Logo O POVO+
Lances de um flagrante: como investigação interceptou 487 kg de cocaína no Mucuripe
Reportagem Seriada

Lances de um flagrante: como investigação interceptou 487 kg de cocaína no Mucuripe

Quinze caminhões haviam saído do Interior do Maranhão com um carregamento de alga marinha em pó. Mas um dos veículos, onde também estava quase meia tonelada de cocaína escondida sob a carga lícita, fez um percurso diferente. E o motorista era "conhecido" de outra apreensão anterior
Episódio 3

Lances de um flagrante: como investigação interceptou 487 kg de cocaína no Mucuripe

Quinze caminhões haviam saído do Interior do Maranhão com um carregamento de alga marinha em pó. Mas um dos veículos, onde também estava quase meia tonelada de cocaína escondida sob a carga lícita, fez um percurso diferente. E o motorista era "conhecido" de outra apreensão anterior
Episódio 3
Tipo Notícia Por

 

 

Na segunda maior apreensão de cocaína já registrada em zonas portuárias do Ceará numa mesma ocorrência, movimentos da investigação — que ainda não haviam sido divulgados — ajudam a entender como foi possível flagrar quase meia tonelada da droga camuflada em um carregamento de alga marinha em pó no porto do Mucuripe, em Fortaleza. O produto, junto com o pó ilícito, esteve muito perto de zarpar para o porto de Roterdã, nos Países Baixos. Essa apreensão foi o ponto de partida para a operação Maritimum, uma das maiores já realizadas pela Polícia Federal (PF) contra o tráfico nos portos brasileiros.

Foi o rastro do motorista de um dos 15 caminhões transportando a alga — aquele que levava o contêiner com a carga ilegal —, que confirmou uma sequência de suspeitas e consolidou o flagrante. Foram interceptados 487 kg de cocaína. O prejuízo apontado aos criminosos, pela cotação da droga no destino previsto, chegou a 40 milhões de euros (R$ 250 milhões à época), segundo nota divulgada pela Receita Federal.

 

O caso teve o desfecho em 14 dezembro de 2021. Mas um agente da Receita, que pede para não ser identificado, contou como se deu o bastidor do episódio. Só a checagem das informações para encontrar a carga chegou a durar três dias, segundo ele. Uma pessoa foi presa. "A vistoria é feita antes de o navio sair. No scanner, o contêiner tinha a imagem um pouco diferente dos outros. Eram 15 com a mesma carga", relembra. Na divergência da imagem, foi aberto o perfil de análise de risco. Foi o ponto de partida.

487 kg de cocaína apreendidos pela Receita Federal em 14 de dezembro de 2021(Foto: Divulgação Receita Federal)
Foto: Divulgação Receita Federal 487 kg de cocaína apreendidos pela Receita Federal em 14 de dezembro de 2021

Poderia não dar em nada, mas o protocolo estava sendo seguido. Ao verificarem os dados do motorista, para esclarecer a suspeita, uma segunda descoberta: o homem já havia respondido criminalmente por outra situação ilícita. Ele havia despachado, em maio de 2021, no porto do Mucuripe, um contêiner com 640 kg de cocaína escondidos dentro um carregamento de mangas. A droga foi detectada no escaneamento no porto de Le Havre, na França.

Apenas sete meses depois e o motorista havia voltado à logística do tráfico. A alga em pó para exportação, usada na fabricação de medicamentos, havia saído por via terrestre de uma empresa na cidade de Tuntum, no Maranhão — divisa com o Piauí —, para embarcar no Mucuripe. A rota tomada pelo caminhoneiro até o Ceará foi a terceira suspeita confirmada.

"Pedimos ajuda da Polícia Rodoviária Federal para saber desse trajeto. Todos haviam feito a mesma rota, só ele havia seguido caminho diferente entre os 15 veículos", detalha. O itinerário havia sido tomado um dia antes do escaneamento no pátio do porto.

A inspeção direta ao contêiner trazido pelo motorista endossou as pistas indicadas. O cão Symon foi acionado para farejar e apontou para o equipamento ainda fechado. "Quando abrimos o contêiner, havia até as marcas de pó no chão. Nos outros 15 não havia". A cocaína estava em tabletes, camuflados no meio dos sacolões ("big bags"), usados para separar produtos dentro dos contêineres e que chegam a suportar até 1,5 tonelada.

Apreensão de 487 quilos de cocaína no porto do Mucuripe, em Fortaleza, por funcionários da Receita Federal, em 2021, com apoio da Polícia Federal. A droga veio do Maranhão e seguiria para o porto de Rotterdam, na Holanda     (Foto: Divulgação Receita Federal)
Foto: Divulgação Receita Federal Apreensão de 487 quilos de cocaína no porto do Mucuripe, em Fortaleza, por funcionários da Receita Federal, em 2021, com apoio da Polícia Federal. A droga veio do Maranhão e seguiria para o porto de Rotterdam, na Holanda

O exportador não tinha nenhum envolvimento com o caso. No método conhecido como Rip On, os criminosos tiram parte da carga original do contêiner e inserem a droga antes de o equipamento ser lacrado e embarcado. "É difícil uma apreensão desse tamanho ser feita num acaso", explica.

Aquela havia sido a maior apreensão de cocaína dentro de ambiente portuário no Ceará até então. Foi superada em agosto de 2022, com a descoberta de 1,2 tonelada dentro de um barco pesqueiro também no Mucuripe. Em outubro de 2019, a Polícia Civil do Ceará apreendeu 600 kg de cocaína, acondicionados em uma carga de manga, que seriam despachados para a Europa. Mas estavam em um galpão no bairro Pedras, fora da zona de porto.

 

Como os traficantes embarcam a cocaína

 

 

 Mais de uma tonelada zarpou de Fortaleza e foi interceptada na França

A primeira fase da operação Maritimum, da Polícia Federal, foi deflagrada em julho de 2022. Realizada no Ceará e em mais seis Estados (RN, SP, BA, RJ, PA e PE), foram cumpridos 130 mandados de prisão e de busca e apreensão. Foram interceptadas mais de 14 toneladas de cocaína nas mãos da organização criminosa, em várias operações por portos nacionais. Além dos 487 kg da droga flagrados em dezembro de 2021, houve pelo menos mais uma e meia tonelada descoberta no desdobramento da investigação que também passara pelo porto do Mucuripe naquele mesmo ano.

Na denúncia do Ministério Público Federal (MPF), foi identificada uma carga de 1.065 kg, que saiu do porto do Mucuripe e foi apreendida, em março de 2021, no porto de Rouen, no norte da França. É um ancoradouro histórico, fica às margens do rio Sena, a 200 km de Paris. Segundo o MPF, os diálogos dos membros da quadrilha apontam que teria havido um “envio bem sucedido” de 500 kg de cocaína para aquele país. Mas não é especificado se essa meia tonelada a mais transitou pelo porto cearense.

Operação Maritimum, que investiga ação de traficantes principalmente em portos do Nordeste, teve 2ª fase deflagrada em fevereiro de 2023(Foto: Divulgação Polícia Federal)
Foto: Divulgação Polícia Federal Operação Maritimum, que investiga ação de traficantes principalmente em portos do Nordeste, teve 2ª fase deflagrada em fevereiro de 2023

O porto de Le Havre, e não o de Rouen, é o principal destino de drogas na França, segundo os registros de apreensões brasileiras e francesas. Esse volume traficado a partir do Mucuripe não aparece nas estatísticas disponibilizadas ao O POVO pela PF brasileira. A ação da Maritimum tramita na Justiça Federal do Rio Grande do Norte (processo principal nº 0808282-66.2022.4.05.8400).

Pelo menos 55 pessoas são rés, acusadas na Justiça Federal por tráfico internacional de entorpecentes. A última denunciada, em abril deste ano, foi uma mulher moradora de Santos (SP). Casada com um dos traficantes presos, ela estaria executando tarefas determinadas pelo marido. Houve o bloqueio de R$ 170 milhões nas contas bancárias dos investigados na fase de inquérito.

Os envolvidos são acusados de crimes como tráfico internacional de drogas (artigo 33, caput, c/c 40, inciso I da Lei nº 11.343/2006) e constituição e participação em organização criminosa (artigo 2º da Lei nº 12.850/2013) voltada para a prática do crime de tráfico internacional de drogas e lavagem de capitais (artigo 1º da 9.613/1998). Em fevereiro de 2023 aconteceu a 2ª fase da Maritimum, com mandados cumpridos no Rio Grande do Norte, Bahia e São Paulo.

 

Tráfico no topo da agenda da segurança portuária

 "A droga é o crime que mais afeta a agenda da segurança pública portuária hoje", admite o presidente da Comissão Nacional de Segurança Pública nos Portos, Terminais e Vias Navegáveis (Conportos), delegado federal Marcelo João da Silva. Segundo ele, muitas vezes a droga que não é apreendida no Brasil acaba interceptada no exterior, mas dentro de um trabalho conjunto das organizações de aplicação da lei.

Ele comenta sobre as 200 toneladas de cocaína apreendidas em portos brasileiros em pouco mais de quatro anos: "Muitos estudiosos entendem que o volume de apreensão não é o melhor parâmetro para avaliação da eficiência do trabalho dos órgãos. Eu concordo, mas faço a ressalva que, por um lado, também indica que de alguma forma a estrutura atualmente montada por todos funciona adequadamente", defende.

Criada em 1995 — atualmente regida pelo decreto nº 9.861, de 25 de junho de 2019 —, é a Conportos, em nível federal, que certifica portos públicos ou privados quanto ao plano para riscos e segurança portuária. Os parâmetros são estabelecidos pelo Código Internacional para Proteção de Navios e Instalações Portuárias (ISPS). O mesmo trabalho é realizado por comissões estaduais (Cesportos).

Marcelo João da Silva, presidente da Conportos(Foto: DIVULGAÇÃO)
Foto: DIVULGAÇÃO Marcelo João da Silva, presidente da Conportos

"Hoje, esse fenômeno criminológico está no topo da agenda de todas as organizações que integram a Conportos e as Cesportos. A gente entende também que essas apreensões são frutos de uma parcela do trabalho da Conportos, porque as instalações portuárias brasileiras hoje, por sinal, as certificadas, são instalações mais seguras", amplia Marcelo João, que está no cargo desde maio de 2018. Ela exemplifica casos como o do porto de Santos, em que as interceptações de drogas chegaram a saltar de 400 kg para 12 toneladas anuais.

Para ele, se o Brasil não tivesse uma rede de proteção (Conportos e Cesportos), a apreensão provavelmente não aconteceria e a droga poderia ser internalizada em mercados consumidores europeus ou eventualmente apreendida no exterior. "Mas está sendo apreendida no Brasil. De alguma forma, a estrutura está funcionando. A apreensão, na verdade, é quando o sistema funciona de forma adequada", pontua.

Inspeção em contêiner por agentes portuários e da Receita Federal, quando foram apreendidos 330 kg de cocaína, em 16 de agosto de 2019 (Foto: receita federal)
Foto: receita federal Inspeção em contêiner por agentes portuários e da Receita Federal, quando foram apreendidos 330 kg de cocaína, em 16 de agosto de 2019

A Conportos é formada por representantes de seis órgãos: Polícia Federal (que preside a comissão), Comando da Marinha; Receita Federal, Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários (SNTPA), Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Ministério das Relações Exteriores. Entre as atribuições, o colegiado zela pelo cumprimento da legislação nacional, dos tratados, das convenções, dos códigos internacionais e de emendas que atualizem os protocolos de segurança pública do setor.

Também acompanha ocorrências de ilícitos penais nos portos, elabora projetos de segurança específicos ou faz parcerias técnicas e financeiras com países doadores e instituições internacionais. As Cesportos têm formações semelhantes nos cenários locais.

 

 

Brasil tem 413 instalações portuárias

 Segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), o Brasil conta atualmente com 413 instalações portuárias, divididas nas categorias de portos públicos e privados. São 222 Terminais de Uso Privado (TUP), 43 Estações de Transbordo de Cargas (ETC) e 4 Instalações Portuárias de Turismo (IPTur), totalizando 269 instalações.

Os portos públicos são 35, divididos em administrações por Companhia Docas (17) e delegados (18). Nos portos públicos, as áreas são divididas em arrendamentos, que somam 144.

Sobre a certificação ISPS Code, constam 403 portos ou instalações portuárias no Brasil, conforme listagem fornecida pela Antaq. O POVO solicitou o dado oficial à Conportos, mas a informação não foi repassada até a publicação da reportagem.

 

 

Série expôs vulnerabilidades no Mucuripe, que coincidiram com sequência de apreensões

 

Em 2022, série de reportagens do O POVO, em seis episódios, mostrou que o porto de Fortaleza, no bairro Mucuripe, esteve vulnerável, por pelo menos dois anos, em suas operações de carga e segurança, após dois ataques cibernéticos registrados em outubro de 2019 e junho de 2020. A situação foi grave ao ponto de haver o sumiço de 12 contêineres, até hoje não encontrados.

A pane generalizada deixou o equipamento portuário muito mais suscetível às ações dos traficantes. O período dos ataques hackers coincide com o início da sequência de apreensões de cocaína realizadas pela Polícia Federal e Receita Federal. Pelo menos uma vez por ano, uma carga com cocaína passou a ser interceptada pelos agentes federais nos portos cearenses.

Foto aérea do Cais do Porto de Fortaleza(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Foto aérea do Cais do Porto de Fortaleza

No caso do Mucuripe, sem sistemas de controle diante do ciberataque, o porto à época perdeu sua certificação ISPS Code (Código Internacional para Proteção de Navios e Instalações Portuárias), que atesta a segurança para o tráfego internacional de cargas. E o alfandegamento das instalações ficou em xeque. Foram quase R$ 21 milhões em multas aplicadas pela Receita Federal. Uma das autuações, referente ao furto dos contêineres, foi na casa dos R$ 11 milhões. O Porto do Pecém, em São Gonçalo do Amarante, possui o certificado ISPS Code.

Outra multa, de R$ 6,8 milhões, foi pelo descumprimento de requerimentos técnicos e operacionais para o alfandegamento dos locais e recintos ou seu cumprimento fora do prazo. O POVO apurou junto à Receita Federal que até hoje as medidas com os maiores valores não foram pagas, por estarem em grau de recurso.

Durante a publicação da série, a Companhia Docas do Ceará (CDC), que administra o Porto de Fortaleza e é vinculada ao Ministério da Infraestrutura e à Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários, emitiu respostas formais sobre a vulnerabilidade flagrante à época. O órgão ressaltava em nota que “qualquer agente público ou ente privado, que porventura tenham contribuído para a prática de atos escusos, serão exemplarmente sancionados, de modo que nenhum ato improbo ou ilegal permaneça sem a devida punição que a lei dispõe”.

O episódio dos contêineres segue sendo apurado em um inquérito sob sigilo na Polícia Federal. Em 25 de novembro do ano passado, foi deflagrada a operação Fuzanglong. O POVO revelou à época que duas empresas registradas no Ceará são suspeitas de trama e execução do furto dos 12 contêineres. Elas pertencem a um casal de empresários chineses e a uma empresária cearense — em sociedade. A carga de produtos contrabandeados, apreendida pela Receita nos equipamentos, era avaliada em R$ 11 milhões.

O que você achou desse conteúdo?