Há mais cocaína sendo produzida mundialmente, a maior quantidade dela é distribuída a partir dos mares e, dentro do recorde das cargas interceptadas nos portos nacionais, o método de ocultar a droga no casco de navios tem se destacado nas várias apreensões recentes no Brasil. Grandes quantidades viajam literalmente mergulhadas, o que aumenta a dificuldade de identificação do produto dentro da embarcação. A opção dribla vistorias mais rígidas em contêineres “contaminados”, modus operandi mais comum do tráfico.
Conforme dados compilados pela Polícia Federal, a pedido do O POVO, de 2018 a 2022, quase 5 toneladas do total apreendido foram descobertas em cascos de navios. A quantidade interceptada saltou de 55 quilos (kg), em 2018, para 2,1 toneladas no ano passado, que já foi quase o dobro do ano anterior (1,2 tonelada em 2021). O porto de Santos (SP) teve o maior volume descoberto no período, com 2,01 toneladas no período.
Essa quantidade dos dados da PF, no entanto, seria muito maior. Os registros oficiais repassados pelo órgão não incluíram operações com grandes volumes interceptados. Em 10 de dezembro de 2022, uma carga de 785 kg foi apreendida em uma casa na região da Grande Vitória (ES). Seria despachada pelo porto local para a Europa, segundo a investigação da PF.
Dentro do critério de registros, mesmo estando na casa e não na zona portuária, a quantidade poderia ser inserida na contagem de apreensões. Só essa ocorrência foi muito maior do que os 271 kg informados na listagem de apreensões do porto capixaba repassada ao O POVO.
O Ceará não é um “novato” no assunto, já teve bastante cocaína descoberta dentro de cascos de navios. Em 2020, foram encontrados 363 kg do entorpecente no Porto do Pecém, em São Gonçalo do Amarante, na Região Metropolitana de Fortaleza. E em 2022, outros 65 kg no porto do Mucuripe, na Capital.
Um flagrante da droga em dezembro 2022, no porto do Pecém, de 65 kg, também não aparece na contabilização da Polícia Federal sobre o tipo de ocultação. A apreensão mais recente da droga em portos cearenses, já em janeiro de 2023, foi descoberta dentro do casco de um navio, no Mucuripe. Acharam 10 kg da droga no alçapão do cargueiro. Isso segundo a Polícia Federal.
Já a Companhia Docas do Ceará (CDC), que administra o Porto do Mucuripe, respondeu em nota ao O POVO que “nunca houve nenhuma ocorrência dessa natureza no Porto de Fortaleza”.
O Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) confirmou ao O POVO que o local teve pelo menos quatro apreensões em cascos de navios nos últimos anos. Duas a mais que as interceptações feitas em contêineres no local.
A Inteligência da Receita Federal no Ceará tem olhado atentamente para essa “novidade da vez” — não tão nova, mas cada vez mais acionada pelos traficantes.
"O que estamos em alerta agora (no Ceará) é para o que está acontecendo muito em outros portos pelo País, a modalidade de inserir os pacotes de cocaína nos cascos dos navios", admitiu ao O POVO um agente da Divisão de Repressão e Combate ao Tráfico de Entorpecentes do órgão na região, que pediu anonimato.
O POVO apurou que mergulhadores do Corpo de Bombeiros do Ceará têm realizado as operações de mergulho para inspecionar embarcações "em análise de risco" (quando há suspeição de cocaína embarcada).
Para a inserção do entorpecente no casco do navio, a figura do mergulhador profissional passou a ser imprescindível às quadrilhas. Ele abre a grade da caixa de mar e amarra a droga na parte interna. O pó viaja envolto em fitas adesivas e sacos plásticos, separados ainda em tabletes, em média de 1 kg cada. Os mergulhadores são acionados no ponto de partida e podem até viajar para o destino final, para concluir a tarefa e “resgatar” a droga.
Casco de navio é a denominação genérica, mas o ponto específico é a caixa de mar, alçapão, “sea chest” ou “caverna” (mais relacionada à estrutura da embarcação). São dois espaços submersos, com a profundidade de acordo com o porte do navio. Fica na parte de trás da embarcação, já próximo das hélices. A caixa de mar ajuda na flutuação do cargueiro, no resfriamento dos motores e para despejo do sistema hidráulico interno.
O método segue sendo muito acionado pelos traficantes em 2023. Em apenas quatro portos no Brasil, incluindo o Pecém, foram apreendidas quase três toneladas de cocaína escondidas em cascos de cargueiros. No porto de Santos, foram 2,2 toneladas em sete operações. Outros portos com registros este ano foram em Rio Grande (RS), 206 kg; São Sebastião (SP), 400 kg; além dos 10 kg descobertos no Pecém.
Os portos de maior risco estão no continente europeu e africano
A Superintendência da 3ª Região Fiscal da Receita Federal (Ceará-Piauí-Maranhão) confirmou que a Delegacia Aduaneira já estaria "agindo sobre isso" com mais ênfase — mesmo sem dar mais detalhes a respeito. O método dos cascos de navio teria sido pauta mais constante nas reuniões mensais da Comissão Estadual de Segurança Pública nos Portos, Terminais e Vias Navegáveis (Cesportos), mesmo com registros desde 2020 no Ceará.
O receio, na análise do agente de repressão da Receita ouvido pelo O POVO, seria principalmente com o porto do Mucuripe, por ser colado à área urbana, e considerado “de águas tranquilas, digamos assim”. O Pecém tem píer offshore, com a atracação em alto-mar, dificultando mais a possível aproximação de mergulhadores. Segundo ele, a modalidade de drogas inseridas em contêineres "diminuiu vertiginosamente".
O superintendente-adjunto da 3ª Região Fiscal da Receita, Alexandre Guilherme Vasconcelos, informa que o órgão ampliou para 24 horas o trabalho de videomonitoramento nos dois portos cearenses. A Central de Operação de Vigilância foi adotada em 2022 e é operada a partir do Pecém, mas consegue a vigilância simultânea também para o Mucuripe. "Essa vigilância por câmeras é pioneira no Brasil, fora o porto de Santos", descreve o gestor da Receita.
As gestões do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) e da Companhia Docas do Ceará (CDC) descrevem seus vários protocolos de segurança e equipamentos que adotam para conter o apetite dos traficantes de drogas com os portos do Pecém e do Mucuripe. Foram quase quatro toneladas de cocaína interceptadas nas duas áreas portuárias, em 13 ocorrências entre 11/10/2018 e 28/1/2023, data do último registro no Ceará.
Em nota, o Pecém afirma ter sido, "ainda em 2005, o primeiro terminal portuário brasileiro a obter o certificado do ISPS Code (Código Internacional para Proteção de Navios e Instalações Portuárias), que está entre os mais rigorosos do mundo". O porto do Mucuripe perdeu a mesma certificação em agosto de 2022, por descumprir regras de controle de acesso de pessoas e cargas e ter sua segurança fragilizada por dois ataques hackers sofridos em 2019 e 2020.
O problema no porto de Fortaleza chegou a se manter por mais de dois anos. Apesar disso, a CDC segue mantendo em sua página eletrônica que "é certificada com o código". E até puxa para si uma informação que é igualmente exaltada pelo Pecém: "O Mucuripe foi o primeiro Porto a obter o certificado no País".
O CIPP informa que já teve quatro apreensões de cocaína escondida em casco de navios que seguiriam para a Europa. O Pecém é muito visado por ser grande exportador de frutas para o Velho Continente. A CDC informa que, até o momento, não houve registro no Mucuripe de droga descoberta nos alçapões e caixas de mar dos cargueiros, mas adota cuidados a esse respeito. Dado este que contradiz a informação da Polícia Federal sobre a apreensão de 10kg em janeiro deste ano.
Segundo o diretor de Infraestrutura e Gestão Portuária da Companhia Docas, Oswaldo George Fontenele, e o coordenador da Guarda Portuária, Enéas Braga Fernandes Vieira Júnior, é proibido no porto de Fortaleza que qualquer tipo de embarcação se aproxime dos navios atracados no cais. A inspeção nas estruturas submersas dos navios é feita diretamente pelo armador na embarcação, realizada nos ancoradouros, sem interveniência da gestão portuária.
A administração do Porto do Pecém afirma que o terminal possui sistemas de controle de acordo com as portarias da Receita Federal, além de uma Unidade de Segurança Privada e um Centro de Monitoramento e Vigilância Eletrônica (CMVE). "Para auxiliar as Forças de Segurança, são realizadas rondas diárias com equipes a pé e motorizadas, além da utilização de câmeras de alta definição, scanners e monitoramento com drone", explica o CIPP.
Tanto Mucuripe como Pecém ressaltam que a prevenção às ações do tráfico são discutidos "exaustivamente" nas reuniões mensais da Cesportos-CE, operacionalizadas pela Marinha do Brasil, Polícia Federal, Receita Federal e Agência Nacional de Transporte Aquaviário (Antaq). Os casos flagrados são apresentados à autoridade policial (PF).
No Mucuripe, após a pane nos equipamentos de segurança registrada em série do O POVO, "o acesso às áreas internas é totalmente controlado. Todos os veículos são inspecionados. Seja qual for o veículo. Até os veículos dos gestores. E quando entram, recebem uma identificação na lataria indicando em quais áreas estão autorizados a circular". A CDC acrescenta que utiliza escâner de carga para contêineres e demais veículos e de bagagens para o caso de tripulantes e usuários que acessem conduzindo malas, sacolas e bolsas.
>> Bate-pronto
Arthur Pinto de Lemos Júnior, procurador de Justiça, secretário especial de Políticas Criminais do Ministério Público de São Paulo, comenta a ação de traficantes de drogas nos portos nacionais.
O POVO - Como dimensionar a importância do tráfico de cocaína pelos portos brasileiros para a movimentação financeira das organizações criminosas? Quais são as cifras desse negócio?
Arthur Pinto de Lemos Jr. - Não temos dúvidas em eleger como de extrema importância a utilização dos portos para a prática do crime de tráfico de drogas. As estatísticas evidenciam claramente essa situação e o trabalho do MPSP também. Não temos como dimensionar as cifras envolvidas no tráfico de drogas que se utiliza dos portos. O fluxo é internacional e, de fato, envolve valores muito altos.
OP - Como descreve a logística usada pelos criminosos?
Lemos Jr. - A estrutura se assemelha a de uma empresa bem organizada, com divisão de tarefas e células que atuam em sintonia. Existe braço bem especializado que atua na parte financeira e na lavagem de dinheiro, para que o lucro possa ser dissimulado e usado no incremento da atividade ilícita. Tal lucro é bem utilizado para corromper funcionários públicos de diferentes órgãos, a fim de garantir o sucesso do plano criminoso e a manutenção da impunidade. A chefia da organização criminosa se resguarda numa posição de clandestinidade e total opacidade, com contatos exclusivos com o braço que cuida da lavagem de dinheiro e os principais gerentes da empresa criminosa.
OP - Quanto estima que passe de volume de drogas sem ser apreendido?
Lemos Jr. - Não temos esse percentual preciso. Podemos dizer que, atualmente, a maior facção criminosa do Brasil se utiliza dos portos para transportar a droga para os países europeus e africanos. Embora não possamos precisar o percentual, não temos dúvidas também que a investigação policial tem tido êxito nas apreensões e atualmente diminuiu o índice de sucesso do comércio relacionado com o tráfico internacional da droga.
OP - Quais as relações do PCC com as máfias internacionais, que viabilizam essa modalidade?
Lemos Jr. - O PCC sempre se dedicou ao tráfico de drogas e, por ser o mais lucrativo, prioriza o internacional. Embora tenha autonomia e representantes situados no exterior, o PCC também comercializa drogas com outros grupos criminosos internacionais.
Total: 3.804,2 kg
Ocorrências: 13
Período: 52 meses
Reportagem especial mostra apreensão recorde de cocaína nos portos brasileiros de 2019 a 2023. Traz dados exclusivos e análises ao longo da série