“Eu já fui vítima de
O tom da fala revela um trauma difícil de cicatrizar: por trás da figura de um stalker, explica ela, está alguém incapaz de aceitar que o outro tem direito de escolha.
“É uma pessoa que não te respeita minimamente como pessoa e nem as suas escolhas e quer se impor na sua vida a qualquer custo. Seja ‘por bem’, com declarações de afeto que já foram repudiadas, ou por mal, com ameaças, calúnias e até agressão.”
O que é stalking?
Na segunda temporada de Wandinha, a Netflix apresentou Agnes Demille, uma personagem que se torna invisível para seguir os passos da protagonista. Com humor ácido, a jovem “outcast” oscila entre admiração e manipulação, transformando a perseguição em artifício narrativo.
Mas o que na tela de streaming pode soar como exagero ou comédia, na vida real é violação diária.
Shaiane (nome fictício para preservar a identidade da fonte), outra vítima de stalking, reagiu mal ao recurso e diz que não conseguiu mais assistir por causa disso: “Sinto ódio quando stalking serve de alívio cômico na cultura pop. Não é engraçado para quem passa, é um tormento.”
O tormento tem nome: ansiedade, pânico, estresse pós-traumático. Aline desenvolveu Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) depois de anos sendo perseguida.
“O sentimento é de violação da nossa liberdade, do nosso direito de escolha, da nossa paz. O pânico é real”, descreve.
O medo se renova a cada ligação de número desconhecido, a cada notificação em rede social, a cada sensação de que o perseguidor pode surgir a qualquer momento.
Stalking: como identificar?
“Nunca se sabe até onde a pessoa está disposta a ir na maluquice. Ainda mais se for algo pessoalmente, imagine alguém que vive na mesma cidade? Que pode aparecer na casa ou trabalho?”, ela questiona.
Karoh (nome fictício para preservar a identidade da fonte) também experimentou a invasão constante e o terror do não saber. “Já passei por isso, mudei até de cidade por causa de um. Fiquei em pânico por anos e ainda morro de medo de ele saber qualquer informação minha.”
A cada depoimento, a distância entre a ficção e a realidade se amplia. Na cultura pop, o stalker é recurso dramático ou piada; fora dela, é alguém que aprisiona a vítima em um estado permanente de alerta.
Como agir depois de identificar um stalker?
Como resume Aline, não há nada de romântico, engraçado ou leve no comportamento. O stalking é crime, mas antes de ser tipificado em lei, é uma violência que corrói a vida de quem a sofre.
A palavra “stalker” vem do inglês “to stalk”, que significa perseguir e é designada justamente a pessoas que, obcecadas por outras, ultrapassam o campo da admiração e tiram a liberdade pessoal das vítimas.
No Brasil, stalkear alguém incessantemente é considerado crime desde 2021: a Lei 14.132/21 considera como infração perseguir alguém reiteradamente por qualquer meio. A pena vai de seis meses a dois anos de prisão, além de multa e/ou medidas protetivas.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que o número de crimes de stalking mais que triplicou entre 2021 e 2024: saltou de 30.783 para 95.026 registros de ocorrências nas delegacias.
No Ceará, os crimes de perseguição contra mulheres aumentaram 5,9% no intervalo de um ano.
Procurar a polícia é a primeira medida que deve tomar quem é vítima dessa prática — que, além de medo, pode provocar graves problemas psicológicos nas vítimas.
No Centro de Referência e Atendimento à Mulher Francisca Clotilde (CRM), em Fortaleza, os relatos chegam em vozes baixas, entrecortadas pelo choro ou pelo silêncio.
Quase sempre o enredo começa com uma insistência “inofensiva”: mensagens frequentes, pedidos de reconciliação, ligações fora de hora.
Pouco a pouco, porém, a insistência se transforma em vigilância, a presença constante em sufoco, o contato forçado em medo. O nome disso é stalking, e a cada dia mais mulheres buscam ajuda após viverem essa experiência.
Segundo a psicóloga Erica Moraes, que acolhe diariamente vítimas de diferentes formas de violência, o stalking costuma ter um ponto de partida comum.
“Normalmente é quando o homem, a figura masculina, não aceita o término do relacionamento e passa a perseguir essa mulher, colocar ela nessa situação de vigilância, monitoramento, tentando constantemente manter esse contato de uma forma indesejada e até mesmo insistente.”
Esse padrão não exclui outros cenários. Há quem seja perseguida no ambiente de trabalho, pressionada em deslocamentos no transporte público, intimidada por vizinhos ou assediada de forma anônima nas redes sociais.
“Já atendemos mulheres que tiveram perfis falsos criados em seu nome, situações em que a vítima descobre que alguém está se passando por ela para expor informações ou constranger em público. Isso também é perseguição, isso também é crime”, destaca Erica.
Apesar de definido pelo Código Penal desde 2021, o crime de perseguição ainda não é identificado de imediato pelas próprias vítimas. O que se vê no CRM é um padrão de desconhecimento e naturalização.
“Essas mulheres se encontram em um quadro de violência psicológica tão grande, de medo, de pânico, que elas não conseguem visualizar que estão tendo a sua privacidade violada. Elas não visualizam essa situação como um contexto de violência. Acham que é algo normal, embora sofram”, explica.
O imaginário social contribui para isso. Muitas vezes, o comportamento do perseguidor é mascarado por justificativas como amor, ciúme ou preocupação.
Essa roupagem afetuosa faz com que a vítima demore a compreender que está diante de uma agressão psicológica.
“As pessoas não entendem que esse comportamento trata-se de um crime. É muito naturalizado. Só que, na prática, mina a autonomia da vítima e destrói sua qualidade de vida”, afirma a psicóloga.
Os efeitos do stalking são imediatos na rotina: mulheres deixam de frequentar espaços públicos, mudam trajetos para evitar cruzar com o perseguidor, interrompem atividades comuns como academia, cursos, até mesmo a ida ao trabalho. O medo, segundo Erica, reorganiza a vida de forma paralisante.
“Esse medo impacta diretamente na rotina, na autonomia dessas mulheres, porque elas se privam de viver a própria vida. Elas não conseguem sair, não conseguem transitar, se sentem sempre observadas”, explica.
O impacto não se limita ao social: aparecem sintomas como crises de ansiedade, ataques de pânico, insônia, hipervigilância constante. Em alguns casos, os efeitos se somatizam em dores de cabeça recorrentes, problemas gastrointestinais e alterações no apetite.
Há ainda sequelas mais profundas: um trauma relacional que pode afastar a vítima de novas experiências afetivas e até comprometer vínculos familiares e de amizade.
“Essas mulheres se isolam, porque acreditam que qualquer aproximação pode representar uma ameaça. Isso fragiliza ainda mais a rede de apoio e aumenta a vulnerabilidade”, observa Erica.
No CRM, o primeiro passo é ouvir. A escuta qualificada, explica a psicóloga, não é apenas coleta de informações, mas um espaço em que a vítima pode, talvez pela primeira vez, compreender que o que vive não é normal nem aceitável.
O protocolo de atendimento varia de acordo com a forma como a mulher chega ao equipamento. Há casos em que ela é trazida pela polícia, em situação de flagrante — quando o perseguidor foi abordado em ato ou após uma denúncia urgente.
Nesses contextos, a equipe já inicia o suporte psicológico e social, ao mesmo tempo em que orienta sobre boletim de ocorrência, medidas protetivas e acompanhamento jurídico.
Em outras situações, a procura é espontânea. A mulher chega sozinha, muitas vezes em dúvida se o que vivencia “se enquadra” como violência.
“Pode ser que ela esteja sendo perseguida por um ex-companheiro identificado, mas também pode ser uma situação de perseguição virtual, com perfis falsos ou mensagens anônimas. Nesses casos, orientamos sobre a importância de registrar ocorrência, seja na Delegacia da Mulher, seja na Delegacia de Crimes Cibernéticos”, detalha.
O atendimento é feito por uma equipe multidisciplinar, formada por psicóloga e assistente social, que avalia demandas emocionais e sociais. A partir daí, são articulados encaminhamentos para outras políticas públicas, como saúde, habitação ou assistência social.
“Mesmo que a mulher não queira fazer a denúncia ou aderir a nenhum encaminhamento, as decisões dela são totalmente respeitadas. Nosso papel é oferecer escuta, acolhimento e orientação. A decisão sobre os próximos passos é sempre da vítima”, reforça Erica.
Para a psicóloga, ainda existe um longo caminho até que a sociedade encare o stalking como o crime que ele é. Isso exige campanhas de conscientização, informação acessível e espaços de debate que alcancem diferentes públicos.
“Canais de debate, divulgação e informações sobre esse tipo de crime podem e devem ser instrumentos de conscientização. É fundamental que a sociedade entenda a gravidade do stalking e o impacto profundo que ele causa na vida das vítimas”, defende.
Até lá, o trabalho do CRM segue sendo o de transformar dor em escuta e medo em acolhimento. Um processo que começa ao reconhecer, no olhar de cada mulher, não apenas uma vítima de perseguição, mas alguém que precisa ser devolvida ao direito de viver a própria vida em liberdade.
Por trás da tela do celular ou na esquina da rua, o stalking avança como uma sombra que não se dissipa. O crime de perseguição é um ataque direto à saúde mental, às rotinas e às relações sociais de quem se torna alvo.
O psicólogo, sexólogo e terapeuta de adultos e casais Neto Belém Oliveira, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e diretor do Instituto Veresk, explica que o fenômeno não pode ser entendido fora do contexto social.
“Precisamos partir da ideia de que nenhum comportamento vem do nada. Eles são criados nas relações humanas, o que também envolve a cultura em que estamos inseridos e as formas de vida que ela nos ensina. No caso do stalking, ele é um sintoma de uma sociedade que nos ensina que podemos ter controle sobre tudo, incluindo as pessoas com quem nos relacionamos.”
Esse controle, quando se volta contra a vítima, abre espaço para sintomas graves.
“É muito comum que o indivíduo responda com sintomas de ansiedade, pois a perseguição, seja nas redes sociais seja fora delas, nos coloca em um lugar de hipervigilância, medo e receio constante de que algo ruim possa acontecer”, afirma Neto Oliveira.
A vulnerabilidade aumenta quando se trata de mulheres, já expostas de forma sistemática à violência de gênero.
O psicólogo ressalta que tanto quem pratica quanto quem sofre o stalking têm suas vidas corroídas por esse padrão.
“No caso do stalker, nós temos uma pessoa que investe toda a sua energia mental, ou grande parte dela, assim é esperado que dedique cada vez menos tempo a atividades reais e promotoras de bem-estar. Do outro lado, temos a vítima, que possivelmente, por conta do medo, irá reduzir seus contatos sociais, idas a lugares promotores de bem-estar, sem contar com a sensação permanente de medo.”
Para Oliveira, não há diferença entre perseguição física e virtual: ambas produzem efeitos devastadores.
“Os dois são igualmente nocivos, sobretudo porque a linha que divide a perseguição virtual da física é muito tênue. É muito provável que a necessidade de controle do stalker aumente, saindo do espaço virtual para o espaço físico, e vice-versa. Os danos podem ser os mais variados: psicológico, físico, material, dentre outros.”
As redes sociais, segundo ele, ampliaram o alcance da violência: “Elas tornaram o campo de ação de stalkers muito maior, invadindo a vida de pessoas que os violadores não tinham acesso antes. Além disso, é um terreno mais difícil de monitorar e que te garante anonimato”.
Reconhecer quando uma atitude passa de insistência para perseguição é essencial.
“O limite é o incômodo do outro. Se é um comportamento de stalker, geralmente irá provocar um incômodo, receio ou desconforto. As pessoas não se sentem bem como seres invadidas e perseguidas nas suas vidas. Assim, é fundamental que, se você está sendo vítima, acione sua rede de proteção e busque as autoridades competentes.”
Embora existam contextos clínicos que possam favorecer o comportamento obsessivo, Neto Oliveira destaca que as raízes também estão no modo como homens e mulheres são socializados.
“Precisamos ficar atentos a quadros clínicos que o stalker possa ter. Apesar de não justificar o comportamento, torna mais claro o porquê daquela conduta. Em quadros psicóticos, por exemplo, esse padrão pode se desenvolver”.
“Não posso deixar de mencionar a violência de gênero: homens são ensinados que são donos de suas namoradas, noivas e esposas. Também por não terem aprendido a escutar ‘não’ ao longo da vida, podem desenvolver o stalking como resposta à aflição emocional que sentem ao serem frustrados. Um bom exemplo disso são términos de relacionamento, evidenciando a imaturidade psicológica de homens no geral.”
O psicólogo diferencia atitudes inconvenientes de stalking ao apontar que a perseguição se repete de forma contínua e causa prejuízos reais.
“Enquanto atitudes inconvenientes são acidentes, o stalking é um padrão de comportamento. Ele implica perseguição física, contato indesejado e insistente, vigilância, invasão de privacidade, ameaças diretas ou veladas, presentes indesejados, difamação, danos materiais, comportamentos de intimidação, dentre outros. Já os comportamentos inconvenientes ou inapropriados não necessariamente geram prejuízos.”
Para a juíza Giselli Lima, titular da 12ª Vara Criminal de Fortaleza, a tipificação do crime de perseguição em 2021 representou um divisor de águas no enfrentamento da violência psicológica e da violação da liberdade individual.
“A inclusão do crime de perseguição (art. 147-A do Código Penal), pela Lei nº 14.132/2021, representou um marco na tutela da liberdade individual e da integridade psicológica das vítimas. Na prática, a tipificação trouxe maior segurança jurídica, pois afastou o enquadramento genérico em contravenções penais de baixa gravidade. Agora, a conduta recebe resposta penal proporcional, com previsão de reclusão e multa”, afirma.
Segundo a magistrada, antes dessa mudança, a Justiça tratava os casos de perseguição como contravenções ou delitos menos graves, o que enfraquecia a proteção à vítima.
“Antes de 2021, esses comportamentos eram enquadrados, em regra, na contravenção de perturbação da tranquilidade, ou em delitos como ameaça e injúria. Isso resultava em tratamento insuficiente, com penas leves e menor possibilidade de proteção eficaz às vítimas. A lacuna normativa dificultava o enfrentamento da reiteração das condutas, que, muitas vezes, antecedem crimes mais graves.”
A juíza destaca a diferença entre perseguição e outras práticas.
“O stalking caracteriza-se pela reiteração de condutas — perseguições, ameaças, restrições, invasões ou perturbações capazes de gerar medo ou sofrimento psicológico, limitando a liberdade de locomoção e a privacidade da vítima. Já o assédio, em regra, refere-se a conduta pontual ou episódica, como o assédio sexual, que pressupõe constrangimento de natureza sexual em contexto de hierarquia ou ambiente de trabalho.”
Ela alerta que ignorar sinais desse crime pode abrir espaço para desfechos mais sérios: “O stalking, quando não interrompido, tende a escalar para condutas mais graves, incluindo violência física, crimes sexuais e até feminicídio. Trata-se de uma forma de violência psicológica que sinaliza risco real à integridade da vítima”.
Quando uma vítima denuncia, o Judiciário pode agir com rapidez e “aplicar, de forma urgente, medidas protetivas previstas em legislações especiais, como a Lei Maria da Penha, a Lei Henry Borel, o Estatuto do Idoso e o ECA, além das medidas cautelares do art. 319 do CPP”.
Entre elas, estão a proibição de contato ou aproximação, inclusive por meios virtuais; restrição de frequência a determinados locais; monitoramento eletrônico; e afastamento imediato do agressor. Quando há risco concreto à integridade da vítima, pode ser decretada a prisão preventiva.
Quanto às penas, a legislação prevê “reclusão de 6 meses a 2 anos e multa, podendo ser aumentada até a metade em hipóteses específicas (contra crianças, adolescentes, idosos, mulheres por razões de gênero, em concurso de agentes ou com uso de arma)”.
A magistrada acrescenta que, em casos de dúvida sobre a sanidade mental do acusado, “o juiz pode determinar de ofício ou a requerimento a instauração de incidente de insanidade mental, com realização de exame médico-legal. Constatada a inimputabilidade, aplica-se o art. 26 do Código Penal, e o réu pode ser submetido a medida de segurança, como internação ou tratamento ambulatorial”.
O Judiciário já acumula precedentes que reforçam a gravidade da perseguição. “O STJ tem reiteradamente reconhecido a tipicidade do crime de perseguição, diferenciando-o de condutas menos graves. No Ceará, decisões recentes consolidam parâmetros importantes, sobretudo em contexto de violência doméstica”, aponta.
Ela cita casos como a Apelação Criminal nº 0200574-27.2024.8.06.0302, em que o Tribunal de Justiça do Ceará manteve condenação por perseguição e violação de domicílio, e a Apelação Criminal nº 0200426-13.2024.8.06.0303, que confirmou pena de 3 anos de reclusão por reincidência e habitualidade.
“Esses julgados reforçam a importância da tipificação e servem de referência para a atuação judicial em todo o País.”
Rede de apoio à mulher vítima de violência no Ceará: onde buscar ajuda?
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Se preferir, me escreva um e-mail (karyne.lane@opovo.com.br), ficarei feliz de te ler. Até mais!"
Série de reportagens mostra que milhares de pessoas são vítimas de perseguição no Ceará, conduta criminosa nominada de stalking, definida pela perseguição persistente e obsessiva de uma pessoa, tanto no ambiente físico quanto no digital