais recente em águas cearenses.

Quantidade de droga apreendida nos portos brasileiros, incluindo os portos cearenses (Foto: Divulgação PF)
Foto: Divulgação PF Quantidade de droga apreendida nos portos brasileiros, incluindo os portos cearenses

Os 10 kg da droga encontrada no porto do Mucuripe, em Fortaleza, foi uma quantidade quase insignificante comparada ao que costuma ser registrado em outras zonas portuárias nacionais, onde passaram seguidas vezes até de uma tonelada por ocorrência. Tal situação seria atípica até 2018 em portos do Ceará, mas eles passaram a ter pelo menos um registro nos cinco anos desde então. E não apenas em cargas pequenas, como ilustra o episódio de 1,2 tonelada em agosto de 2022, dentro de um barco no Mucuripe.

Em pouco mais de quatro anos, o número totalizado no País é que impressiona: foram mais de 200 toneladas de cocaína apreendidas nos portos brasileiros. Nunca houve tanto desse entorpecente chegando ou saindo pelas águas do Brasil. A quantidade, exatos 200.820,42 kg, foi anotada pela Polícia Federal no período entre janeiro de 2019 e março deste ano (51 meses consecutivos), em 17 zonas portuárias nacionais. É recorde. Representa 10% das cerca de 2 mil toneladas apreendidas em todo o mundo no ano de 2021 (dado mais atual), segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).

 Apreensão de cocaína em portos brasileiros, 2019-2023 (em kg)

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E surpreende mais quando se cruza o dado atualizado com a estatística de toda a década anterior. Entre janeiro de 2009 e dezembro de 2018 (120 meses consecutivos), 75,5 toneladas de cocaína haviam sido apreendidas em apenas nove portos. O crescimento comparado com o recorte mais atual, que é a metade do tempo, foi mais de duas vezes e meia maior (165,88%).

 Apreensão de cocaína em portos brasileiros, 2009-2018 (em Kg)

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Os grupos criminosos consolidaram a modalidade pelo transporte de volumes maiores que o de malas ou “mulas” em aeroportos ou por via terrestre. Quase dobraram a lista de portos utilizados no País. Deslocaram suas operações ilícitas também para portos da região Nordeste. É a parte da costa brasileira mais próxima do principal destino das drogas: África ou Europa.

Apenas Recife (PE) e Salvador (BA) apareciam nos registros até cinco anos atrás. Agora, as cargas de cocaína aumentaram e as ocorrências passaram a ser frequentes também nos portos do Mucuripe e Pecém, no Ceará, em Ilhéus (BA), em Sergipe, no Rio Grande do Norte. Vila do Conde (PA), na região Norte, também está na relação de portos utilizados pelo crime. Lá, inclusive, em novembro de 2022, onde foi registrada a maior quantidade já apreendida num mesmo caso no Brasil: 2,75 toneladas.

Porto de Santos/SP se transformou numa das principais plataformas para escoar a produção de drogas que passa pelo Brasil (Foto: Ricardo Botelho/MInfra)
Foto: Ricardo Botelho/MInfra Porto de Santos/SP se transformou numa das principais plataformas para escoar a produção de drogas que passa pelo Brasil

Essa diversificação tem sido uma estratégia dos criminosos para tentar escapar do aperfeiçoamento na segurança e vigilância na área portuária de Santos, em São Paulo. O maior porto do País segue sendo o de maiores volumes descobertos de cocaína. O terminal saltou de 48,6 toneladas (de 2009 a 2018) para 86,5 toneladas apreendidas (2019 a março de 2023). Incremento de 78%.

As ocorrências de apreensões até reduziram, mas os volumes movimentados nas docas paulistanas ainda costumam ser muito acima dos demais casos nacionais. A Polícia Federal conduz os inquéritos, por se tratar de tráfico internacional de entorpecentes, mas também atual em operações conjuntas com Receita Federal e polícias estaduais.

A frequência de cocaína interceptada no Porto de Santos é tão intensa que, entre abril e julho de 2023 — meses não incluídos nos dados repassados pela Polícia Federal —, foram apreendidos pelo menos mais 3.948 kg. Detalhando: abril (1.332 kg), maio (1.869 kg), junho (707 kg) e julho (40 kg).  É mais do que o Ceará teve da droga apreendida nas zonas portuárias nos últimos 51 meses (3.662 kg).

 

 

 

  Produção de cocaína aumentou 35% e distribuição principal é pelos mares

A produção global da droga aumentou 35% entre 2021 e 2022, segundo o Relatório Global sobre Cocaína 2023, publicado pelo Escritório sobre Drogas e Crime (Unodc), da ONU. Foi a maior alta desde 2016. Há mais cocaína no mundo e o escoamento pelos portos faz parte do plano do crime.

Fora o Oriente Médio (modal aéreo), todas as regiões do planeta recebem ou despacham a maioria da droga pelas rotas marítimas. “Quase 90% da cocaína apreendida globalmente em 2021 foi traficada em contêineres e/ou por via marítima”, indicava o órgão, em análise no ano anterior.

Apreensões globais de cocaína por meio de transporte - 2018-2021 

1) Com base nas quantidades totais apreendidas globalmente por meio de transporte 2018-2021(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução 1) Com base nas quantidades totais apreendidas globalmente por meio de transporte 2018-2021

As águas do Atlântico brasileiro têm citações de destaque no documento do Unodc, atualizado anualmente. O relatório descreve que “parte da cocaína que chega ao Brasil serve para abastecer seu substancial mercado interno; no entanto, grandes quantidades são ainda traficadas para mercados de destino como a Europa, notadamente em embarques em contêineres através dos numerosos portos marítimos ao longo da costa atlântica do Brasil”.

Entre as várias camuflagens, embarca-se droga misturada a todo tipo de carga e, mais recentemente, até nos cascos dos navios. Um agente da Receita Federal, que pediu para não ser identificado, afirma que a inserção em contêineres “até caiu vertiginosamente”. Os números mostram leve decréscimo, mas o método, chamado de “rip on/rip off”, ainda estaria como o mais praticado. É quando a cocaína é juntada a uma carga lícita, sem o conhecimento dos exportadores e importadores.

 

Apreensões globais de cocaína por meio de transporte - 2023

2) Com base no número de apreensões de cocaína globalmente por meio de transporte 2018-2021(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução 2) Com base no número de apreensões de cocaína globalmente por meio de transporte 2018-2021

 

 

Cotação fora da lei: quanto mais longe a entrega, mais alto o preço

A cocaína é tratada como o maior ativo financeiro das organizações criminosas das zonas produtoras (Colômbia, Bolívia e Peru) ou distribuidoras (Brasil). O levantamento do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc) aponta a maior facção brasileira como a maior controladora das etapas de envio da cocaína do País para os continentes europeu e africano, mas ramificado para vários portos pelo mundo.

As forças de segurança se aperfeiçoaram, há mais apreensões. Paralelamente, o crime investe fortemente em logística. Para chegar a antigos e novos entrepostos mais frequentemente, mais distantes, e lucrar mais por isso. “Eles conseguem enviar droga para qualquer parte do mundo. Basta querer. Os navios cruzam o mundo”, afirmou um agente federal, sediado em Brasília (DF), que preferiu não se identificar.

Os consórcios entre organizações criminosas de vários países facilitam as operações que passam por produção, fechamento de negócio, distribuição, definição de rotas e receptação — uma cadeia industrial da saída ao destino final. Gangues e máfias de todo porte — da América do Sul, das duas principais facções brasileiras (PCC e Comando Vermelho), grupos criminosos da África (Nigéria e outros) e da Europa (Itália, Bélgica, Rússia, “o clã dos Bálcãs”) — se aliam pelo mesmo interesse. Como "sócios", dividem despesas para absorver muito lucro, que precisa inclusive compensar as perdas com apreensões. Cooptar e “comprar” funcionários ou autoridades também são parte da logística. 

Em 2020, documentos do Unodc, da Receita Federal e de investigações policiais nacionais, da Interpol e da Europol, apontavam que 1 kg de cocaína custava a partir US$ 800 num dos países produtores, circulava por U$ 6 mil no mercado interno brasileiro. Dobrava para US$ 12 mil no México, e batia US$ 69 mil nos Estados Unidos, US$ 70 mil na China ou era comercializado de US$ 152 mil a US$ 200 mil na Austrália. Quanto mais longe a entrega, mais cara a droga será. Ou seja, a mesma droga custa até 250 vezes mais na Oceania do que no país onde foi produzida.

O promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Ministério Público de São Paulo, um dos maiores conhecedores da engrenagem do PCC dentro e fora do Brasil, descreveu ao O POVO, em março deste ano, que a facção “coloca de três a quatro toneladas de cocaína por mês na Europa”.

Segundo ele, o faturamento da organização com o tráfico interno no Brasil estaria na casa de R$ 1,2 bilhão e a movimentação para a Europa equivaleria a quatro ou cinco vezes mais do que isso. “(A facção) hoje se dedica basicamente ao tráfico internacional de cocaína. Então a gente faz um cálculo de arrecadação a partir de R$ 5 bilhões”, descreveu. Gakiya confirma que as investigações sigilosas contra o grupo criminoso seguem em andamento, para tentar conter as grandes receitas geradas pelo tráfico marítimo.

 

 

Polícia Federal não comenta cenários local e nacional 

O POVO tentou falar do volume de apreensões com a Superintendência Regional da Polícia Federal (PF) no Ceará. A demanda foi encaminhada há mais de um mês. Houve mais duas procuras nesse período, ambas sem sucesso. Nenhum delegado local teria sido designado para falar sobre o assunto.

A localização do Estado é considerada estratégica para os traficantes pela proximidade com os continentes europeu e africano, principais destinos da mercadoria ilícita. O uso de mais zonas portuárias nordestinas também se dá por esse argumento geográfico.

Apreensão de 487 quilos de cocaína no porto do Mucuripe, em Fortaleza, por funcionários da Receita Federal, em 2021, com apoio da Polícia Federal. A droga veio do Maranhão e seguiria para o porto de Rotterdam, na Holanda     (Foto: Divulgação Receita Federal)
Foto: Divulgação Receita Federal Apreensão de 487 quilos de cocaína no porto do Mucuripe, em Fortaleza, por funcionários da Receita Federal, em 2021, com apoio da Polícia Federal. A droga veio do Maranhão e seguiria para o porto de Rotterdam, na Holanda

O mesmo contato foi feito com a direção geral da instituição, em Brasília, para analisar o montante apreendido, a sequência de casos e a consolidação do tráfico marítimo a partir do território brasileiro. Mesmo tendo compilado os dados a pedido do O POVO, a PF também não indicou nenhum nome para se manifestar sobre o recorde nacional nas apreensões.

Os dados repassados pela Polícia Federal têm ausência de registros importantes. Como o caso de 206 kg de cocaína encontrados no casco de um navio no porto de Rio Grande, no interior gaúcho, em março deste ano. Ou 10,3 kg encontrados num contêiner no porto do Pecém, em outubro de 2020. * Nota da Redação: Optou-se por não incluir essa quantidade na totalização avaliada na reportagem .

Não aparecem apreensões mais recentes de 2023 (de abril aos mais atuais não foram disponibilizados), de zonas portuárias sempre utilizadas pelas quadrilhas. No Porto de Itapoá (SC), foram interceptados 42,5 kg no último dia 20. E outros 83,5 kg foram flagrados nas docas de Paranaguá (PR), no dia 26 passado.

 

  • Texto Cláudio Ribeiro
  • Edição André Bloc
  • Edição O POVO Mais Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Análise de dados Alexandre Cajazeira
  • Recursos digitais Catalina Leite, Karyne Lane e Wanderson Trindade
  • Identidade visual Lucas Jansen
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