Débora Viana vivia em contagem regressiva para os fins de semana, quando podia calçar suas botas, vestir a primeira calça culotte e camiseta que encontrasse pela frente e se dirigir a uma pequena hípica no bairro de Interlagos, em São Paulo, onde respirava a liberdade no lombo de um cavalo. Quando não podia ir, sentia uma falta imensa dos bichos, que considerava parte da sua família. Era um amor tão forte que, de todos os seus sonhos de adolescente, o maior era ser veterinária.
A garota apaixonada por rock e por animais não via a hora de passar os dias conversando com os cavalos, oferecendo a eles carinho e cuidados. Mas o pai dela, que bancaria esse futuro bonito, faleceu cedo. Então, Débora fez um cursinho pré-vestibular na esperança de entrar em uma universidade pública. Ou talvez, com o tempo, sua mãe pudesse pagar as mensalidades. Mas nada disso aconteceu, e sua única alternativa foi encarar o “não” em letras garrafais que a vida lhe disse.
Quem vive uma situação dessas, de perceber que algo que quer mais do que tudo não vai acontecer, tem a sensação de que o chão é arrancado debaixo dos seus pés. Como se de uma hora para outra estivesse em queda livre sem ao menos um paraquedas para garantir um pouso seguro.
Os “nãos” fazem parte da vida, por diversas circunstâncias, e todos nós os ouvimos em alguns momentos. Dependendo do que nos é tirado, perdemos a força com a qual os sonhos nos vestem e nos sentimos como uma criança frágil e desorientada, precisando de alguém que aponte uma direção. Mas, como esse sofrimento não é visível, deixamos a cura a cargo do tempo.
No livro Como curar suas feridas emocionais (Sextante), o psicólogo Guy Winch diz que identificamos um corte profundo que precisa de pontos ou uma doença que exige uma visita rápida ao médico, mas simplesmente não sabemos o que fazer com as dores da alma.
“Jamais permitiríamos que um corte no joelho ficasse sem tratamento até nos impedir de andar, mas nos acostumamos a deixar nossas feridas emocionais sem tratamento, às vezes até ser impossível continuar levando a vida normalmente.”
É assim que nos habituamos a carregar uma dor como roupa do corpo. E não vemos outro horizonte onde possamos encontrar novas chances de ser feliz.
Muitas vezes, o terremoto emocional causado pelas intempéries da vida provoca um dos sentimentos mais difíceis de digerir: a rejeição. Um artigo publicado no jornal Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America afirmou que uma rejeição ativa em nosso cérebro as mesmas regiões que uma dor física.
É aquele momento no qual nos sentimos em pedacinhos, quando descobrimos que a pessoa que amamos não nos quer mais; somos excluídos na escola, na faculdade, na família ou no grupo de amigos; não encontramos o nosso nome na lista de aprovados de uma competição ou de um processo seletivo; sofremos uma demissão imprevisível. Dói tanto que é como se um gelo nos preenchesse por dentro e roubasse a nossa capacidade de sair dali.
As rejeições fazem com que a gente se sinta incapaz de atravessar a ponte que separa o sofrimento de um lugar onde seja possível reencontrar aconchego, amor e pertencimento. Guy diz que elas podem nos chacoalhar de diferentes maneiras, seja provocando dor emocional de variadas intensidades, nos enchendo de raiva e agressividade, atingindo nossa autoestima com um golpe certeiro ou nos fazendo sentir que o mundo não nos cabe mais.
Conforme o tempo vai passando, temos a impressão de que essas feridas estão sarando – ou até que desapareceram. Mas elas continuam lá. Aí, quando menos esperamos, reaparecem. E voltam a sangrar.
Era o que acontecia com Jia Jiang, um gerente de marketing bem-sucedido que estava longe de chegar aonde queria.
Em um vídeo no TED, ele conta que a rejeição guiou sua vida desde os seis anos de idade. Tudo começou quando estava no primeiro ano e sua professora chamou os alunos à frente na sala de aula. Ela havia comprado presentes para que os pupilos trocassem entre si e falassem palavras amáveis uns para os outros. Mas não previu que Jia e outros dois colegas ficariam por último e não receberiam aplausos dos demais.
Foi uma rejeição tão doída que ele nunca esqueceu, embora tentasse conviver bem com ela.
Anos depois, inspirado por uma palestra do Bill Gates, ele escreveu uma carta para a família dizendo que ia construir a maior empresa do mundo até os 25 anos.
Só aos 30 se deu conta de que vivia uma batalha interna entre o menino de seis anos e o adolescente, e que sua versão criança sempre prevalecia. Por isso, nunca se arriscava. Até que abriu sua empresa e a primeira tentativa de investimento foi recusada.
Pensou em desistir, mas antes resolveu fazer um jogo que encontrou na internet, cuja ideia era se expor a rejeições até deixar de ser sensível à dor. Então inventou formas de ouvir “nãos” durante cem dias.
Para Jia, esse tratamento de choque fez efeito. Ele perdeu o medo de ouvir “nãos” e passou a ver as perguntas como instrumentos poderosos para aproximá-lo de seus sonhos. Descobriu que rejeições não eram o bicho-papão que ele pensava e não se deixou mais derrubar por elas, porque as encarava como parte do caminho.
Sem desistir das perguntas, os “sins” passaram a chover em sua vida. Ele se lembrou do que a avó lhe dizia: “Jia, você pode fazer o que quiser. Mas seria ótimo se fosse professor”. E realizou o desejo antigo de dar uma aula numa universidade norte-americana. Saiu de lá chorando de emoção, convicto de que podia fazer tudo o que quisesse.
Agimos certo quando enfrentamos as rejeições em vez de evitá-las, com fez Jia. Mas, quando algo muito importante está em jogo, não é tão simples assim.
“Ninguém vai em busca de um desejo para ter um ‘não’, pois ele sempre gera uma decepção, uma experiência emocional desagradável”, afirma Leila Tardivo, professora de psicologia da Universidade de São Paulo.
Para aliviar esse mal-estar, precisamos lembrar que querer nem sempre é poder, principalmente quando o que almejamos não depende só de nós. Especialmente no momento atual, onde muitos sonhos precisaram ser adiados ou reavaliados. E, assim como fazemos de tudo por um sonho, devemos ter o mesmo empenho em cuidar da gente se porventura ele morrer.
Quando perdemos algo que queremos muito, é difícil acreditar que existe uma vida feliz do outro lado da ponte. Débora passou três anos sem enxergar a possibilidade de um recomeço. Pegava qualquer trabalho que caísse no seu colo e, aos olhos de todos, parecia conformada.
Mas não sentia a mesma alegria de quando se imaginava cuidando de cavalos. Para piorar, descobriu que estava com artrite reumatoide e mal saía da cama por causa das dores. Como não tinha condições de trabalhar fora de casa, lembrou-se da época em que fazia chocolates para vender na escola. Foi quando sua paixão quase esquecida pela confeitaria ressurgiu com força.
Sem perder tempo, Débora fez cursos de bolos e doces, técnica de alimentos e especialização nos Estados Unidos. Então se apresentou para os amigos como confeiteira, fez parcerias com lojas de festas e literalmente colocou a mão na massa. A vida em meio aos ingredientes que ganhavam formas, cores e sabores começou a ter um novo sentido para a moça que sonhava viver entre os cavalos.
Ela não caminha pelo chão de grama ou de terra de hípicas e haras nem desfruta da paisagem a bordo dos animais que tanto ama. Mas se realiza ao sentir o aroma tomando conta da cozinha, ver os bolos saindo do forno e saber que eles vão fazer parte de momentos felizes.
Fazer de um “não” um “sim” dá trabalho, mas é possível. Mesmo quando não recuperamos o que um dia fez o nosso coração palpitar de felicidade, temos condições de abrir um novo caminho que pode ser cheio de coisas boas, como aconteceu com Débora.
Mesmo que levemos tempo para nos reerguer depois de períodos difíceis, algo novo pode acontecer. “Quando a gente ouve um ‘não’ e, apesar de nos abatermos, aprendemos sobre nós, ele vira um ‘sim’”, garante Leila. Vale lembrar-se de não colocar o nosso valor nos julgamentos dos outros, e nem pensar que o Universo está contra seus projetos porque agora tudo mudou.
Essa é uma tarefa delicada num tempo em que vivemos mergulhados na vida virtual, onde tudo é superlativo, inclusive os “nãos”. Eles estão nos comentários deselegantes, nas críticas gratuitas, na ausência de curtidas ou num silêncio absoluto quando tudo o que queremos é ler ou escutar elogios.
Quando a ferida causada por esses “nãos” é profunda, nem sempre conseguimos tratá-la sozinhos. “É importante construir uma rede de apoio que nos garanta essa validação e que nos permita superar os diferentes ‘nãos’ que a vida vai nos oferecer”, pontua Angelo Brandelli Costa, professor de psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Com a ajuda das pessoas que nos amam e um amor-próprio sólido, é possível construir uma autoimagem forte, que não se deixa abalar pelas rejeições que acontecem na vida virtual e real, e ao mesmo tempo ganhar resiliência para superar os tempos difíceis do mundo. Quando somos resilientes, mudamos o que é preciso e aceitamos o que não podemos modificar de uma forma mais tranquila, sem sentir uma pontada de dor ao constatarmos que as coisas nem sempre acontecem como queremos.
O problema é que, quando o chão parece desaparecer, temos o impulso de nos fechar dentro de nós mesmos feito ostras. “Quanto mais difícil for expressar às pessoas que nos cercam as nossas experiências de perda, saudade e a sensação de estar perdido, mais solitários e desconectados nos sentimos”, observa Brené Brown, pesquisadora da Universidade de Houston e autora do livro Mais forte do que nunca (Sextante).
Para sair desse lugar de sofrimento, é importante não negar o que aconteceu, viver o luto pelo que foi perdido e aceitar a realidade como ela é, mesmo que a dor esteja apertando a sua alma – e a de muita gente. Ver o lado positivo de um não pode parecer tão difícil quanto encontrar um tesouro no fim de um arco-íris, mas vale a pena procurar.
“O ‘não’ pode ser bom porque nos faz movimentar. Muitas vezes é um desafio, mas a vida oferece oportunidades e precisamos estar atentos a elas”, enfatiza Leila. Situações assim nos forçam a abrir o campo de visão para procurar janelas em vez de olhar sempre a mesma porta. Mas o maior benefício de um “não” é que, quando ele passa pelas nossas vidas, sempre deixa uma lição valiosa. Talvez a maior delas seja nos fazer andar em sintonia com a realidade.
É exatamente a inexistência de um elo entre os nossos desejos e a realidade que nos faz levar tombos tão grandes. “É comum as expectativas ficarem fora do alcance do nosso radar, só se dando a conhecer depois de bombardearem e deixarem em escombros nossas esperanças”, diz Brené.
Os “nãos” também trazem como aprendizado a percepção dos nossos erros para que não voltemos a cometê-los no futuro, além de mostrar que o nosso esforço pode estar aquém do que queremos ter ou manter na vida.
Mesmo sendo indesejado, ele nos faz crescer de uma maneira que talvez o “sim” não consiga. Leva-nos a refletir, por exemplo, que não nos saímos bem apenas naquele momento. Ou que aquele “sim” que desejamos tão ardentemente também é o sonho de outras pessoas, que batalham por ele tanto quanto nós. E que muitas vezes será dito somente para uma.
“Provavelmente quem conseguiu aquela vaga que tanto queríamos já recebeu diversos “nãos” na vida. Ou nasceu e cresceu em um contexto privilegiado que supriu todas as demandas que ainda precisamos suprir”, analisa Angelo. Esse exercício de empatia torna os “nãos” menos traumáticos. E só temos a ganhar quando não teimamos em achar que a vida tem de ser uma linha reta, onde tudo vai dando certo e só avançamos para frente. Não devemos desprezar as curvas e as pausas. Há sempre o recomeço. Uma situação difícil também pode nos levar a vínculos mais fortes e profundos, já que ela apaga as nossas expectativas irreais.
Com os pés bem apoiados na realidade, estamos prontos para descobrir novas versões de nós mesmos, que nem imaginávamos existir. Quando olha para trás, Débora se lembra de um provérbio que ouviu uma vez: “Tentaram me enterrar, mas não sabiam que eu era uma semente”. A confeiteira não descarta a ideia de um dia fazer faculdade de medicina veterinária. Se isso não acontecer, tudo bem. Ela já floresceu.
Esta reportagem foi originalmente publicada na revista Vida Simples. https://vidasimples.co/
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