A nomeação do professor Custódio Almeida, em agosto último, para o cargo de reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC) teve reflexos imediatos em setores importantes do ecossistema acadêmico local, como mostrado nos dois episódios anteriores desta série de reportagens.
Além de garantir o reestabelecimento do diálogo com o Centro de Humanidades (CH), os conselhos universitários e as entidades sindicais - cujos representantes relataram, em apuração de O POVO+, episódios de perseguição e menosprezo por parte do antigo reitor, o professor Cândido Albuquerque - e de retomar propostas incluídas no desenho original do Campus de Itapajé, Custódio tem, entre suas principais metas de gestão, fazer andar o ambicioso projeto de criação, no Porangabussu, de um Distrito de Inovação em Saúde.
Pensando os campos da saúde e da inovação a partir de uma ótica abrangente que envolve a universidade, os governos estadual e municipal, empresas privadas e a comunidade local, o projeto, que começou a ser formulado em 2014, é balizado por cinco eixos: ciência, tecnologia e inovação; gestão de talentos; gestão de negócios; governança e comunicação; e inovação e infraestrutura urbana.
Além de ser sede dos cursos da área de saúde da UFC (Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Odontologia e Medicina), o Porangabussu (nome original do bairro, alterado em 1966 para Rodolfo Teófilo) abriga ainda o complexo hospitalar da universidade, que inclui o Hospital Universitário Walter Cantídio e a Maternidade-Escola Assis Chateaubriand, o Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM), uma farmácia escola e seis clínicas odontológicas, além da Biblioteca de Ciências da Saúde.
A estrutura existente e a riqueza das pesquisas já desenvolvidas por professores e alunos da UFC estão na base do projeto do distrito, citado por Custódio como “urgente e ultranecessário”. “A universidade cresceu muito lá. Temos excelentes cursos, com os melhores professores e estudantes, mas a infraestrutura não condiz com isso. O local precisa ser requalificado para fazer acontecer todo esse potencial que já está instalado”, afirmou.
Além dos equipamentos albergados pela UFC, estão na região outras importantes estruturas públicas de saúde, como o Hospital São José de Doenças Infecciosas, o Hemoce, o Instituto do Câncer do Ceará e o posto de saúde Anastácio Magalhães. Segundo Custódio, também é objetivo do projeto desenhar estratégias que solucionem os problemas de infraestrutura e mobilidade que foram surgindo pelo desenvolvimento sem planejamento do bairro.
Equipamento nuclear do Distrito de Inovação e Saúde, o anunciado Hospital de Alta Complexidade de Porangabussu é a estrutura para a qual se voltam as atenções quando se fala do projeto.
O equipamento, que deve substituir e atualizar o Hospital Universitário Walter Cantídio (o nome em homenagem ao médico fundador da Faculdade de Medicina será mantido), vai abrigar em seu espaço um centro de tratamento de doenças raras e complexas, um centro de reabilitação, um centro de transplante de alto porte tecnológico e um centro de simulação de tecnologias médicas. Também serão realizadas no equipamento pesquisas genéticas, estudos epidemiológicos e de efetividade clínica.
Além da ampliação das atividades de pesquisa, estão entre os resultados e benefícios esperados para a área de saúde, a partir das atividades realizadas nos equipamentos do Distrito, a agilização do diagnóstico e tratamento de doenças raras e o desenvolvimento e testagem de práticas de saúde preventiva, o que deve gerar impacto significativo nos gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) no Ceará principalmente com o tratamento de doentes crônicos.
No último dia 9 de outubro, o reitor da UFC nomeou a médica e professora Josenília Maria Alves Gomes como superintendente do novo Complexo Hospitalar. Além do novo hospital Walter Cantídio, o complexo vai abrigar a Maternidade-Escola, que também passa por reforma estrutural com previsão de finalização em duas etapas: uma nova emergência obstetrícia, até o fim do primeiro quadrimestre de 2024, e a ampliação do número de leitos de UTI neonatal, de 21 para 40, em 2025.
Ao O POVO+, Josenília, que já foi diretora-presidente da Fundação Regional de Saúde (Funsaúde), afirmou que a população cearense terá um “hospital muito mais humanizado”. “Na estrutura de hoje, por mais que trabalhemos processos de humanização, é muito difícil, por conta do espaço. E não existe possibilidade de fazer um ensino adequado onde a assistência não é adequada”, explica.
As reformas e ampliações das estruturas devem impactar diretamente, como explica Josenília, na formação dos profissionais de saúde: “Além de uma assistência melhor, ampliada, a gente tem a oportunidade de formar melhor os médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, todos. Vamos formar profissionais mais aptos a trabalhar no SUS e para o SUS”.
A preocupação com a formação de profissionais humanizados parece ser uma das balizas da gestão de Josenília, e o tema aparece com frequência em suas falas. “Não adianta ter uma casa nova se os processos não migrarem para um novo patamar: processos assistenciais, pessoas mais engajadas, gestão mais próxima e acolhedora. Nosso grande desafio é fugir desse modelo engessado e envolver, engajar”, argumenta.
Outra preocupação norteadora do projeto do Distrito de Inovação em Saúde foi a de oferecer aos cientistas e pesquisadores formados pela UFC condições estruturais e tecnológicas de ponta para que sigam atuando em Fortaleza. Nesse sentido, “resgatar” profissionais que foram buscar no exterior os incentivos que não encontraram aqui (movimento chamado, no âmbito acadêmico, de “fuga de cérebros”), também é prioridade.
“O Distrito vai congregar núcleos de pesquisa, trabalhando com inovação e patentes. Ter uma estrutura que possibilite a execução da pesquisa acaba atraindo o pesquisador, faz com que a pessoa continue aqui”, explica Josenília, reforçando que a tecnologia dos equipamentos vai permitir o desenvolvimento de pesquisas de alta complexidade em saúde.
A nova superintendente garante, por experiência própria, que muitos pesquisadores atuando fora do Estado têm o desejo de voltar ao Ceará: “Por mais que a gente tenha um laboratório fantástico lá fora, a gente sonha em voltar pra cá e fazer aqui o que produzimos lá. Muitos dos nossos pesquisadores querem isso”.
A arquiteta e urbanista Lia Parente, que vem colaborando ininterruptamente, desde 2014, com a concepção e implementação do Distrito, também destacou, em entrevista ao O POVO+, a importância do projeto no fortalecimento de um corpo cearense de pesquisadores de primeira linha: “É hora de retermos nossos talentos, para que possam investir suas qualidades em benefício da melhoria da qualidade de vida de nossa própria gente”.
A cessão do imóvel para a construção da nova sede do Hospital Universitário Walter Cantídio foi aprovada pelo Conselho Universitário (Consuni) no último dia 29 de setembro. Com relatoria do próprio professor Custódio Almeida, a matéria envolveu o recebimento da estrutura doada, em novembro de 2021, pelo Instituto de Ciências Médicas Paulo Marcelo Martins Rodrigues (ICM).
Entidade sem fins lucrativos criada pelo médico Carlos Roberto Martins, conhecido como dr. Cabeto - ex-secretário de saúde do Estado e figura central na luta contra a pandemia do Covid-19 no Ceará -, o ICM fez a doação integral do edifício (que seria, originalmente, um hospital do coração) e de seu terreno à UFC. Quando finalizados os trâmites da cessão, a previsão de prazo para o término das obras é de um ano e meio.
De acordo com o projeto original do hospital, divulgado no fim de 2021, o equipamento contaria com 10 pavimentos distribuídos em um terreno de 12 mil metros quadrados. Com a cessão do edifício, a UFC está realizando estudos técnicos para definir as alterações que serão feitas em relação ao primeiro desenho.
“Já estamos trabalhando com os planos de necessidade em relação à atualização do projeto executivo que foi pensado para a outra unidade”, explica a professora Josenília, afirmando que logo que os trâmites jurídicos da cessão forem finalizados, o processo licitatório será iniciado, “talvez em março ou abril do próximo ano”.
Em relação às condições estruturais do edifício - oito dos dez andares prometidos já estão construídos -, Josenília afirma que, apesar de ter suas obras paradas, o equipamento está “em perfeito estado de conservação” e que há uma empresa contratada para cuidar da manutenção. “É uma construção muito sólida, com colunas robustas e proporções que respeitam as regras de humanização”, acrescenta.
Segundo a arquiteta Lia Parente, a evolução do projeto, que acabou sendo desacelerada durante a gestão anterior da UFC, foi retomada com novo fôlego pelo professor Custódio. “O projeto não foi priorizado pelo antigo reitor, não houve nenhum grande apoio. O Custódio tem muita sensibilidade a respeito da importância dessa oportunidade para reintegrar, reaproximar a UFC com a comunidade”, avalia.
O projeto original estipulava, para a construção do Hospital de Alta Complexidade, um investimento de R$ 205 milhões, a maior fatia no universo de R$ 535 milhões previstos para a implementação de todo o Distrito de Inovação em Saúde. O valor, segundo o atual reitor, professor Custódio Almeida, pode ser alterado, “inclusive para baixo”, após a finalização do processo de adaptações.
Frente a essa previsão, Custódio anunciou, no dia 2 de outubro, que o ministro da educação Camilo Santana havia se comprometido a destinar recursos na ordem de R$ 150 milhões para custear a conclusão das obras.
Dias depois, na cerimônia de posse de Josenília como superintendente do Complexo, o reitor afirmou que a finalização do projeto estaria entre as iniciativas cobertas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 3) do Governo Federal, que destinará, entre os anos de 2024 e 2027, R$ 1,5 bilhão a hospitais universitários federais, uma estratégia para fortalecer o SUS.
“Quando a doação estiver concluída, quando o processo de licitação estiver pronto, nós vamos voltar ao MEC e solicitar os recursos”, garantiu Custódio.
Desenhado entre 2014 e 2016, o projeto do Distrito de Inovação em Saúde integra o chamado Plano Estratégico de Longo Prazo Fortaleza 2040, elaborado, segundo documento oficial, “com a participação de 18 mil pessoas e o apoio de mais de 150 pesquisadores e consultores”.
Em linhas gerais, um distrito de inovação e tecnologia, aos moldes de projetos semelhantes espalhados pelo mundo, se caracteriza por uma série de elementos configurados em torno da ideia de uma cidade ou região compacta e sustentável.
São áreas verdes, com infraestrutura avançada e eficiência energética, baseadas em uma relação íntima com instituições de ensino superior e empresas privadas. Nesses distritos, preocupações com questões de mobilidade, revitalização de espaços públicos e transferência de tecnologia são elementos norteadores.
A arquiteta Lia Parente, que à época da elaboração do Fortaleza 2040 atuou como coordenadora do projeto, destaca que a conjunção dessa diversidade de elementos e propostas é posta a serviço da ideia de convívio: “O ideal é que o Distrito reúna pessoas que trabalhem, pesquisem, morem e se divirtam, que haja essa centralidade, esse encontro”.
Segundo ela, o Porangabussu é hoje formado por profissionais da área de saúde que trabalham, mas não vivem lá, e trabalhadores de outras áreas que vivem, mas não trabalham lá. “Temos que capacitar os moradores do bairro para que possam aproveitar as vagas que vão surgir”, destaca.
Para a arquiteta, o Distrito não será um local “só para a ciência e a tecnologia”, mas sim um espaço de “transformação radical” que inclui em seus efeitos sociais desejados, a partir de uma perspectiva cidadã e de diálogo com a comunidade, uma reforma em questões de aumento e redistribuição de renda familiar.
“Será algo muito especial para Fortaleza e o Ceará. Além de ser um lugar com as melhores condições de trabalho para os profissionais da UFC, será um espaço muito apropriado para novas empresas da área de saúde se instalarem, e isso significa muito mais emprego para a população”, avalia o professor Custódio.
Como não poderia deixar de ser com um projeto desse porte, há no desenho do Distrito flagrante preocupação com questões de mobilidade e requalificação dos espaços públicos. “O bairro vai passar por um processo de revitalização. A mobilidade dos automóveis, por exemplo, deve ser alterada para tornar a área mais atrativa e apropriada para os pedestres”, explica o reitor.
Essa preocupação se traduz também na criação de habitações de interesse social (serão dois conjuntos de edifícios com 323 unidades habitacionais) e na revitalização do entorno da lagoa do Porangabussu - o principal pleito da comunidade. “Vamos ter um olhar especial para a questão da segurança, com a instalação de um nova estação policial, e a requalificação vai alcançar as quadras e ruas no entorno da lagoa”, adianta Lia.
Os planos do professor Custódio para seus anos de gestão à frente da UFC vão além do Distrito de Inovação e se espalham, com variadas estratégias, por diversos setores, como o reitor já havia comentado anteriormente com O POVO+.
Custódio evita falar de propostas consolidadas, mas adianta uma série de novos cursos (para a capital e o interior do Estado) que pretende incluir no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que de acordo com estimativas divulgadas em agosto último pelo Ministério da Educação terá investimento total de R$ 45 bilhões em educação, ciência e tecnologia.
Na área de saúde, seguindo a proposta de modernização e humanização do Distrito de Saúde em Fortaleza, Custódio pretende propor os cursos de Terapia Ocupacional, Nutrição e Medicina Veterinária.
Além deles, a capital cearense pode receber cursos de Arqueologia, Meteorologia e Turismo Ecológico, que devem ser albergados pelo novo Instituto de Ciências do Mar (Labomar), equipamento que será trasladado para o anunciado Campus de Iracema, na região do Poço da Draga.
O Instituto de Cultura e Arte (ICA), que sedia atualmente os cursos de Cinema e Audiovisual, Dança, Design-Moda, Filosofia, Gastronomia, Jornalismo, Música, Publicidade e Propaganda e Teatro, deve receber a adição de uma nova graduação em Produção Cultural.
Para cada um dos cinco campi do interior do Estado, a ideia, segundo o reitor, “é ter um mínimo de oito cursos”. O Campus de Crateús, hoje com cinco graduações, ganharia outras três. Itapajé, que atualmente conta com três cursos na área de tecnologia, deve ganhar cinco licenciaturas, conforme foi adiantado na segunda parte desta série de reportagens.
O Campus Quixadá, com seis graduações, ganharia outras duas. Russas, com cinco cursos, receberia outros três. O Campus de Sobral, por fim, que já conta com oito cursos (incluindo a graduação em Medicina) poderia ganhar até duas novas formações.
“A proposta com o número de cursos novos já foi enviada a Brasília, assim como dos prédios novos para abrigar essa expansão”, explica Custódio, acrescentando que “o tema ainda não está fechado” porque as discussões relativas às novas graduações serão feitas, ao longo dos próximos meses, com cada unidade acadêmica.
Série de reportagens mostra o desmonte do Centro de Humanidades (CH) da UFC e os desafios da nova gestão