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Os desafios na nova gestão da UFC para recompor o Centro de Humanidades
Reportagem Seriada

Os desafios na nova gestão da UFC para recompor o Centro de Humanidades

Sob nova gestão desde agosto de 2023, a Universidade Federal do Ceará (UFC) tem o desafio de reestruturar os departamentos das ciências humanas, após a gestão de Cândido Albuquerque. A partir das demandas represadas, a atual reitoria se compromete a restabelecer diálogo e realizar mudanças
Episódio 1

Os desafios na nova gestão da UFC para recompor o Centro de Humanidades

Sob nova gestão desde agosto de 2023, a Universidade Federal do Ceará (UFC) tem o desafio de reestruturar os departamentos das ciências humanas, após a gestão de Cândido Albuquerque. A partir das demandas represadas, a atual reitoria se compromete a restabelecer diálogo e realizar mudanças
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Manhã do dia 3 de agosto de 2023. Boa parte da comunidade acadêmica cearense começava o dia atenta à publicação do Diário Oficial da União. Na primeira página da segunda seção do documento, veio a confirmação da expectativa: “O presidente da república resolve nomear Custódio Luís Silva de Almeida para exercer o cargo de reitor da Universidade Federal do Ceará”.

Nomeação do professor Custódio Almeida como reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC)(Foto: Diário Oficial da União)
Foto: Diário Oficial da União Nomeação do professor Custódio Almeida como reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC)

Conduzido ao cargo pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Custódio assumia a função de reitor quatro anos após ter sido preterido na escolha do então mandatário Jair Bolsonaro, em 2019, que preferiu indicar para o cargo o advogado criminalista e professor Cândido Albuquerque, terceiro colocado (com 4,6% dos votos) na consulta pública realizada entre docentes, alunos e técnicos da UFC.

Cândido, que havia granjeado a confiança de Bolsonaro por intermédio do então ministro da educação Abraham Weintraub – a quem havia visitado diversas vezes em Brasília –, cruzou o pórtico do palacete que abriga a reitoria da UFC envolto por uma nuvem de desconfiança: parte da comunidade acadêmica rechaçava sua nomeação, a segunda, na história da universidade, a contrariar a consulta pública.

A relação entre reitor, professores e alunos começou estremecida e, até o fim de seu mandato, o que era desconfiança se transformou em convicção: as duas partes eram inconciliáveis.

É o que aponta o documento Intervenção na Universidade Federal do Ceará (2019-2023): Autoritarismo e resistência, lançado em 31 de agosto de 2023, pelo Sindicato dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará (Adufc).

Sob a forma de dossiê, a publicação reúne 259 páginas de notícias, reportagens, notas de repúdio e artigos de opinião que destrincham a turbulenta relação que se estabeleceu, desde o início, entre reitor e parte considerável da comunidade de professores e estudantes. 

 

Vigiar, remanejar e punir

A quantidade de alegações e denúncias apresentadas pelo dossiê chama atenção. São relatos que vão de alterações arbitrárias na composição do Conselho Universitário (Consuni) ao rebaixamento autocrático da Avaliação de Desempenho de pelo menos quatro diretores de unidades acadêmicas.

Também abundam no documento relatos de censura, autoritarismo, perseguição a professores, afastamento de estudantes das instâncias consultivas, criminalização de movimentos sociais e práticas antissindicais. Embora as denúncias elencadas no dossiê não se refiram exclusivamente a situações registradas nos departamentos ligados às ciências humanas, é inegável que é desses locais que chega a maior parte dos relatos. 

Manifestações e atos políticos organizados ou com participação da Adufc durante a gestão de Cândido, entre agosto de 2019 e agosto de 2023 (Fotos: Nah Jereissati/Adufc)

“A visão de universidade que ele tem é empresarial, se choca completamente com as humanidades. Por isso ele manteve distância desses departamentos até o último momento”, avalia a professora Irenísia Oliveira, ligada ao Departamento de Literatura da UFC e atual presidenta da Adufc.

De acordo com o dossiê produzido pela Adufc, a perseguição do então reitor aos professores podia ser motivada, inclusive, por postagens feitas pelos docentes em suas redes sociais privadas. Em um dos capítulos do documento, ficamos sabendo sobre a suspensão, após decisão judicial, da sindicância acusatória instaurada na universidade contra uma professora que havia se posicionado politicamente em seu perfil no Instagram.

O advogado Renan Bezerra, responsável pelo setor jurídico da Adufc, avalia que os anos de gestão do ex-reitor foram “difíceis”. “Passamos por diversas situações, inclusive com a abertura de muitos processos administrativos e sindicâncias, revisão de vencimentos e relatos de assédio”, elenca.


Área 1 do Centro de Humanidades da UFC, onde estão as Casas de Cultura, Departamentos de Letras e Literatura e Biblioteca de Ciências Humanas (Fotos: Yuri Allen/Especial para O POVO)

Pelo menos uma das representações feitas pela Adufc no Ministério Público Federal (MPF) segue em tramitação. Protocolada em julho deste ano, consiste em um pedido de apuração de “possíveis irregularidades praticadas em tese pelo Reitor da UFC no que se refere à prática de critérios escusos para determinar a distribuição de vagas de docentes e técnicos-administrativos”.

Linha do tempo dos questionamentos levantados pelo dossiê da Adufc na gestão de Cândido

Uma das solicitações de investigação incide diretamente sobre duas vagas que teriam sido remanejadas, sem a ciência do diretor da área, do Centro de Humanidades para o Campus de Itapajé, inaugurado na gestão de Cândido depois de passar por uma mudança de perfil em relação ao projeto original.

O POVO+ teve acesso aos autos do processo. Segundo um dos documentos juntados, a reitoria teria assumido o remanejamento da vaga para Itapajé, não oferecendo, porém, maiores explicações para a mudança. “A Administração Superior limitou-se a orientar que o Centro de Humanidades aguardasse a redistribuição de vagas”, afirma o texto.

A representação, ancorada em um pedido de investigação de improbidade administrativa, teve primeira resposta da UFC no último dia 6 de setembro, quando a Universidade já estava sob a gestão de Custódio. No documento, assinado pelo chefe de gabinete do reitor, é solicitado o prazo de 90 dias (a se encerrar no dia 6 de dezembro) para que a UFC analise, em seu Sistema Integrado de Administração de Pessoal, a situação das vagas. 

 

A versão de Cândido: "avaliação segundo a minha convicção"

O advogado criminalista Cândido Albuquerque, ex-reitor da UFC(Foto: Lamonier Rodrigues/Divulgação)
Foto: Lamonier Rodrigues/Divulgação O advogado criminalista Cândido Albuquerque, ex-reitor da UFC

Questionado, a partir do dossiê da Adufc, sobre as denúncias de perseguição e alterações arbitrárias nas avaliações de desempenho de quatro docentes da UFC, o professor Cândido Albuquerque respondeu a O POVO+ que “cada um avalia como quer”.

Em seguida, completou: “Não é possível que eu tenha que perguntar como tenho que avaliar”. Depois, por mensagem, afirmou: “Não temos o que conversar. Fiz a avaliação segundo a minha convicção. Não faz sentido o avaliado estabelecer os critérios para o avaliador. Isso é surreal.”

Até o fechamento desta reportagem, Cândido não respondeu aos questionamentos sobre os relatos que dão conta da retirada das representações estudantis das instâncias consultivas, do remanejamento e extinção de vagas e de condutas autoritárias.

Nossa reportagem tentou contato com Cândido três vezes por celular no dia 15 de setembro, sendo atendida em uma delas, e uma vez no dia 18 do mesmo mês. Também no dia 15, deixou recado com a secretária do ex-reitor em seu escritório de advocacia. Por WhatsApp, foram feitas tentativas de contato no dias 15, 18, 19, 20 e 21 (as respostas acima transcritas, obtidas em duas dessas ocasiões, ignoram a maior parte das denúncias elencadas na mensagem).

 

 

Os caminhos para a reumanização

O POVO+ levou ao atual reitor da UFC, professor Custódio Almeida, as demandas de docentes e servidores ligados às áreas das humanidades. Em relação às necessidades estruturais e de reposição de vagas, citadas por professores e técnicos do Centro de Humanidades (CH), Custódio afirmou que tais aspectos serão contemplados no planejamento oficial da universidade.

“Sei que temos grandes problemas a resolver no CH e que precisamos de reformas importantes nas áreas 2 e 1. Estamos aguardando o planejamento oficial da universidade, feito com as unidades acadêmicas, para que possamos estabelecer prioridades e fazer um plano de execução, de acompanhamento e de busca de recursos”, afirma ele.

O reitor conta que, entre seus projetos, está a requalificação do Centro de Humanidades, do Instituto de Cultura e Arte (ICA) e da Faculdade de Educação, além do estabelecimento de um “corredor cultural” no Benfica, “que vai atingir de forma positiva exatamente essas áreas, com o fortalecimento dos equipamentos culturais da Avenida da Universidade”.

O professor Custódio Almeida, atual reitor da UFC(Foto: UFC/Divulgação)
Foto: UFC/Divulgação O professor Custódio Almeida, atual reitor da UFC

A ideia desse corredor, apresentada com exclusividade a O POVO, contemplaria, inclusive, questões de mobilidade. “Queremos que o bairro seja mais amigável para pedestres e ciclistas, e que possa atrair mais investimentos, equipamentos culturais, restaurantes e bares”, explica.

Ainda na área do Centro de Humanidades, Custódio pretende lançar dois novos equipamentos: as casas de cultura indígena e afro. “São espaços que serão construídos coletivamente para estabelecer uma relação orgânica com as etnias indígenas do Ceará e do Brasil, assim como com as culturas afrodescendentes. Isso tem a ver com nosso compromisso de integração”, adianta.

Custódio defende que é preciso enxergar toda a universidade, em todas as suas áreas, como “um grande laboratório de humanidades”, o que significa, segundo ele, “ser mais do que um formador de profissionais, dar uma visão de conjunto sobre as fragilidades de nossa sociedade”.

Proposta de corredor cultural elaborada pela gestão de Custódio Almeida

Clique nos ícones para saber quais os equipamentos devem integrar o corredor

Para se fazer entender, exemplifica: “É preciso pensar, por exemplo, como os engenheiros podem contribuir para alavancar o desenvolvimento, como podem se inserir nos processos de emancipação humana na sociedade. E isso vale para todos os cursos. Ser universidade significa desenvolver integralmente as potencialidades dos estudantes”.

Sobre a questão das vagas retiradas no Centro de Humanidades durante a última gestão (4 de professoras e 6 de técnicos), Custódio adianta: “Hoje temos um banco de professores e técnicos. Temos que trabalhar com o que a gente tem, a partir das aposentadorias, vacâncias, fazendo remanejamentos. Também vamos planejar isso muito bem.”

O atual reitor também destacou, em sua explanação, a importância que o plural e a diferença devem ter em sua gestão. “Universidade que não respeita pluralidade e diversidade não é universidade”, pontuou, afirmando ainda que um dos desafios de sua gestão seria transformar essas ideias em processos internos.

Reitoria da UFC, na Avenida da Universidade(Foto: Aurelio Alves/O POVO)
Foto: Aurelio Alves/O POVO Reitoria da UFC, na Avenida da Universidade

“O desafio é entender como vamos demonstrar, na prática, que somos essa pluralidade. E isso vai desde usar um letramento includente na comunicação oficial ao combate intransigente a todos os preconceitos”, afirma.

Entre outras prioridades de sua gestão, Custódio também elenca a necessidade de ampliar para espaços menos centrais a presença da UFC. “É preciso entender que a universidade tem em si a periferia. Nós temos no mínimo 50% dos estudantes que são filhos da escola pública, que vivem em bairros periféricos, que são do interior do Estado, e eles têm fragilidades econômicas. Temos que ter essa compreensão e trabalhar a partir dela”, avalia.

Perguntando se o diálogo entre reitoria e sindicatos seria restabelecido, Custódio responde: “Não só com os sindicatos, mas também com o DCE (Diretório Central dos Estudantes), o diálogo está aberto, está acontecendo, foi restabelecido de forma plena. Temos o entendimento de que a presença dessas entidades enriquece a universidade e faz com que a gente se torne uma instituição que é farol para a sociedade”.

 

 

Projetos em outras áreas

Custódio aproveitou a entrevista para falar de dois outros projetos que devem estar presentes no planejamento oficial da universidade durante sua gestão. São eles: a criação do Campus Iracema, nas proximidades do Poço da Draga, e a ampliação do Campus do Porangabussu, onde estão localizados os cursos da área de saúde da UFC.

O projeto do Campus de Iracema, que foi adiantado pelo reitor em entrevista a O POVO, deve ser implementado em terreno federal ao lado do Poço da Draga, na Praia de Iracema. Ele deve ser a nova sede do Instituto de Ciências do Mar (Labomar), atualmente localizado na avenida da Abolição, por trás do Jardim Japonês, no Meireles.

O Campus Iracema será instalado na região do Poço da Draga, na Praia de Iracema(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal O Campus Iracema será instalado na região do Poço da Draga, na Praia de Iracema

“O Labomar é o carro-chefe, que precisa de novas instalações, novas estruturas, e que tem um potencial gigante que está sendo prejudicado pela estrutura física reduzida que temos hoje e que não comporta mais os projetos dos cursos”, explica Custódio.

Para o Campus do Porangabuçu, a ideia é transformar a região, a partir dos cursos de enfermagem, farmácia, fisioterapia, medicina e odontologia, em um distrito de inovação em saúde. “O local precisa ser requalificado para poder fazer acontecer todo o potencial que já está instalado. Queremos retomar o planejamento da região para que se transforme em um bairro da saúde e atraia mais empresas”, conta o reitor.

Entrada do Campus do Porangabuçu(Foto: EVILÁZIO BEZERRA)
Foto: EVILÁZIO BEZERRA Entrada do Campus do Porangabuçu

Em meio a todos os projetos e planos citados durante a entrevista, o que Custódio faz questão de enfatizar, porém, é que a missão de sua gestão é, sobretudo, consolidar e qualificar “tudo o que a UFC já tem”.

“Às vezes a gente fica falando de projeto futuro e esquece que o grande projeto já está presente, já está instalado. Por isso é tão importante a gente cuidar da recuperação de prédios e equipamentos. E cuidar das pessoas, dos professores, dos técnicos e estudantes. O grande projeto é esse: cuidar de nosso patrimônio humano e físico. Esse é nosso ponto de partida. Depois disso, o céu é o limite”, finaliza.


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