Logo O POVO+
O que é ser demissexual
Reportagem Seriada

O que é ser demissexual

Não, eles não são "os últimos românticos" e nem vivem em um conto de fadas. Saiba se você é um e ainda não sabe
Episódio 1

O que é ser demissexual

Não, eles não são "os últimos românticos" e nem vivem em um conto de fadas. Saiba se você é um e ainda não sabe
Episódio 1
Tipo Notícia Por

 

 

Você já conheceu uma pessoa inteligente, bonita, simpática e — olha só! — solteira, e mesmo assim não sentiu vontade nem de dar uns beijos, ainda que houvesse abertura para tal? Só fica atraída(o) por alguém depois de meses de muitos encontros e longas conversas? Você acha que as pessoas falam demais de sexo, como se ele fosse a coisa mais importante do mundo?

Se além de responder “não” a todas as perguntas você ainda achou as situações meio irreais, saiba que elas fazem parte do cotidiano das pessoas que são demissexuais. Importante ressaltar que a demissexualidade não é o mesmo que assexualidade, que é quando uma pessoa experimenta pouca ou nenhuma atração sexual.

Os demissexuais sentem desejo sexual, mas para ter relações (afetivas ou sexuais) com alguém, precisam antes desenvolver laços, que podem ser por meio da intelectualidade ou amizade, por exemplo. O termo surgiu pela primeira vez em 2008 no site da Rede de Visibilidade e Educação Assexuais (do inglês "Asexuality Visibility and Education Network", ou Aven), e vem sendo usado desde então por mais pessoas que se identificam com esse conceito.


Para saber mais e ficar esperto

 

Imagine a sexualidade como uma escala da frequência com que a atração sexual ocorre. Na extremidade esquerda, encontramos os assexuais arromânticos, que não sentem atração sexual nem romântica. Na ponta oposta, há a sexualidade, atração sexual e romântica que abrange as orientações já conhecidas: heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade etc. A região que preenche essas duas extremidades é a área cinza, onde a diversidade assexual e a demi se expressam.

 

 

A desmissexualidade está representada na sigla LGBTQIA+ pela letra A, de assexualidade, pois se aproxima mais dela na escala imaginária cheia de pontos e que vai dos assexuais a alossexuais (os que gostam de sexo, independentemente dos sentimentos). Ela não é uma característica exclusiva de uma orientação sexual, pois uma pessoa heterossexual, homo ou bi pode também ser demi.

“Demi significa ‘meio’ em francês e foi cunhado pela primeira vez para descrever uma pessoa que não sente o que se chama de ‘atração primária’, ou seja, a atração por pessoas com base nas primeiras impressões, como a aparência”, explica Helena Medeiros, psicóloga e autora da cartilha “Gênero e sexualidade em debate” (Editora Interseções, 2018).

“Essa ‘escala’ que vai da assexualidade à alossexualidade tem muitas nuances e degradês, e outras mais ainda devem surgir. Falo isso porque é muito comum ler e ouvir comentários jocosos nas redes sociais como ‘todo dia o povo inventa alguma coisa’ ou ‘daqui a pouco vai ser proibido ser heterossexual’ e por aí vai. Esses tipos de comentários são fruto do preconceito e da baixa informação. É óbvio que novos termos devem surgir com o passar do tempo porque tanto o ser humano quanto a sociedade estão em constante transformação”, aponta.

“Embora isso possa parecer excessivo para alguns, ter essas identidades é extremamente importante para muitas pessoas, pois permite lançar luz sobre experiências que de outra forma seriam ignoradas ou desprezadas”, destaca. 

 


 

“Não é uma questão de viver sob um rótulo e sim, descobrir a própria identidade”

Manuelle Balbino tem 23 anos e mora em Beberibe (CE)(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Manuelle Balbino tem 23 anos e mora em Beberibe (CE)
Eu me sentia mal na adolescência porque tentava ficar com os meninos, mas simplesmente não sentia nada por eles. Fiquei muito tempo me culpando e achando que eu era um peixe fora d'água. Arrumei um namorado para saber como era me relacionar com alguém, mas eu me sentia apenas seguindo o fluxo, ou seja, cumprindo tabela do que as pessoas esperavam de mim, e eu não me via nem um pouco feliz com isso.

Até que eu comecei a pesquisar na internet sobre tudo o que eu sentia, e fui lendo muita coisa. O auge desse processo de descoberta aconteceu quando eu tive a chance de participar de um projeto sobre sexualidades na escola e eu pude entender que eu não era anormal, apenas precisava conhecer mais a pessoa com quem eu fosse me relacionar antes de partir para um contato físico.

Não é uma questão de viver sob um rótulo e sim, descobrir a própria identidade. Eu realmente senti a necessidade de me conhecer e entender mais. A maioria das pessoas acha que nós, demissexuais, somos pessoas frescas, exigentes ou fechadas, mas não se trata de nada disso. Perdi as contas de quantas vezes me tacharam de uma coisa ou outra. Mas o que eu sou mesmo é uma pessoa de mente aberta.

Manuelle Balbino, 23 anos

 

 

“Muitos homens ainda não sabem lidar com as questões relacionadas às suas sexualidades”

 

Joao Batista, 27 anos, estudante, criou uma rede de apoio a pessoas demissexuais. Imagens feitas no formato virtual(Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Joao Batista, 27 anos, estudante, criou uma rede de apoio a pessoas demissexuais. Imagens feitas no formato virtual

Nem sei quantas vezes tive a minha sexualidade questionada porque, para os meus amigos, era muito estranho que eu, sendo homem, não quisesse ficar com o maior número possível de mulheres, mesmo sem nem saber direito quem elas eram.

Era o que eles faziam e o que esperavam que eu fizesse também, só que eu sentia a necessidade de um tempo para conhecer, antes de acontecer qualquer coisa. Depois eu tive acesso a conteúdos sobre demissexualidade e me identifiquei totalmente.

Aí decidi criar eu mesmo um local onde outras pessoas também pudessem encontrar essa rede de apoio, e assim surgiu o perfil da @oisomosdemissexuais no Instagram. As mulheres compõem mais de 70% do público usuário da página, o que, na minha opinião, é reflexo do machismo da nossa sociedade.

Muitos homens ainda não sabem lidar com as questões relacionadas às suas sexualidades e nem procuram ajuda, ainda que haja algo incomodando. Muita gente chega na nossa página contando suas vivências e perguntando: “será que eu sou demissexual?”. Mas aí a gente explica que não dá para responder só com um “sim” ou “não”, porque cada pessoa tem seu jeito, personalidade e experiências.

João Batista, 27 anos, estudante

 

 

“Eu achava que deveria ser e me sentir ‘como todo mundo’ e por isso me forcei a ser o que não era”

Deisiana Peixoto tem 23 anos e mora em Caucaia (CE) (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Deisiana Peixoto tem 23 anos e mora em Caucaia (CE)

Assim como o João, eu conheci o termo em 2018, estando dentro de um relacionamento com outra mulher, mas na época não me sentia com essa possibilidade de me definir como tal, pois, apesar de internamente me identificar com tudo dito, minha vivência como mulher negra sempre fora de ser hiperssexualizada. Definir-me como bissexual romântica e levantar bandeira, também fora um processo lento, porém, bem mais simples do que como demissexual, porque eu achava que deveria ser e me sentir "como todo mundo" e por isso me forcei a ser o que não era em várias situações.

Somente bem recente e no período de pandemia, foi que parei para refletir sobre como me sentia e sem a pressão dos encontros pude pesquisar mais a fundo. Usei como ferramenta o Google, o YouTube, e por fim o Instagram, foi onde encontrei a página "Oi, somos demissexuais".

Na página tudo é muito interativo, tem muitas informações, e foi onde comecei a aceitar que eu não estava sozinha e não era uma completa estranha por me sentir como me sentia. Entrei para o grupo no Whatsapp e foi onde surgiu o convite de João para outra pessoa administrar a página junto com ele, me ofereci como tal.

Uma coisa importante a se dizer, é que pessoas demissexuais não são "santinhas" ou "quietinhas", nós também possuímos vontades e desejos, algumas mais e outras menos.

Deisiana Peixoto, 23 anos, estudante de Pedagogia

 

 

“Quanto mais gosto, mais vontade eu sinto”

Alexandre Werner tem 43 anos e mora em Irajá (RJ) (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Alexandre Werner tem 43 anos e mora em Irajá (RJ)

“Hoje em dia é muito fácil conseguir sexo. Chove homem nos aplicativos de encontro, mas eu diria que o povo não sabe fazer sexo. Aprendi a diferenciar os tipos de sexo. E tô preferindo ficar sem".

Escrevi isso na época em que eu estava tentando não ser demi e me jogava por aí, tentando usufruir da tal “liberdade sexual”. Nossa! Que mito, que lenda urbana, que fake news ela é! Nos vendem essa ideia como sendo “duas pessoas compartilhando o momento”, mas as pessoas não têm um pingo de humanidade pelo seu corpo, muito menos empatia ou sentimento. Já me esforcei muito pra não ser demi, mas não consigo.

Mesmo que eu me atire num sexo casual, meu corpo vai sentir cócegas, meu cérebro vai desativar o prazer e eu vou me sentir um lixo depois. Sou muito sexual quando me apego/apaixono. Quanto mais gosto, mais vontade eu sinto.

Alexandre Werner, conhecido também como Alê Aguasanitaria, 43 anos, freelancer e universitário

 

 

Entrevista >> Eliane Maio

A importância de se falar sobre sexualidades e gênero nas escolas

 

Eliane Maio, escritora, psicóloga e sexóloga, é doutora e pós-doutora em Educação Escolar. É conhecida pelo discurso inclusivo e repleto de falas sobre gênero e sexualidade, e por isso foi convidada a participar em 2020 do TEDx, uma vertente do programa de conferências mais famoso do mundo. Eliane publicou oito livros, incluindo o sucesso O nome da coisa (2011), que rendeu, à época do seu lançamento, uma entrevista bem-humorada e inteligente no extinto Programa do Jô Soares. A entrevista seguinte foi uma pequena amostra da espirituosidade da palestrante, que é de Maringá (PR).

Eliane Maio é psicóloga, pós-doutora em Educação Escolar e autora de livros sobre gênero e sexualidade(Foto: ACERVO PESSOAL)
Foto: ACERVO PESSOAL Eliane Maio é psicóloga, pós-doutora em Educação Escolar e autora de livros sobre gênero e sexualidade

O POVO - Quando as pessoas se deparam com o assunto “sexo”, inclusive as que foram entrevistadas para esta matéria, elas se veem diante de um padrão a ser seguido, que é ser hetero, alossexual e monogâmico, e essa expectativa acabou sendo o motivo, em algum momento da vida, de situações de angústia e sofrimento. Por que ainda não estamos preparados para aceitar as outras orientações, sexualidades e comportamentos?

Eliane Maio - Em sua quase totalidade, a nossa geração — e falo aqui do pessoal de 30 anos para frente — não teve contato com esse assunto no ambiente familiar. Quando muito, teve alguma noção na escola. Como é que um assunto vai ser discutido de forma qualificada se até hoje é tratado como tabu, não tendo toda uma construção anterior a respeito? A noção de sexo que eu e você tivemos na escola era totalmente antiquada. Você lembra daquelas aulas de biologia mostrando a foto de pênis e vulvas com doenças venéreas? Os alunos viam aquilo e não se identificavam com nada.

O POVO - Você publicou dois livros falando da importância da discussão sobre as sexualidades desde o ambiente escolar. Quais os empecilhos para que isso seja feito de maneira mais ampla ainda hoje?

Eliane Maio - Os termos mais procurados no Google são, historicamente, aqueles relacionados a sexo. E não se engane, as crianças com 4 e 5 anos também fazem essas pesquisas, e essa tarefa de falar as primeiras palavras sobre educação sexual deveria ser da família, em uma conversa olho no olho e com o auxílio de livros didáticos, e não da internet. À escola, caberia a tarefa de discutir aspectos científicos da sexualidade. E os benefícios são muitos: primeiro, para prevenir as violências sexuais. Segundo, para entender as diversidades sexuais. Terceiro, para estudar os feminismos e combater a violência de gênero. E, finalmente, para que elas tenham a chance de ter prazer sexual quando crescerem. Os estudos de sexualidade são assuntos tão importantes quanto a discussão sobre o meio ambiente, por exemplo. E os dois estão dentro da área científica.

O POVO - O seu primeiro livro, que foi sua pesquisa de doutorado, fala da dificuldade que temos de nos referir aos nossos genitais pelos nomes científicos. Se nem isso a gente consegue, como vamos vencer os outros tabus?

Eliane Maio - Tive uma conversa com uma pessoa que disse ter ensinado pra filha, desde pequenininha, que o órgão sexual dela se chamava margarida. Depois de um tempo, a menina chegou em casa dizendo: “mamãe, hoje teve uma aula em que a gente tinha que dizer o nome do pai e da mãe, e a senhora acredita que uma menina tinha uma mãe chamada Margarida? A mãe caiu na gargalhada e disse pra mim: “professora, por que você não apareceu na minha vida antes pra me ensinar como fazer as coisas direito?”. Pênis e vulva são partes do corpo como quaisquer outras, assim como cotovelo, umbigo e pé. Os pedagogos dizem que o problema são os pais e mães, que não querem que os filhos saibam o nome de seus genitais, e eu respondo: “os pais e as mães podem falar o que quiserem, mas vocês, não. Vocês são cientistas e está mais que na hora de enfrentá-los”. Os professores poderiam dizer assim: “Pai e mãe, vocês podem nomear os genitais dos seus filhos com os nomes que vocês inventarem, mas não vamos fazer isso na escola porque aqui ensinamos aspectos científicos". Mas o desafio é grande. Se você for ver a realidade da educação infantil, vemos que 99% dos docentes são mulheres. Mulheres que são, em sua maioria, reprimidas sexualmente, e simplesmente não dão conta de conversar sobre sexualidade com as crianças.

O POVO - Quais os caminhos para ajudar a reduzir essa lacuna de informações?

Eliane Maio - Passou da hora de termos, na formação docente inicial e também na continuada, diálogos sobre gêneros e sexualidade. E não falo só nos cursos de Pedagogia, falo de todos os cursos de licenciatura. E por que isso é importante? Porque a escola é um espaço sexualizado, não dá pra fechar os olhos para essa realidade. Nela há crianças que se masturbam e adolescentes que namoram. Mas a gente só vai poder influenciar os pais quando os professores cientistas puderem realizar esse trabalho. O problema é que eles sequer tentam. Assim, vamos continuar com esse olhar que não se pode falar sobre sexo na escola. Enquanto isso, somos o país que mais mata travestis no mundo há 13 anos seguidos. Curiosamente, também somos o que mais acessa material pornográfico com travestis e transexuais. A conta não bate, essa hipocrisia é doentia. Então precisamos ter um estudo bem elaborado nos cursos de formação inicial para finalmente aprender na faculdade o que não foi ensinado no ensino fundamental e médio.

O que você achou desse conteúdo?