Ser a única mulher em um ambiente predominantemente masculino já foi tema de livros, filmes e peças teatrais. As representações sobre o tema variam, e podem ser como no filme “Até o Limite da Honra”, protagonizado por Demi Moore, ou mesmo “Tár”, com Cate Blanchett.
Neste, Blanchett vive a primeira mulher a comandar a Orquestra Filarmônica de Berlim. As discussões sobre poder, gênero e música renderam críticas elogiosas à película. Agora imagine uma Lydia Tár no sertão cearense. Mas longe da imposição de voz e atitudes moralmente ambíguas, nossa personagem tem traços suaves, fala mansa e vai à missa. Ela é Ana Soares de Sá Oliveira.
À primeira vista, uma senhora que se perderia facilmente no meio de tantas outras. Passaria despercebida na festa de São Gonçalo do Amarante, padroeiro de Umari, sua cidade natal. Isto é, se perderia se não fosse, ela própria, uma atração à parte. Assim como a protagonista hollywoodiana, nossa personagem é uma musicista conhecida. Dona, ou melhor, Mestra Ana não é regente. É rabequeira - e a única em todo o Ceará.
Assim como perceberia Ana entre outras senhoras, o olho pouco treinado poderia facilmente confundir uma rabeca e um violino. Afinal, podem ter o mesmo formato, mesma cor, mesmo som e até a mesma alma. O próprio instrumento, que as mãos finas de Mestra Ana manuseiam tão velozmente, nasceu como um e converteu-se em outro. E é o uso que ela faz das cordas que realmente se destaca. É difícil perceber onde termina Ana e começa a rabeca. Em meio às notas roucas, as duas parecem estabelecer uma simbiose, quase como se o instrumento fosse uma extensão da tocadora.
Ao falar sobre o instrumento, o escritor modernista Mário de Andrade, certa vez, declarou que a rabeca é o violino do povo. Já o violinista e professor da Universidade do Estado de Santa Catarina, Luiz Fiaminghi, é mais enfático ao dizer que "a rabeca é o instrumento característico das comunidades que permaneceram isoladas por um longo tempo". Com essa definição, Ana e a rabeca se imbricam ainda mais.
Nascida em 1941 na cidade de Umari, distante cerca de 400km de Fortaleza, Mestra Ana toca há mais de 60 anos. Entretanto, o mundo só conheceu seu talento em 2015, quando o jornalista e pesquisador Gilmar de Carvalho, depois de 13 anos coletando dados sobre rabequeiros, chegou ao distrito de Baixio dos Gaviões à sua procura.
O professor, em parceria com o fotógrafo Francisco Souza, estava finalizando a pesquisa que daria origem ao livro “Tirinete – Rabecas da tradição”. Foi por meio de outro rabequeiro, Chico Barbeiro, que durante uma viagem ao Cariri os pesquisadores se depararam com dona Ana. O encontro é quase anedótico - ela estava viajando. O motivo? Tocava em uma festa na cidade vizinha, do lado paraibano da divisa.
Apesar das apresentações ao público, a música nunca foi uma carreira. Claro, se fez presente em todos os momentos de sua vida, porém o sustento da família sempre veio do roçado. Ana toca por prazer, como faz questão de ressaltar. “Se eu pudesse, não fazia outra coisa”, conta entre uma suave risada.
A relação com o instrumento vem de família. Zé Neco, pai de Mestra Ana, também era rabequeiro e acabou arrastando o primogênito Estácio para tocar nas festas da região. A dupla acompanhava quadrilhas juninas e os "caretas", figuras mascaradas tradicionais da Semana Santa. Ana gostava de olhar o pai tocar a rabeca e aprendeu a afinar com ele. "Quando ele soltava, eu pegava", afirma.
As nuances da relação de Mestra Ana com a música têm tudo a ver com os papeis de gênero, como destaca a violoncelista e professora da Universidade Federal do Ceará Yanaêh Mota. Para a docente, é nítido que a biografia da rabequeira é um ponto fora da curva, e muito graças ao incentivo da família. Para a maioria das mulheres a realidade se apresenta de uma maneira muito mais complexa, e em recorrentes oportunidades, há que se fazer uma escolha: ou a família, ou a carreira.
E foi na família que a musicista encontrou a arte. Ainda adolescente, formou uma banda com as duas irmãs - Maria, que tocava pandeiro, e Honorina, que fazia soar o triângulo. Curiosamente, os primeiros acordes que Ana produziu para o público não foram com as cordas, e sim com o fole. Ela completava o trio “dando show na sanfona”, como conta sem rodeios. O repertório incluía músicas dos anos 1960, muito xote, baião, valsa e choro.
A paixão pela rabeca começou entre os 15 e os 16 anos. Quando menos esperou, vinha gente de toda a região para “curiar” a mocinha que empunhava o arco e tirava som das quatro cordas. Ela ficava encabulada, conta em voz baixa, revelando que ainda não é muito afeita aos holofotes.
Na análise de Yanaêh Mota, a história de Mestra Ana é um contraponto às normas tradicionais também nesse sentido. Ao longo da história da música, apesar das mulheres terem sido incentivadas a terem uma educação musical, eram sempre instrumentos como o piano, restrito à sala de casa ou à igreja, ou aqueles de tons mais agudos e percebidos como delicados. Além disso, a exposição ao público era reprovada e muitas vezes associada a condutas pecaminosas.
Como já foi dito, um violino, de fato, pode ser facilmente confundido com uma rabeca. Neste caso, não somente pela sua aparência similar, e também por agregar elementos simbólicos e abstratos da cultura popular. Para os professores Roderick Santos e Gilmar de Carvalho, os dois instrumentos, são essencialmente os mesmos.
Na avaliação feita pelos dois no livro “Isso não é um violino?: usos e sentidos contemporâneos da Rebeca no Nordeste” o que estabelece a diferença são os sentidos atribuídos, pelo público e pelo intérprete.
Em se tratando de atribuições culturais, a professora Yanaêh Mota volta a destacar que o fato de Ana ser a única mulher tocadora de rabeca está intrinsecamente ligado aos papéis de gênero tradicionalmente designados.
A docente lembra que dentre os instrumentos de cordas friccionadas, o violino é o mais comum de ser tocado por mulheres, pelo tamanho reduzido e som mais agudo. Para ela, Mestra Ana rompe, mais uma vez, com as convenções ao se apropriar de um apetrecho musical que não só é mais grave - e por consequência masculinizado pelos operadores da cultura - como é percebido como um marco da tradição do sertão nordestino.
O também professor de música Felipe Trotta cita em seu artigo “Som de Cabra Macho - sonoridade, nordestinidade e masculinidades no forró” que “as sonoridades participam ativamente das negociações cotidianas de símbolos, gostos, estilos de vida e disputas culturais, econômicas e políticas".
Sendo a música um elemento constituinte da cultura, para Trotta é importante demarcar o que está sendo representado. A identidade “nordestina”, segundo ele, está aclimatada na luta pela sobrevivência num ambiente natural hostil, o sertanejo será personagem chave dessa construção.
Se estabelece, assim, uma espécie de narrativa universalizante de “sertenejo”, materializada em variantes como o vaqueiro, o retirante, o cangaceiro, o jagunço, o beato, o coronel, o lavrador explorado. E todos esses personagens têm em comum a sua origem geográfica e sua condição de “machos”, que se associa também à própria identidade regional.
Mestra Ana representa, nesse sentido, um marco de resistência e um exemplo de como a cultura, apesar de operar dentro dos padrões socialmente construídos, pode ser dinâmica. Seu modo de ser é simples, leve e até irreverente por vezes, o que contrasta com a expectativa do padrão construído para quem carrega as marcas dessa “nordestinidade” masculina.
É um jogo de negociações simbólicas, um exercício de perceber que, por vezes, o que parece, não é, de fato. A própria rabeca de Mestra Ana tem grife de violino. O instrumento, comprado por seu Zé Neco aos 22 anos, foi produzido na luteria parisiense Jerôme Thibouville Lamy & Cie. Mestra Ana herdou a rabeca nos anos 1970, na época que se mudou para São Paulo com o esposo e os filhos.
Uma maneira de se manter ligada às raízes da terra para a qual retornaria poucos anos depois. Ana encharca de sentidos seu título de rabequeira quando se junta em uma roda para tocar o vasto repertório. Geralmente é acompanhada pela irmã Maria, que toca o pandeiro e mais recentemente ganhou os toques da zabumba da professora Edna Rodrigues. Ela é responsável pela teoria musical na escola de música fundada por Mestra Ana em 2019.
O trabalho exercido por Ana lhe rendeu o título de Mestra da Cultura e Tesouro Vivo do Ceará em 2022. Criada em 2003, a condecoração reflete um reconhecimento institucional para difusores de tradições, história e identidade, e que atuam no repasse de seus saberes às novas gerações. Além do certificado público, os Mestres e Mestras da Cultura recebem subsídios mensais para manter suas atividades.
Foi a partir desses recursos e de editais públicos incentivo à cultura, que Mestre Ana conseguiu comprar mais rabecas e alguns equipamentos para sua escola de música. Lá, uma nova geração está absorvendo a cultura da rabeca e do cordel. Chama a atenção a presença de muitas meninas, o que garante que, por hora, Mestra Ana é a única rabequeira, mas certamente não será a última. Quanto ao ensino, segundo a musicista, ela entra com a experiência e a professora Edna com “as notas [musicais]”. Pelo trabalho realizado com as crianças de Umari, a Escola Ana da Rabeca recebeu a certificação de Ponto de Cultura pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará em 2023.
O reconhecimento obtido por meio da sua atuação como musicista ganhou um novo capítulo recentemente, com a inauguração do museu orgânico que leva seu nome. O equipamento é o 17º da categoria implantado por iniciativa do Serviço Social do Comércio do Ceará (Sesc Ceará). Os museus orgânicos são baseados no vínculo com a história e dos lugares onde vivem e atuam os mestres da cultura popular e ressaltam os diversos ciclos culturais, sociais e econômicos do Estado.
O Museu Mestra Ana da Rabeca é o primeiro a homenagear o ciclo instrumental popular do nordeste brasileiro. “O Sesc vem reconhecendo os territórios culturais e os ciclos, e dentro desses ciclos, os mestres”, reforça Alemberg Quindins, gerente de cultura do Sesc Ceará.
A jornada de Ana da Rabeca transcende a música, tecendo um patrimônio cultural vivo e em constante transformação. Sendo a única mulher rabequeira do Ceará, ela está em um patamar de referência e guardiã de uma tradição secular. Mais do que habilidade técnica, Ana demonstra maestria na preservação da memória cultural, tecendo pontes entre as gerações e inspirando novas vozes a ecoarem as melodias ancestrais.
Mais que um museu, o espaço que agora também abriga sua escola de música se ergue como um farol de esperança, semeando a paixão pela rabeca nos corações das gerações que vêm. Através de seu talento e dedicação, Mestra Ana garante que o canto da rabeca continuará a vibrar, ecoando por vales e serras, como um hino à força da cultura popular cearense. Sua história é um testamento à força da mulher e à importância da preservação das raízes culturais, inspirando a todos que a ouvem a abraçar suas identidades e celebrar a riqueza da diversidade.
Série vai explorar personagens - famosos e anônimos - para destacar histórias de vida