As transformações deste século incluem a forma de pensar sobre segurança no trânsito. Evitar mortes e ferimentos no trânsito passou a ser considerada questão de saúde pública.
“Por alguns anos, algumas cidades no Brasil apresentaram redução de mortes e feridos no trânsito, e muitas vidas foram salvas por reverter a tendência de subida das mortes. Infelizmente, no último ano, esses números voltaram a subir, e é essencial que o foco em segurança viária continue,” convoca o Global Designing Cities Initiative (GDCI).
Indo muito além do Brasil, essa continua a ser uma grande peleja no mundo todo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), esta é a 8ª principal causa de morte global e a principal entre crianças e jovens de 5 a 29 anos.
Mais da metade das vítimas fatais são pedestres, ciclistas e motociclistas, grupos frequentemente negligenciados no planejamento viário. Ademais, milhões de pessoas sofrem ferimentos ou ficam permanentemente incapacitadas, o que gera sobrecarga nos sistemas de saúde.
Em 2023, segundo dados do DataSus, foram registrados 34.881 óbitos devido a acidentes de trânsito. Em nível global, os dados mais recentes, referentes a 2021, indicam 1,19 milhão de óbitos e nas Américas. Os acidentes de trânsito causaram mais de 145 mil mortes, o que representa 12% das mortes globais por essa causa.
Segundo o GDCI, a gestão de velocidade continua sendo um dos maiores desafios relacionados aos esforços para reduzir sinistros de trânsito.
Apesar de a legislação brasileira possibilitar que os municípios estabeleçam limites seguros de velocidade, isso não tem acontecido com a frequência necessária. “Algumas cidades, como Fortaleza, têm reduzido a velocidade em vias críticas como a Leste-Oeste, mas raramente essa é uma política na escala das cidades,” exemplifica a instituição.
Apesar da significativa diminuição de óbitos durante a última década, os números voltaram a subir em Fortaleza no ano passado. Os dados de 2024, ainda em consolidação, indicam um aumento do número de óbitos em relação ao ano anterior.
Os dados preliminares apontam 185 óbitos em 2024. Segundo a Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC), esse aumento pode ser fruto de diversos fatores, dentre eles a diminuição de investimento nas áreas de mobilidade e segurança viária nos últimos anos.
Os dados alertam para uma política contínua com avanços e investimentos em políticas de redução de sinistros. A AMC informou que realiza um trabalho "contínuo e integrado", combinando engenharia de tráfego, educação e fiscalização. E que ações serão aprimoradas de modo a proteger os usuários mais vulneráveis a acidentes.
Nesse sentido, um estudo está sendo realizado para implantação de faixas azuis para motociclistas, que são os mais vulneráveis a acidentes e representam mais da metade das mortes no trânsito. Além disso, ciclistas terão infraestruturas cicloviárias mais seguras, com reforço da sinalização em ciclofaixas e ciclovias.
Mas a urgente diminuição da velocidade também deve vir acompanhada de outras medidas. “É essencial fortalecer a gestão da segurança viária, aperfeiçoar a legislação e a fiscalização, melhorar a infraestrutura das vias e veículos e ampliar a capacidade de resposta dos sistemas de emergência. Também é necessário reorientar a mobilidade urbana, tornando seguras as alternativas sustentáveis, como o uso da bicicleta, o deslocamento a pé e o transporte público,” recomenda a OMS.
“Vias largas, por exemplo, favorecem a aceleração e não é possível esperar que motoristas trafeguem com velocidade de 30 km/h em locais com essa característica,” esclarece o documento Orientações para políticas públicas - Zonas de Baixa Velocidade: uma medida para salvar vidas, elaborado pelo World Resources Institute (WRI) Brasil.
A boa notícia é que nas últimas duas décadas muitas cidades passaram a investir na adaptação da infraestrutura viária para facilitar a adesão a baixas velocidades. Também houve aprimoramento da fiscalização eletrônica e de tecnologias de controle.
Em São Paulo, segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), a redução da velocidade máxima e a implantação de novas ciclovias e de faixas exclusivas para ônibus na capital paulista acarretou uma redução de 20,6% nas mortes no trânsito registradas em 2015.
Recife (PE) implantou mais de 40 projetos de urbanismo tático desde 2020, tornando o desenho das ruas mais seguro. Segundo a prefeitura, essas intervenções foram responsáveis por reduzir, em média, 37,7% o índice de acidentes com vítimas na capital pernambucana.
Em Fortaleza, a redução da velocidade na avenida Leste-Oeste foi acompanhada, nos anos seguintes, pela criação de mais de 7 km de ciclovias e ciclofaixas no local. De acordo com o GDCI, um estudo realizado na capital cearense mostrou que, em ruas que foram implantadas ciclofaixas e as faixas de tráfego foram estreitadas, houve um potencial de redução de acidentes com feridos em 29%.
Com os esforços e resultados alcançados, Fortaleza foi notada por instituições internacionais, recebendo prêmios e incentivos financeiros para investir em políticas na área, entre eles o Bloomberg Initiative for Cycling Infrastructure (Bici).
“O compromisso da cidade com a mobilidade por bicicleta levou à sua seleção como grande vencedora da Bici, um programa da Global Designing Cities Initiative (GDCI) e da Bloomberg Philanthropies,” afirma o GDCI.
Além de receber a quantia de 1 milhão de dólares para investir em estrutura cicloviária, a cidade também está recebendo assistência técnica, treinamentos e a oportunidade de trocar conhecimentos e experiências com uma rede global de especialistas e profissionais mobilizados pelas instituições.
Entre as compatibilizações do ambiente viário que favorecem as baixas velocidades estão: “clara indicação das entradas na área, sinalização vertical e horizontal, faixas de tráfego estreitas, prolongamento de passeio, faixas de travessia de pedestres elevadas, chicanas e outras medidas moderadoras de tráfego,” indica o documento.
Em Fortaleza, outro exemplo de estruturas que contribuem para a diminuição da velocidade são as intervenções urbanas do programa Caminhos da Escola, desenvolvido pela Prefeitura de Fortaleza.
Os alargamentos de calçadas, pinturas lúdicas, mobiliários urbanos, plantios de árvores e estacionamentos para bicicletas implantados pelo programa contribuem para tornar a cidade mais segura e acolhedora para crianças que se deslocam a pé para as escolas.
Começando pelos mais vulneráveis, toda a população é beneficiada. Cristo Redentor, Jardim das Oliveiras e Aeroporto são alguns dos bairros que receberam intervenções do projeto.
A cidade também executa projetos voltados à melhoria das condições de circulação e travessias seguras de pedestres como a implantação de lombadas e travessias elevadas, áreas de trânsito calmo, semáforos exclusivos para pedestres e extensões de calçadas para permitir uma passagem mais segura.
“O trânsito é cruel para quem sabe dirigir, mas é pior para quem não sabe”, sentencia o entregador de aplicativo José Erivan Torres, de 56 anos. Quando começou a trabalhar percorrendo a cidade de motocicleta, há quatro anos, José possuía a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) para a categoria. Entretanto, faltava experiência. Precisou aprender na marra.
Um dos pilares da segurança no trânsito, a educação precisa ser um processo contínuo, reconhecido como um dever social que se cumpre diariamente, contemplando desde os exemplos dados às crianças até programas e serviços que possibilitem a formação de condutores mais experientes e cautelosos.
O professor Ademar Gondim, chefe do Departamento de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC), ressalta que há uma diferença entre estar habilitado e capacitado.
“Quem tira a carteira de habilitação, o próprio nome diz, carteira de habilitação, não quer dizer que está capacitado. A capacitação depende de exercício permanentemente,” explica ele, e vai além: “Nesse caso, se a educação não atingir a conscientização, não é educação. É treinamento, é outra coisa, mas não é educação”, argumenta.
Nesse contexto, Ademar acrescenta, instrumentos punitivistas como as multas contribuem para inibir infrações, mas não resolvem o problema. Se não houver investimentos massivos em educação, as outras soluções empregadas para melhorar a segurança serão insuficientes.
Responsável pelo disciplinamento do tráfego em Fortaleza, a Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC) tem entre suas competências desenvolver projetos educativos que busquem uma consciência mais humanizada nas vias urbanas.
Segundo a instituição, os projetos educativos que desenvolve incluem campanhas de sensibilização, palestras em escolas, workshops para condutores e ações comunitárias que incentivam o respeito mútuo, além do cumprimento às normas de circulação viária.
Alguns desses projetos são voltados para o ensino do uso correto da faixa de pedestres, como o Travessia Cidadã e o Dê passagem para a vida. Para motociclistas, o órgão realiza a iniciativa Motociclista Prudente, com entrega de materiais educativos, e o Curso de Pilotagem, capacitação gratuita com aulas teóricas e práticas na sede do órgão. Este último contempla também ciclistas.
Com a ação educativa Volta às Aulas, a AMC trabalha para conscientizar pais, alunos e educadores para uma boa convivência no trânsito e obediência às regras de circulação e estacionamento nas proximidades de instituições de ensino.
No Curso Dando Grau, oferecido gratuitamente pela AMC para a população de baixa renda, os participantes serão apresentados às ferramentas que os possibilitem atuar na manutenção de bikes, no desenvolvimento e na gestão de pequenos negócios relacionados à mobilidade urbana.
Entre os temas das aulas está a segurança no trânsito. O objetivo é incentivar o empreendedorismo e estimular o uso da bicicleta como ferramenta de geração de renda.
Na intenção de prevenir acidentes causados por condutores alcoolizados, a Autarquia realiza, por meio do projeto AMC nos Bares, abordagens em bares movimentados de Fortaleza com o propósito de orientar os motoristas acerca da Lei Seca e do perigo de misturar álcool e direção.
Entre 2021 e 2024, a AMC promoveu 1.631 ações educativas alcançando 232.355 pessoas. Já o Departamento Estadual de Trânsito do Ceará (Detran-CE) informou ter intensificado ações educativas para conscientizar a sociedade sobre a importância do respeito às regras de trânsito.
Entre as principais medidas, destacam-se campanhas de conscientização, palestras em escolas e empresas, blitzes educativas, oficinas com óculos que simulam a ingestão de bebidas alcoólicas e parcerias com instituições para ampliar o alcance das ações.
Os públicos prioritários são motociclistas e entregadores por aplicativo, servidores e colaboradores que prestam atendimento ao público, além de outras pessoas alcançadas em blitzes educativas, palestras e visitas às escolas.
Em 2024 o Detran-Ce realizou 2.391 ações no total, alcançando um público de 385,663 pessoas.
Série de reportagens aborda problemáticas e soluções por um trânsito seguro