Uma avenida perigosa, onde acidentes sucediam-se, um após outro, rápido demais. Inaugurada em 1973, a Leste-Oeste foi apressada pelo tempo, acompanhando os ritmos cada vez mais acelerados de Fortaleza. As consequências eram fatais. Entre 2010 e 2017, houve no local uma média de 11 mortes por ano.
Em 2018, o curso dos acontecimentos começou a mudar. Com a readequação da velocidade da avenida para 50 km/h, as mortes por acidentes de trânsito no local foram diminuindo gradativamente, ao ponto de nenhuma ter sido registrada em 2022.
A avenida Leste-Oeste foi a primeira via de Fortaleza a ter a velocidade reduzida, medida que se estendeu a mais de 50 ruas e avenidas.
A readequação de velocidade, aliada à ampliação de outras iniciativas como semáforos inteligentes, alteração de infraestrutura das vias e maior fiscalização, resultaram na diminuição dos óbitos em quase 13% em Fortaleza, passando de 266 em 2018 para 198 em 2019. Os dados são da Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC).
A diminuição da velocidade tem se mostrado uma estratégia eficiente para evitar sinistros e, nas situações em que ocorrem, reduzir danos relacionados a eles.
Motoristas e passageiros chegam mais rápido aos respectivos destinos quando não precisam enfrentar, direta ou indiretamente, as consequências de colisões no trânsito. Entretanto, os resultados positivos vão além da prevenção de eventuais transtornos. Segundo estudo da Autarquia Municipal de Trânsito de Fortaleza (AMC) divulgado em 2023, a alteração do limite de velocidade não causa impacto relevante no tempo de viagem.
A análise, que avaliou o fluxo de seis vias da Capital em diversos períodos, antes e após a diminuição da velocidade máxima, concluiu que a diferença no tempo médio de viagem a cada quilômetro percorrido é de apenas 6,08 segundos.
O professor de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC) Flávio Cunto explica que as readequações afetam todos os cidadãos. “Você permite que convivam, quase que pacificamente, motoristas de carro, motociclistas, ciclistas, pedestres, ônibus, sem problemas. Fica muito mais simples de mexer na cidade, de deixar a cidade mais democrática,” afirma.
Acostumado a dirigir em Fortaleza há mais de seis décadas, o médico Ercílio Guimarães do Nascimento, de 81 anos, considera a mudança no limite de velocidade realizada em algumas vias como uma medida excelente.
“Muito boa providência. Eu acho que isso é um ponto a mais de segurança,” define, acrescentando que não sentiu diferença no tempo de deslocamento. “A mudança não alterou em nada a minha rotina. Se você verificar, dez quilômetros a menos, de 60 para 50 km por hora, isso não vai alterar muito o seu tempo de percurso, são segundos apenas, esses 30 ou 40 segundos de diferença,” calcula Ercílio.
O motorista por aplicativo Yuri Abreu de Souza discorda. Para ele, medidas como a redução da velocidade e a inclusão de faixas exclusivas para ônibus acentuam o congestionamento das vias. “Altera um pouco, mas engarrafa muito pra gente. De manhã, nesse período do movimento, e também de tardezinha, a gente perde muito tempo no trânsito,” conta.
Apesar dos estudos robustos embasando as mudanças, a existência de opiniões divergentes é compreensível. Flávio Cunto explica que o panorama de ações para redução de acidentes no trânsito passou por grandes mudanças neste começo do século.
Segundo ele, até a década de 1970, os acidentes eram considerados pelos gestores de trânsito como efeitos colaterais inevitáveis. Na década de 1990, discussões sobre as causas desses acidentes passaram a ser mais frequentes, mas a responsabilização ainda recaía muito sobre os condutores.
“Noventa por cento da responsabilidade era atribuída ao condutor, então restava muito pouco para a gente trabalhar em coisas como a via e o veículo. E restava muito para a gente tratar em termos de leis, de educação, de multa. Esses paradigmas não se mostraram eficientes para a gente reduzir a sinistralidade viária”, relembra Flávio.
Desde então, algumas perguntas começaram a ganhar força. “Quais são as causas? Quem são os culpados?” e “o que, se diferente fosse, teria mudado o desfecho?”, questiona o professor. Quando os questionamentos sobre quais as causas e sobre quem é o culpado dos acidentes passaram a se tornar mais frequentes, a forma de trabalhar para evitá-los começou a mudar.
Passou-se a compreender que “a responsabilidade de qualquer sinistro é completamente compartilhada, da pessoa que projetou a via ao sujeito que não conseguiu pisar no freio e evitar a colisão,” explica Flávio.
O termo correto é "sinistro de trânsito"
A NBR 10697/2018 da ABNT corrige a expressão “acidente de trânsito”, substituída por “sinistro de trânsito”, e suprime o entendimento de sinistro “não premeditado”.
Por que "sinistro" e não "acidente"?
Acidente traz a conotação de algo imprevisível e incontrolável, sem nenhum nexo de causalidade, o que contraria o conhecimento acumulado sobre a matéria. Sinistros não são acidentais; são provocados, portanto podem ser prevenidos.
Mobilizando esforços para tornar o trânsito mais seguro em escala global, de 2011 a 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) promoveu a primeira Década de Ação pela Segurança no Trânsito. A ela, seguiu-se o início da segunda década temática, em 2021. Em meio a essas iniciativas, a redução da velocidade passou a ser um componente central das políticas de segurança viária.
Em 2020, na terceira Conferência Ministerial Global sobre Segurança Viária, foi instituída a Declaração de Estocolmo. No documento, os 140 países signatários comprometeram-se a adotar medidas para reduzir as mortes causadas por acidentes de trânsito pela metade até 2030.
A ação mais impactante relacionada a esse compromisso foi a redução de limites de velocidade em diversas cidades do mundo nas primeiras décadas do século. Simultaneamente, em primeiro de janeiro de 2021, quase todas as ruas de Bruxelas, capital da Bélgica, passaram a ter velocidade máxima de 30 km/h.
Antes, a medida foi testada no distrito de Schaerbeek, ao norte de Bruxelas, e resultou na diminuição de 12% nos acidentes com vítimas. Também houve redução na poluição, no barulho e nos gastos da população com combustível.
Na década anterior, Nova York e Londres já haviam reduzido os limites de velocidade para 40 km/h e 32 km/h, respectivamente. Após reduzir a velocidade da maioria das vias para 30 km/h em 2021, no final de 2024, Paris também limitou a 50 km/h a velocidade no anel viário que circunda a cidade, que antes era de até 70 km/h.
Na avenida Leste-Oeste, em Fortaleza, a velocidade de 50 km/h inaugurada no trecho entre a Barra do Ceará e a Marinha em 2018, foi prolongada em 2021. A partir de então, seguiu até o início da via, no cruzamento com a avenida Dom Manuel. A mudança também ocorreu em mais de 50 vias da cidade.
Além de Fortaleza, cidades brasileiras como São Paulo e Curitiba também diminuíram os limites de velocidade em diversas vias.
Como o excesso de velocidade é um dos principais fatores de risco para a insegurança viária, a OMS defende a redução dos limites de velocidade no trânsito, recomendando a adoção de até 50 km/h em áreas urbanas, e de até 30 km/h em áreas residenciais ou com fluxo intenso de pedestres.
De acordo com a instituição, “velocidades mais altas aumentam a probabilidade de perda de controle do veículo, reduzem o tempo de reação do condutor diante de perigos e dificultam que outros usuários da via avaliem corretamente a aproximação de veículos. Esses elementos elevam tanto o risco de ocorrência quanto a gravidade dos sinistros, sobretudo para pedestres e ciclistas”.
Segundo a OMS, os avanços conquistados nos últimos anos vão além da readequação das velocidades.
Após o lançamento da primeira Década de Ação pela Segurança no Trânsito, os setores da saúde e da segurança viária desenvolveram maior integração para coordenar globalmente as ações pela segurança no trânsito. Esse envolvimento fortaleceu a análise epidemiológica e a identificação dos determinantes sociais dos sinistros, contribuindo para a compreensão sistêmica do problema.
A avaliação positiva é corroborada pela Global Designing Cities Initiative (GDCI), entidade que atua em diversos países para tornar as ruas cidades mais seguras, saudáveis, acessíveis e equitativas para todos.
Entre os avanços realizados no Brasil, o GDCI destaca a redução da velocidade em vias arteriais críticas de São Paulo em 2015; o investimento em urbanismo tático realizado em Recife; e ações coordenadas nos eixos de comunicação, fiscalização, dados e desenho das ruas de Fortaleza que contribuíram para que a cidade alcançasse nove reduções consecutivas nas mortes no trânsito de 2014 a 2023, tornando-a referência nacional. Os óbitos decorrentes de sinistros de trânsito em Fortaleza foram reduzidos em 58% de 2014 a 2023, passando de 377 óbitos para 157.
Segundo a AMC, o combate à violência no trânsito é feito na cidade com base na abordagem de visão zero e sistemas seguros, no qual o objetivo é conseguir um sistema viário que admita o erro humano sem levar a óbito ou a lesões graves.
Esse conceito reconhece os limites da força ao qual o corpo humano pode sobreviver e se concentra na abordagem sistemática de vários fatores envolvidos em tipos específicos de colisões para reduzir a gravidade.
A principal premissa do programa Visão Zero, criado na Suécia em 1997, é a de que nenhuma morte prematura no trânsito é aceitável. A proposta conseguiu transformar o trânsito sueco em um dos mais seguros do mundo e serviu de exemplo para a implementação de propostas de sistemas seguros de mobilidade em diversos países.
Conforme levantamento da AMC, a política de readequação da velocidade aponta uma redução de 68,1% na média de acidentes com mortes em ruas e avenidas que tiveram a velocidade máxima readequada para 50 km/h.
O estudo teve como base
Série de reportagens aborda problemáticas e soluções por um trânsito seguro