O processo de licenciamento ambiental do Projeto Santa Quitéria para mineração de urânio e fosfato no Ceará pode ter o destino decidido na Justiça.
A violação do direito das comunidades de ter consulta prévia livre, a divisão do licenciamento entre Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) e o aceite do Estudo de Impacto Ambiental (EIA), mesmo faltando dados sobre a mineração, são os motivos para judicializar a questão.
Os apontamentos são das pesquisadoras Raquel Rigotto e Talita Furtado, que compõem a Articulação Antinuclear do Ceará. Pareceres técnico-científicos fundamentam as denúncias feitas por elas.
Os documentos contra o licenciamento tiveram como base o EIA apresentado pelo Consórcio Santa Quitéria, formado pela Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e Galvani Fertilizantes, e serão entregues ao próprio Ibama, à Defensoria Pública da União, à Defensoria Pública do Estado, ao Ministério Público Federal e ao Ministério Público do Trabalho.
A Justiça foi o meio encontrado por movimentos sociais, cientistas e Organizações Não-Governamentais que compõem a Articulação para barrar o Projeto em 2010 e, segundo indica Talita Furtado, “pelo fluxo que está sendo desenhado em torno desse licenciamento ambiental, há um conjunto de ilegalidades flagrantes que coloca a possibilidade de judicialização desse empreendimento.”
O grupo contrário à mineração teme que o estudo como está vai ser considerado suficiente para ser concedida uma licença prévia.
O POVO entrou em contato com o Ibama sobre os apontamentos das pesquisadoras, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.
Professora da Universidade Federal Rural do Semiárido, membro do Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (Tramas) e advogada, Talita analisou o licenciamento ambiental da exploração de urânio e fosfato de Itataia na graduação e no mestrado, pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e, agora, permanece com foco no processo.
A pesquisadora Talita Furtado diz que não houve, pelo Ibama, a realização de consultas prévias com as comunidades impactadas pela mineração e classifica isso como uma violação do direito dessas pessoas. O que agravou a questão foi o aceite dado ao EIA do Projeto e o início das etapas de audiências públicas, de 7 a 9 de junho de 2022 em Santa Quitéria, sem qualquer menção às consultas prévias.
O comportamento do Ibama ainda é criticado por aceitar o projeto remodelado com uma menor área de impacto, reduzindo e não reconhecendo, segundo diz Talita, comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas sob influência da área de exploração de urânio e fosfato.
“Isso serve tanto para comunidades indígenas quanto quilombolas e tradicionais que estão sofrendo o processo invizibilização, tanto porque podem ser atingidas direta e indiretamente quanto tem pedido de consultas recusados. Mas, para além dessa violação, que é importante, tem muitas outras violações, como a fragmentação do licenciamento ambiental, que é vedada por lei que se fragmente”, acrescenta.
A divisão do EIA entre Ibama e Cnen também é alvo de críticas dos pareceres. Para a advogada, “o legal seria uma integração entre esses procedimentos administrativos”, pois não é possível fazer um estudo de impacto ambiental sem conhecer os dados relativos à radioatividade, uma vez que os riscos de contaminação são maiores no manuseio do urânio.
“Então, essa separação do licenciamento ambiental do licenciamento nuclear é muito problemática. Deveriam estar integrados. Assim como deveriam estar integrados todo processo de construção da adutora de concessão da outorga de água, que geraria informações necessárias para discutir a viabilidade hídrica dentro desse processo de licenciamento ambiental”, complementa, em referência a uma das obras prometidas pelo Governo do Ceará à indústria de mineração.
O segundo processo de licenciamento do Projeto Santa Quitéria barrado, em 2019, teve no risco hídrico para a região o motivo da decisão pelo Ibama.
“Como o Ibama pode conceder uma licença prévia atualmente e não se contradizer com a decisão do processo anterior, que recusou, quando os problemas ainda estão presentes de certa forma?”, indaga.
A advogada Talita Furtado ainda menciona a falta de informações sobre um dos gases emitidos no processo de exploração do urânio e fosfato, o radônio.
O gás é apontado como um dos principais riscos para a saúde das pessoas em Itataia, segundo explica Raquel Rigotto, professora titular do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Coordenadora do Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (Tramas).
Ela explica que o radônio é incolor, inodoro e invisível e pode resultar em uma contaminação por radiação nos trabalhadores e nas comunidades ao redor, atingindo pessoas, animais, águas, ou seja, todo o meio ambiente.
No Relatório de Impacto Ambiental (Rima), o Consórcio Santa Quitéria informa que “é gás radioativo inerte, ou seja, não reage quimicamente a outras substâncias em condições normais” e diz ainda que “o radônio presente na atmosfera que envolve o Projeto Santa Quitéria está em baixíssimas concentrações e não representa risco à saúde das pessoas.”
“Como a mina será a céu aberto, haverá alta dispersão atmosférica no local pela ação dos ventos”, complementa o texto das empresas.
A necessidade de informações mais precisas sobre as emissões do radônio é apontada pelas pesquisadoras como crucial para a melhor avaliação do projeto pelos órgãos responsáveis e, somente a emissão de tal gás torna, para elas, o projeto inaceitável.
Raquel Rigotto se dedica a pesquisar o impacto da exploração em Itataia desde 2010, quando o grupo Tramas foi acionado pelas comunidades circunvizinhas da jazida, e aponta a falta de dados sobre a presença de radionuclídeos nos fosfatados produzidos pelo Consórcio Santa Quitéria como mais uma questão séria ignorada nos documentos.
Os radionuclídeos são partículas radioativas imperceptíveis aos olhos humanos cuja vida no ambiente é indefinida. De acordo com a pesquisadora, este é um problema pouco mencionado quando se fala na necessidade de fabricar mais fertilizantes para diminuir a dependência do Brasil de exportações.
O Projeto Santa Quitéria estima produzir cerca de 1,05 milhão de toneladas de fertilizantes fosfatados e mais 220 mil toneladas de fosfato bicálcico (usado na nutrição animal) para atendimento da agropecuária no Norte e Nordeste, mas não há menção à presença dos radionuclídeos nesta produção.
O Rima traz que “haverá, também, um Programa de Monitoramento Radiológico Ambiental Pré-Operacional (PMRA-PO), que vai acompanhar a presença natural de radionuclídeos na região do empreendimento, nas circunvizinhanças, na água superficial e subterrânea, solo, vegetação, animais e cadeia alimentar.”
“Serão feitas várias medições antes do início da operação, que permitirão verificar se haverá alterações ao longo das atividades”, detalha o texto apresentado pelo Consórcio de mineração.
Sem essa mensuração prévia, diz Rigotto, os órgãos licenciadores admitem a criação de uma “zona de sacrifício” no Norte e Nordeste do País a partir da contaminação dos solos pelos fertilizantes com elementos radioativos de Itataia. Isso faria com que as plantações, os animais e os humanos das duas regiões do País tivessem contato com a substância, causando danos aos organismos deles.
A professora da UFC ainda menciona o ofício da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) enviado ao Consórcio Santa Quitéria considerando o
“Então, a Cnen está admitindo um filho do urânio no fosfato que está produzindo. Não há detalhes, mas isso amplia a nossa preocupação”, alerta.
As duas falhas no Rima apontadas pelas pesquisadoras ainda implicam riscos sobre as águas, tanto subterrâneas quanto superficiais. Elas recordam que a região de Itataia é berço de nascentes que alimentam os rios Curu, Acaraú e Aracatiaçu.
A bacia hidrográfica do Rio Curu atravessa 15 municípios cearenses até chegar ao mar, em Paracuru. Já o Acaraú é o segundo maior rio do Ceará, com 370 quilômetros de extensão, e com o Açude Paulo Sarasate (Açude das Araras) no percurso até o oceano Atlântico, na cidade de mesmo nome. Por fim, o Aracatiaçu vai de Sobral até Amontada, na Praia das Moitas.
“Há uma enorme possibilidade de disseminação de contaminação que não está sendo levada em conta”, reforça Raquel Rigotto.
Outra característica do Projeto Santa Quitéria que preocupa a professora titular do Departamento de Saúde Comunitária, Raquel Rigotto, é o uso de coque de petróleo como combustível. De acordo com ela, serão 621 mil toneladas de CO2, “que é o gás do efeito estufa”, emitidas por ano, além de concentrar enxofre, nitrogênio e gases nitrosos na região.
“É impressionante como se escolhe uma via energética dessa. É uma escolha econômica, pelo baixo custo. O coque de petróleo tem hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, vários dos quais são cancerígenos, e tem vários metais pesados”, explica a pesquisadora que prevê diagnósticos de doenças causadas por esse combustível no futuro em trabalhadores que atuarem na pilha de coque, na moagem, no transporte e na queima desse material.
As perspectivas de saúde e meio ambiente também foram entregues aos órgãos ministérios públicos. O Ibama e o Consórcio Santa Quitéria foram procurados pelo O POVO para comentar as denúncias, mas não retornaram até o fechamento desta reportagem.
“Todo sistema de Justiça tem um papel muito importante porque as irregularidades são flagrantes”, conclui a professora.
Confira vídeo com a professora Raquel Rigotto sobre os principais pontos identificados por ela como riscos para a exploração de urânio e fosfato no Ceará.
Reportagem seriada sobre produção de urânio e fosfato no interior do Ceará, em Santa Quitéria