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Perseguição obsessiva: mais de 7 mil mulheres foram vítimas no Ceará
Reportagem Seriada

Perseguição obsessiva: mais de 7 mil mulheres foram vítimas no Ceará

O levantamento da Central de Dados O POVO+ revela os detalhes desse crime no Estado e acende o alerta para uma realidade que assusta milhões de pessoas mundo afora

Perseguição obsessiva: mais de 7 mil mulheres foram vítimas no Ceará

O levantamento da Central de Dados O POVO+ revela os detalhes desse crime no Estado e acende o alerta para uma realidade que assusta milhões de pessoas mundo afora
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Você lembra do desenho animado Looney Tunes? Um clássico da televisão, a turma de personagens apresentou em 1945 um membro controverso: o gambá Pepe.

Constantemente perseguindo a gatinha Penelope, Pepe era retratado como um romântico insistente, disposto a tudo para conquistar sua amada.

Muitas crianças, porém, não gostavam muito do personagem. A abordagem dele, sempre encurralando Penelope e aparecendo de surpresa na tentativa de beijá-la, já deixava muita gente incomodada.

O personagem Pepe Le Gambá, dos Looney Tunes, foi descontinuado em 2021 por reforçar comportamentos considerados ofensivos: assédio e perseguição(Foto: Warner Bros./Reprodução)
Foto: Warner Bros./Reprodução O personagem Pepe Le Gambá, dos Looney Tunes, foi descontinuado em 2021 por reforçar comportamentos considerados ofensivos: assédio e perseguição

Com o passar do tempo, o público foi externando esse incômodo até que a Warner Bros decidiu descontinuar a participação de Pepe em todos os seus produtos em 2021.

As atitudes do gambá francês poderiam ser enquadradas, 80 anos depois, como stalking.

O termo, que tem origem inglesa, caracteriza uma conduta criminosa, definida pela perseguição persistente e obsessiva de uma pessoa, tanto no ambiente físico quanto no digital.

A Central de Dados O POVO+ traz nesta reportagem dados que revelam as múltiplas faces desse crime no Ceará e no Brasil, além de relatos de quem já foi vítima.


 

Dez mulheres foram vítimas de perseguição a cada hora, em 2024

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que, em 2024, dez mulheres eram vítimas de perseguição a cada hora. Ao todo, foram 95.026 registros de mulheres vítimas deste tipo de violência.

No contexto legal brasileiro, o crime de perseguição (e, por extensão, o cyberstalking) é recente.

A conduta foi tipificada pela Lei n.º 14.132/2021, que inseriu o no Código Penal o "ato de seguir alguém reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade, ou privacidade"

Antes dessa lei, a perseguição era tratada como uma contravenção penal de "perturbação da tranquilidade", prevista no artigo 65 da Lei de Contravenções Penais. 

O crime apresentou um aumento expressivo em 2024: a taxa cresceu 18,2% em relação ao ano anterior. Em 2024, foram 95.026 registros de mulheres vítimas deste tipo de violência.

 

Rondônia registrou 40 casos de stalking em 2024, enquanto em Roraima foram 6.132


 

Louca obsessão: mais de sete mil mulheres foram perseguidas desde 2021

No Ceará, os dados mais recentes confiram que o stalking é uma questão de gênero. Enquanto 85,1% dos indiciados são homens (2.033 casos), as mulheres representam 78,5% das vítimas (7.172 casos).

 

Veja o total de casos no Ceará

A idade também revela um padrão claro. O perfil mais comum da vítima é o de adulto (30-59 anos), com 5.129 registros (61,8%), seguido por jovens adultos (18-29 anos), com 2.600 casos (31,3%).

Do lado dos indiciados, a faixa etária predominante também é a de adultos (30-59 anos), que concentra 1.660 agressores (70,8%). No entanto, a proporção de Jovens Adultos (18-29 anos) entre os indiciados é menor, com 562 casos (24%).

Em Morada Nova, os indiciados são, em média, 16,2 anos mais velhos que suas vítimas. Em Juazeiro do Norte, essa diferença é de 5,3 anos.

 

Veja a distribuição etária de vítimas e indiciados


No livro O Fênoneno do Stalking, a psicóloga italiana e doutora em Medicina Legal e Ciência, Foresne Alesia Micoli, descreve as características do stalker.

“O stalker é um indivíduo que não conseguiu elaborar a rejeição, o abandono e a separação. Pode ser um indivíduo que, na vida, não tenha conseguido assimilar um luto, ou, ainda, libertar-se de experiência traumática”, afirma.

“Quando percebe que está perdendo a pessoa amada, o stalker começa a praticar atos com o intuito de controlar quem não o quer mais, a fim de que a decisão de abandono e distanciamento seja revertida”, conclui a cientista.

 

Veja a distribuição por gênero de vítimas e indiciados no Ceará


Os dados no Ceará, no entanto, não permitem identificar os laços entre agressor e vítima. No registro dos indiciados, 89,6% dos casos (2.139 registros) não possuem informação sobre o relacionamento.

Quando passamos a analisar a geografia do crime, Fortaleza lidera em números absolutos tanto para vítimas (4.056) quanto para indiciados (568). Contudo, a proporção entre esses números varia consideravelmente entre as cidades, revelando diferentes níveis de resposta ao crime.

Em Tianguá, por exemplo, para cada 100 vítimas, há aproximadamente 76 indiciados, a maior proporção entre os principais municípios.

Em contraste, em Fortaleza, essa proporção cai para 14 indiciados a cada 100 vítimas. Essa "taxa de responsabilização" sugere que, embora a capital concentre o maior volume de crimes, a capacidade de identificar e indiciar os autores pode ser proporcionalmente maior em algumas cidades do interior.

 

Veja a distribuição geográfica no Ceará


 

Nas redes, nas ruas e até em casa: não há limites para os perseguidores

Uma parte muito importante é a reação da vítima. Muitas vezes, o que separa um gesto normal (como um elogio ou um convite) do stalking é o fato de a vítima deixar claro que não quer aquele tipo de comportamento, e o perseguidor, mesmo assim, continua.

Em outros países, como o Reino Unido, a lei já considera crime se a perseguição acontecer duas vezes, desde que a vítima já tenha deixado claro que não gostou.

Além disso, a perseguição constante só vira crime quando vem acompanhada de uma destas três coisas: 


A professora de inglês Luana (nome fictício), de 26 anos, sabe bem o dano emocional que uma perseguição pode causar.

Tudo começou há cerca de oito meses, com mensagens de um ex-aluno, com quem Luana teve um breve contato nas redes sociais após o término do curso.

As mensagens, inicialmente elogiosas e inofensivas, foram se tornando cada vez mais frequentes e com um tom obsessivo.

CRIMES de perseguição tem crescido contra mulheres(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR CRIMES de perseguição tem crescido contra mulheres

"No começo, eu não me preocupei muito. Pensei que era apenas um aluno mais efusivo", conta Luana. "Mas a situação foi escalando rapidamente. Ele começou a ligar várias vezes ao dia, mandava mensagens a qualquer hora, e sabia detalhes da minha rotina que eu nunca havia compartilhado com ele"

A perseguição logo saiu do mundo virtual. Luana começou a notar a presença do ex-aluno em locais que frequentava, como a academia e um café perto de sua casa.

"A sensação era horrível. Eu me sentia vigiada o tempo todo, como se não tivesse mais privacidade", desabafa.

O stalking é um comportamento obsessivo e invasivo que causa um impacto psicológico profundo nas vítimas, levando-as a alterar suas rotinas, isolar-se e viver em constante estado de alerta(Foto:  Vano Shlamov / AFP)
Foto: Vano Shlamov / AFP O stalking é um comportamento obsessivo e invasivo que causa um impacto psicológico profundo nas vítimas, levando-as a alterar suas rotinas, isolar-se e viver em constante estado de alerta

O medo se intensificou quando o stalker começou a deixar pequenos presentes na porta de sua casa e a fazer comentários sobre suas postagens nas redes sociais em tempo real, mostrando que estava acompanhando seus passos de perto.

Diante do crescente pavor e da sensação de impotência, Luana buscou apoio em amigos e familiares.

"No início, senti muita vergonha de contar o que estava acontecendo. Tinha medo de não ser levada a sério", revela. No entanto, o incentivo de pessoas próximas a motivou a procurar ajuda profissional e legal.

As vítimas de stalking podem ser qualquer pessoa, independentemente de gênero ou idade, e muitas vezes sofrem de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático como resultado da perseguição(Foto: Freepik)
Foto: Freepik As vítimas de stalking podem ser qualquer pessoa, independentemente de gênero ou idade, e muitas vezes sofrem de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático como resultado da perseguição

Luana procurou a Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza, onde registrou um boletim de ocorrência detalhando os episódios de perseguição.

"Fui muito bem acolhida na delegacia. As policiais me orientaram sobre meus direitos e os próximos passos", relata. Com o apoio jurídico, Luana conseguiu uma medida protetiva de urgência, que proibiu o stalker de se aproximar dela ou de manter qualquer tipo de contato.

Paralelamente, Luana buscou acompanhamento psicológico para lidar com o trauma e a ansiedade causados pela perseguição.

"A terapia foi fundamental para me ajudar a processar tudo o que aconteceu e a recuperar a minha segurança e autoestima", afirma.

"Denunciar é o primeiro passo para interromper o ciclo de violência e para que o agressor seja responsabilizado por seus atos", finaliza Luana, que optou por não mostrar o rosto ou usar o nome verdadeiro nesta reportagem para evitar ser reconhecida pelo perseguidor.


 

Como identificar um stalker e se proteger

Para caracterizar este tipo de perseguição é preciso que a pessoa aja em algumas condutas que causem medo.

“O suspeito apresenta falas e abordagens que causam medo, pânico, ao ponto da pessoa perseguida ter medo de sair de casa para ir ao trabalho, por exemplo”, pontua Rozilene Frota, assistente social da equipe psicossocial da Defensoria Pública do Estado do Ceará. Ela atua no atendimento a mulheres em situação de violência doméstica.

São muitas as situações que podem caracterizar este tipo de perseguição: o envio incontrolado de centenas de mensagens, inúmeras ligações, enviar comentários invasivos em redes sociais, criar perfis falsos para acompanhar sua rotina, de seus familiares e amigos, invadir espaços, mostrar que viu ou sabe sobre a rotina da outra pessoa, citar uma peça de roupa que se estava usando ou mandar fotos de um lugar em que a mesma esteve.

A perseguição sistemática pode acontecer tanto no mundo físico, com o stalker seguindo a vítima, quanto no mundo digital, por meio de mensagens incessantes, monitoramento de redes sociais e invasão de privacidade, o que é conhecido como cyberstalking(Foto: Freepik)
Foto: Freepik A perseguição sistemática pode acontecer tanto no mundo físico, com o stalker seguindo a vítima, quanto no mundo digital, por meio de mensagens incessantes, monitoramento de redes sociais e invasão de privacidade, o que é conhecido como cyberstalking

“Nós sabemos que o caso do stalking é algo muito antigo, mas com as redes sociais os casos se intensificaram. É possível que contas falsas sejam criadas para vigiar a vida da pessoa, mandando mensagem ao ponto de assustar a vítima e deixá-la com medo de sair de casa", afirma Jeritza Braga, a defensora pública e supervisora do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem)

"Além disso, até mesmo aplicativos bancários podem se tornar locais de envio de recados repetitivos. Elementos tecnológicos que surgiram para ajudar a população, mas que acabam sendo usados de má-fé", prossegue. 

"Por isso, foi de grande importância que o stalking tenha deixado de ser apenas uma contravenção penal e passou a ser tipificado como crime”, finaliza a defensora pública. 

Stalking, também conhecido como perseguição, é um crime que envolve a repetição de ações indesejadas, como seguir a vítima, fazer contato não solicitado e enviar mensagens insistentes, causando medo ou angústia(Foto: Freepik)
Foto: Freepik Stalking, também conhecido como perseguição, é um crime que envolve a repetição de ações indesejadas, como seguir a vítima, fazer contato não solicitado e enviar mensagens insistentes, causando medo ou angústia

A Defensoria orienta às mulheres sobre o que fazer neste tipo de caso, que pode ser a concessão de medidas protetivas que indiquem o afastamento da pessoa que está a perseguindo.

Sempre que se perceber que os atos tem se tornado reiterados, seja amedrontada ou assustada, é indicado que se procure a Delegacia da Mulher mais próxima para abrir a ocorrência, podendo ser feita até de forma eletrônica.

Também é indicado juntar o maior número de provas, tirar capturas de tela das ameaças feitas de forma online. A Defensoria ainda oferece apoio psicológico às vítimas. O agendamento pode ser feito nas sedes do Nudem, na Casa da Mulher Brasileira e Casa da Mulher Cearense.


 

Metodologia

Este material foi elaborado a partir de um pedido de dados realizado via Lei de Acesso à Informação (LAI), por meio do portal Ceará Transparente. Os dados, originalmente fornecidos em formato .CSV, referem-se aos 9.131 registros de vítimas e 2.389 registros de indiciados por crimes de perseguição (stalking), ocorridos entre janeiro de 2021 e maio de 2025 e foram processados para revelar padrões, perfis de vitimização e a distribuição geográfica do fenômeno.

A análise foi conduzida na plataforma Google Colab, utilizando a linguagem Python e um conjunto de bibliotecas especializadas, incluindo Pandas (para tratamento e limpeza dos dados), Plotly (para criação de visualizações interativas) e SciPy (para a realização de testes estatísticos).

Todas as etapas do processo — desde a preparação dos dados até a exploração e os cruzamentos — foram documentadas para garantir que qualquer pessoa possa reproduzir os resultados, ajustar filtros ou aprofundar a investigação.

A metodologia adotada prioriza acessibilidade, visualização clara das informações e rigor técnico. Para reforçar o compromisso com a transparência e a reprodutibilidade, O POVO+ disponibiliza os dados e códigos publicamente em seu perfil no GitHub, que pode ser acessado clicando aqui.

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