"Oportunidade". No dicionário da língua portuguesa, o termo pode ser definido como “uma situação favorável. Mas, para pessoas que não são heterossexuais, está associado a um mero sonho, a algo que é negado.
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Uma das evidências é o índice de desemprego de 26,1% das Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Travestis, Queers, Intersexuais, Assexuais e todas as demais expressões de gênero e sexualidade humana que se reúnem sob a sigla LGBTQIA+.
O dado integra levantamento de 2020 feito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Unicamp, em parceria com o coletivo “#VoteLGBT”, e destaca que a taxa de desocupação da comunidade é o dobro da registrada na população geral do País, delimitando um cenário no qual LGBTs sonham com colocações no mercado de trabalho.
“E isso é só o começo”, como define a travesti e cineasta cearense Noá Bonoba: “As oportunidades são escassas, são mais difíceis, mas isso vai além. O próprio acesso à escolaridade, à educação formal de maneira mais ampla já é difícil para pessoas trans, travestis, não-binárias e demais corpos que fogem do que é considerado o padrão”.
Ela pondera ainda que não somente a entrada, mas também a permanência nestes lugares se torna mais difícil: “desde a escola, ou primeira infância, somos reprimidos pelas estruturas e crenças hegemônicas que dominam estes locais, que se tornam muito violentos para nós. Temos sempre que lidar com um sentimento de não-pertencimento”.
E vai além. Levantamento realizado pelo grupo Croma, especializado em pesquisas empresariais, evidenciou que 75% dos LGBTs reconhecem a existência de preconceito e discriminação durante processos seletivos. O estudo feito em 2020 estima ainda que 53% dos membros da comunidade já sofreram algum tipo de preconceito no ambiente de trabalho.
Os dados acima integram pesquisas de âmbito nacional e sem relação com órgãos de governança e fazem parte de um movimento de pesquisa para além do poder público, que, por sua vez, detêm um apagão de dados sobre o tema.
No Ceará, ao O POVO, a Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos informou, com relação à população LGBTQIA+, especialmente informações de empregabilidade da comunidade, após passar três dias investigando, que não havia qualquer base de dados sobre o tema.
Foi então que, ao entrar em contato com o Ministério Público do Trabalho, o órgão realizou uma pesquisa inédita e com exclusividade ao O POVO na qual destaca que entre 1º de janeiro de 2016 e 15 de junho de 2021, houve apenas seis denúncias de discriminação por causa da orientação sexual e outras 15 relacionadas ao preconceito de gênero no Estado.
Esta quantidade, porém, não representa um avanço na equidade de direitos e no respeito, e sustentam um cotidiano de violência não registrado pelas autoridades.
“Esses números são muitos pequenos porque há uma subnotificação expressiva destas situações de discriminação”, conforme explica Adriane Reis, representante da Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade).
A procuradora destaca que a descrença nos canais de denúncias, a cultura de culpabilização da vítima e o temor da reação dos demais envolvidos no caso de discriminação são alguns dos principais fatores que influenciam no baixo de registro de denúncias.
Mas dentre as principais queixas citadas pela especialista estão: desigualdade de acesso ao trabalho, desigualdade salarial, dificuldade na progressão de carreira, esquecimento de determinada pessoa em ações de promoção e o pagamento do patamar mínimo salarial para desempenho daquela função.
Assim, para além da entrada mais difícil, a permanência no ambiente de trabalho para pessoas LGBTQIA+ pode representar uma rotina de discriminação, seja explicita ou velada. “Alguns locais são ambientes que apresentam discursos muito machistas, misóginos, preconceituosos, capacitistas. São ambientes de trabalho hostis, de forma que as minorias que conseguem ingressar se sintam desestimuladas a seguir ali”, complementa Adriane, destacando a população Trans e Travesti como as mais vulneráveis a esse tipo de violência.
Neste contexto, Noá comenta que seguir a carreira acadêmica não tem sido fácil e que, para além da discriminação, faltam projetos de apoio para permanência de grupos minoritários nestes espaços. Ela critica ainda o discurso que prega o tom de comemoração quando divulga-se que, pela primeira vez, algum cargo ou lugar está sendo ocupado por uma pessoa trans, por uma travesti, mulher preta, ou indígena.
“Eu sou a única trans no programa de doutorado em Comunicação da UFC (Universidade Federal do Ceará), mas isso para mim não tem nada a se comemorar. Estar ali sozinha, sendo a primeira, a única, isso é uma realidade extremamente violenta. É um diagnóstico de que a transfobia é estrutural. Meu papel é questionar porque eu sou a primeira e porque mais pessoas como eu não estão ali e, às vezes, eu sou tida como a louca, a barraqueira, a atrevida, mas é meu papel também tentar abrir caminho para que outras como eu consigam chegar onde eu estou agora”, afirma Noá.
Com relação à ausência de pesquisas sazonais e institucionalizadas sobre o tema, Adriane define tal realidade como um grande empecilho na realização de políticas públicas efetivas para a promoção da diversidade e combate à discriminação no âmbito trabalhista.
Diante dos dados e da realização de censos segmentados como ponto de partida de qualquer ação social institucional, ela pondera ainda que caso não ocorra um levantamento de dados, a efetividade de qualquer ações que busque promover a diversidade e o fim da discriminação ficam sem perspectiva alguma de resultado prático.
"Devemos buscar junto aos órgãos públicos a construção de senso com esse tipo de dado, com esse recorte, para poder exigir políticas públicas adequadas para cada público, para cada localidade. "
E Noá Bonoba, que assume a missão de tentar reescrever a história do audiovisual brasileiro destacando as contribuições das minorias, pondera que diante da não ação dos órgãos competentes, a própria comunidade passou a se movimentar, a exemplo dos levantamentos feitos pela Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra).
“Se a gente mesmo não fizer, sabemos que ninguém mais vai atrás”. Ela frisa ainda que para além da abertura de vagas para pessoas trans e demais integrantes da população LGBTQIA+, se faz necessário questionar a estrutura social que impede que tais pessoas ocupem e permaneçam nesses espaços.
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“A inclusão é necessária, mas ela, por si só, jamais será suficiente. Devemos nos questionar o porquê de pessoas trans não estarem ali, devemos nos perguntar: Quem são as pessoas que ocupam os cargos de mando e gestão? Quem ocupa a Presidência do jornal O POVO? E das demais empresas? E, principalmente, perguntar, porque não uma pessoa trans?”, argumenta.
Enquanto promotora do Trabalho, Adriane diz que uma das justificativas que ela identifica durante ações que cobram maior diversidade nas empresa é que não existem profissionais capacitados dentro das minorias.
“E nós sabemos que essas afirmações não condizem com a verdade”. No cotidiano do audiovisual cearense, tal argumento já foi usado para tentar silenciar as cobranças de representatividade feitas por Noá: “Eu estava pedindo mais pessoas trans nas produções, nos cargos de direção e me disseram que não tinha ninguém capacitado, que seria necessário primeiro um processo de formação, que levaria tempo e seria inviável”, lembra.
Como resposta, Noá decidiu produzir o curta metragem “Lalábis”, atualmente em fase de pós-produção, de forma independente e com equipe técnica e artística composta essencialmente por pessoas trans: “Foi para mostrar que existem pessoas altamente capacitadas, existem trans, travestis, toda comunidade T, que são capazes de ocupar qualquer tipo de cargo nesta sociedade. O que não existe é uma disposição de sair do conforto, de sair do que já existe, dos critérios de seleção em vigor das comissões avaliadoras, das bancas de seleção, das pessoas que conduzem as entrevistas de emprego. Essa vontade, essa disposição, é o que faz falta”, frisa.
Para além de um problema social, a discriminação por identidade de gênero e por orientação sexual também é um problema econômico, que afeta não somente os membros da comunidade LGBTQIA+. O dado mais recente disponível sobre essa situação foi elaborado ainda em 2018 pela consultoria de mercado OutNow Global, que estima um prejuízo anual de US$ 405 bilhões para a economia brasileira por conta do preconceito.
Com a cotação atual do dólar, em torno de R$ 5, a estimativa do prejuízo anual para o País em decorrência do preconceito está no patamar de R$ 2 trilhões, levando em consideração perdas do turismo, em investimento estrangeiro, de público consumidor e ainda gastos judiciais com processos jurídicos relacionados a ações discriminatórias.
Não há qualquer estudo que busque realizar tal estimativa com relação ao Ceará, porém, a especialista Darla Lopes, integrante do Conselho Regional de Economia, pondera que a persistência da discriminação resulta em atrasos no desenvolvimento do Estado.
“Nós não podemos mais fechar nossos olhos sobre isso, discriminar LGBTs, não é apenas errado e ilegal do ponto de vista moral e jurídico, como também é maléfico para economia”, afirma.
A economista pondera existir estimativas que destacam que a média de consumo da comunidade é até 30% maior do que o de pessoas heterossexuais. “Não podemos seguir ignorando esse público consumidor”, pontua.
Cláudia Buhamra, pós-doutora em Marketing e Sustentabilidade e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), complementa a análise ao destacar que o perfil consumidor LGBTQIA+ precisa de uma “atenção especial” e define o público como excelentes consumidores.
"São compradores de bom gosto, exigentes. Representam um consumo mais sofisticado, muitos dispostos a pagar mais para serem melhor atendidos."
Do ponto de vista mercadológico, Cláudia destaca ainda que é preciso “entender para entender” e reforça a necessidade de segmentação de mercado, pensando em produtos e serviços específicos para cada público.
“Temos avançado bastante neste mercado da diversidade, mas ainda não é o ideal”, pondera. Em um panorama geral sobre a defesa da diversidade em propagandas e ações do mercado, Cláudia é categórica: “São mudanças culturais que vão interferir no comportamento do indivíduo e isso leva muito tempo. E se isentar totalmente de críticas… Isso é impossível”.
A especialista detalha ainda que mesmo que o mercado tente concentrar suas ações em divulgação de pontos positivos ou características que fogem do reconhecimento da existência do preconceito, a persistência da discriminação em si prejudica a arrecadação do “custo de oportunidade”, relacionando com a perda de potenciais consumidores, potenciais clientes, turistas, gerando a perda de verbas que poderiam adentrar na economia local.
Impactos econômicos do preconceito de gênero e discriminação contra LGBTs no Ceará