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Ouça seu coração
Reportagem Seriada

Ouça seu coração

Quanto mais nos aproximamos de nós mesmos e de nossa verdadeira essência, mais capazes nos tornamos de perceber a voz da intuição.
Episódio 3

Ouça seu coração

Quanto mais nos aproximamos de nós mesmos e de nossa verdadeira essência, mais capazes nos tornamos de perceber a voz da intuição.
Episódio 3
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Minha avó tinha um caderno de receitas, no qual ela anotava quase tudo. Tinha datas da troca do gás de cozinha, lista de compras para o mercado, pequenos trechos de orações ou canções religiosas e, entre uma coisa ou outra, alguns ingredientes eram escritos abaixo de títulos como “bolo da Maria” ou “biscoito
torradinho da Joana”. Era assim: se a gente pegasse aquelas receitas para reproduzir em casa, poucas seriam nossas chances de atingir o mesmo sabor dos quitutes que saíam da cozinha dela.

Quando eu perguntava qual segredo ela tinha nas mãos e não havia nas de mais ninguém, ela às vezes dizia: “Não tem muita coisa. Eu vou colocando tudo como sinto que deve ser”. E isso se repetia por muitas
vezes e em outras situações também. Como quando a gente adoecia e ela parecia saber a forma correta de tratar cada problema.

Vida Simples - Escute o seu coração(Foto: ma_rish/gettyimages)
Foto: ma_rish/gettyimages Vida Simples - Escute o seu coração

Eu achava aquilo bonito. E até então eu não sabia, mas, no fundo, minha avó estava me ensinando um pouco sobre intuição, sobre saber como as coisas precisam ser porque, além da experiência em desempenhar tantas vezes uma mesma função, ela também colocava a sabedoria de seu coração em tudo o que fazia.

O psiquiatra Carl Jung já dizia sobre cada um de nós ter “a sabedoria e o conhecimento que necessita em seu próprio interior”. E a isso chamava de conhecimento intuitivo ou, em forma mais simplificada, a possibilidade que temos de conduzir nossos próprios caminhos ouvindo os chamados de uma espécie de voz interna – sempre atenta em sua forma de guiar nossas ações e apontar direções melhores. Das coisas mais simples, como os preparos na cozinha de minha avó, até as decisões mais difíceis e importantes de nossa vida, a intuição funciona como uma bússola, pronta para orientar nossos movimentos quando
nos colocamos abertos e dispostos a ouvi-la.

"Uma forma que acho interessante de olhar para ela é utilizando a palavra insight, que quer dizer clareza mental, um jeito de trazer mais luz às nossas vivências." Henrique Lemes, antropólogo e praticante budista

Dizendo assim, pode até parecer meio complicado e abstrato ouvir essa voz. Afinal de contas, quantas vezes já escutamos a frase “ouça seu coração” e ficamos meio sem saber se ele queria mesmo nos dizer algo ou se era uma invenção dos nossos sentimentos? Comigo já aconteceu inúmeras vezes. Mas, no geral, essa voz de dentro sempre tem, sim, algo significativo a nos contar.

O antropólogo e praticante budista Henrique Lemes me deu um nome bem simples para nos ajudar a compreender melhor essa presença da intuição em nosso cotidiano. “Uma forma que acho interessante de olhar para ela é utilizando a palavra insight, que quer dizer clareza mental, um jeito de trazer mais luz às nossas vivências”, observa. 

Muitos de nós tendem a achar que intuição é algo meio místico e sem fundamento. Mas Henrique me disse que o processo intuitivo é uma qualidade da nossa mente de perceber a si mesma, nos convidando a sair do piloto automático no qual nos colocamos tantas vezes e a prestar mais atenção aos sinais enviados por ela.

"Precisamos abrir espaço para receber esses sinais e acomodá-los em nossa vida. Quando conseguimos isso, atingimos um brilho tão leve, tão interessante, que começa a inundar a nossa vida e a clarear tudo." Henrique Lemes

Assim, esse estado de alerta é praticamente a mesma coisa de abrirmos um pouco mais de espaço em nossa vida para a escuta da intuição, dando mais chances a ela de usar sua voz e se fazer ouvir além dos
nossos desejos. “Precisamos abrir espaço para receber esses sinais e acomodá-los em nossa vida. Quando conseguimos isso, atingimos um brilho tão leve, tão interessante, que começa a inundar a nossa vida e a clarear tudo”, explicou Henrique.

 

Atentos aos sinais da intuição 


Esses sinais enviados pela mente nem sempre são grandiosos ou extraordinários. Eles podem ser pequenos, como um sentimento nos levando por uma ou outra rua quando estamos caminhando. E nem
sempre são confortáveis: às vezes poderia ser mais fácil seguir por outro rumo, mas uma voz insiste em apontar outra direção.

Você já deve ter sentido em algum momento: não sabemos bem o porquê, mas uma força maior parece nos chamar para escolha. Sentimos o coração mais acelerado, um frio na barriga, um sopro sutil em nossa mente, nos direcionando para outro lugar. E, quando ouvimos e atendemos a esses sinais, parecemos seguir mais em paz. Como se, independentemente do resultado, a escolha fosse a assertada porque vinha de um lugar interno e muito sincero.

Vida Simples - Escute o seu coração(Foto: ma_rish/gettyimages)
Foto: ma_rish/gettyimages Vida Simples - Escute o seu coração

“Uma das grandes dificuldades que a gente tem é de reconhecer que as coisas se comunicam o tempo todo e entre si. Nosso coração e nossa mente conversam o tempo todo. E, quando estamos abertos, os sinais chegam para nós de uma forma mais clara”, pontuou Henrique. E a intuição está disponível para todos nós. Mas perceber esses sinais depende muito da nossa sensibilidade e intenção em enxergá-los em suas sutilezas. Só que, às vezes, estamos tão apressados, convictos dentro dos nossos desejos, que não percebemos quando, de fato, é a intuição soprando em nossos ouvidos.

Em outras palavras, estamos tão viciados em nossas próprias vontades, querendo tanto a realização de determinada coisa, que sequer enxergamos quando aquilo não cabe em nós. Insistimos sem criar um canal de abertura ao que pode se apresentar quando nos colocamos disponíveis. Henrique exemplificou que muitas vezes fazemos uma pergunta ao Universo, mas já temos a resposta que desejamos ouvir. E, então,
quando o que chega não é o que esperamos, sentimos raiva e frustração.

Assumir uma atitude de negação, segundo o antropólogo, atrapalha o fluxo natural do processo intuitivo e tudo fica ainda mais confuso. E também não dá para exigir pressa para desenvolver a intuição. Precisamos
lembrar que quanto mais forçamos a audição para essa voz interna, mais distante ela fica de se tornar algo realmente presente e genuíno em nossa vida.

Vida Simples - Escute o seu coração(Foto: ma_rish/gettyimages)
Foto: ma_rish/gettyimages Vida Simples - Escute o seu coração

Cultivar a percepção e criar uma relação mais aberta com nós mesmos e com o todo ao nosso redor são caminhos possíveis ra apurar melhor a nossa escuta interna e perceber seus sinais. Sabe aqueles instantes de silêncio, quando só nossos pensamentos têm voz ativa? Ou quando estamos meditando, concentrados em uma canção, ou simplesmente voltados para nós mesmos, sem interferências?

"Quem muda para escutar a intuição somos nós. Porque ela também é autoconhecimento. Quanto mais você se conhece, mais consegue ouvir e compreender." Fernanda Uchôa, terapeuta e instrutora de thetahealing

Só conseguimos trazer essa escuta apurada para a realidade do nosso dia a dia quando nos permitimos sentir e quando nos damos esses pequenos instantes de presença – essa chance de olhar para nós, de nos conhecer e respeitar cada um de nossos processos. “Quem muda para escutar a intuição somos nós. Porque ela também é autoconhecimento. Quanto mais você se conhece, mais consegue ouvir e compreender”, disse a terapeuta e instrutora de thetahealing Fernanda Lisbôa.


Um exercício de autocompaixão 


Assim, quanto mais nos aproximamos da nossa verdadeira essência, mais próximos nos tornamos também das verdades do nosso coração, abrindo um espaço amplo para a intuição conviver em harmonia com os nossos sentidos. “Praticar a autocompaixão pode ser um ótimo exercício também. Porque se perceber sem se julgar tanto já é uma forma nova de percepção. Quando nos olhamos sem buscar defeitos, fica mais possível encontrar novos caminhos”, completou Fernanda.

Vida Simples - Escute o seu coração(Foto: ma_rish/gettyimages)
Foto: ma_rish/gettyimages Vida Simples - Escute o seu coração

Essa prática de autocompaixão passeia por simplicidades que a gente já conhece, mas às vezes não se dá conta. Para a pesquisadora Kristin Neff, desenvolvemos essa virtude quando nos tratamos com a mesma gentileza, cuidado, suporte e compreensão com que tratamos quem amamos durante um momento de dificuldade. Parece ser mais fácil acolher quando os problemas ou reações não são os nossos, né?

"Acredito que a melhor forma de manter a nossa voz interna ativa é lembrar que, de uma maneira ampla, não existe a separação entre o mundo interno e o externo. Um depende do outro para existir." Fernanda Uchôa

Mas a Fernanda me contou também como esse entendimento é necessário, pois quanto maior é a nossa capacidade de nos fortalecer internamente, melhor vai ser nossa participação no mundo externo. “Acredito
que a melhor forma de manter a nossa voz interna ativa é lembrar que, de uma maneira ampla, não existe a separação entre o mundo interno e o externo. Um depende do outro para existir”, explicou. E isso se
estende para vários campos de nossa vida.

"Quem muda para escutar a intuição somos nós. Porque ela também é autoconhecimento. Quanto mais você se conhece, mais consegue ouvir e compreender." Karla Lopes, criadora da Lunnare Co

Mantendo esse olhar generoso disponível para nós, somos capazes de realizar coisas maravilhosas em par com nossa intuição e em comum acordo com o propósito da nossa existência. Confiar que a intuição é uma voz para nos ajudar a viver em maior harmonia conosco também facilita.

Com a Karla Lopes aconteceu desse jeito. Ela é comunicadora de processos holísticos e criadora da Lunnare Co, uma marca delicada, nascida com a intenção de trazer um pouco da magia das ervas para o nosso dia
a dia, estimulando o autocuidado. A maioria dos processos de criação da Karla são completamente intuitivos.

Para ela, a voz interna também vem justamente dessa capacidade nossa de nos conhecer e nos perceber com gentileza. “Quem muda para escutar a intuição somos nós. Porque ela também é autoconhecimento. Quanto mais você se conhece, mais consegue ouvir e compreender”, reforçou. A Lunnare Co ganhou vida a partir de uma necessidade de reconexão, um resgate ancestral entre a Karla e suas raízes.

“Eu não estava muito bem e então busquei me reconectar com os saberes que vêm da minha avó. Quando eu era criança, a gente fazia muita coisa junta, utilizando as ervas e esses processos espirituais”, explicou Karla. Nesse trajeto, a intuição foi fundamental, funcionando como um guia para a Karla se reencontrar em seu próprio caminho.

Vida Simples - Escute o seu coração(Foto: ma_rish/gettyimages)
Foto: ma_rish/gettyimages Vida Simples - Escute o seu coração

Segundo ela, todos os processos envolvendo a Lunnare Co carregam uma sabedoria vinda do coração e da alma, em um encontro emocional de cura para ela mesma. “Eu trabalho muito o meu lado espiritual, então isso fortalece a minha intuição, a minha conexão com o Universo, com o que eu vivo, com o que eu estou fazendo aqui como um todo”, contou.

Só então, a partir dessa relação mais estreita consigo mesma, é que a Karla conseguiu materializar sua sabedoria e estendê-la a outras pessoas por meio de seus produtos e de suas vivências. “É mais fácil se ouvir quando você se entende, quando se conhece, quando percebe quais são os seus limites, onde você quer estar ou não, o que quer fazer ou não”, complementa.


Qual a sua voz?


Assim como aconteceu com a Karla, todo esse processo de reconhecimento da nossa voz interna leva tempo. Podemos apurar nosso conhecimento, resgatar nossa sensibilidade, nos dar pequenas pausas de silêncio durante o dia, manter uma conexão com a nossa verdade e o nosso propósito, mas também é importante nos lembrar de respeitar o tempo de cada coisa.

Desse jeito, todos os caminhos possíveis podem auxiliar muito nessa comunicação se nos mantivermos atentos e abertos à escuta. Segundo Henrique Lemes, encontramos dificuldades nessa conexão interna justamente porque não estamos acostumados a conviver com um estado de contemplação do silêncio e da vida em si. Já reparou como o tempo todo estamos nos ocupando com tarefas, não permitindo espaço para o não fazer nada? “Isso não faz parte da nossa cultura de forma natural”, explicou.

Vida Simples - Escute o seu coração(Foto: ma_rish/gettyimages)
Foto: ma_rish/gettyimages Vida Simples - Escute o seu coração

E daí vem a nossa necessidade de apressar tudo, de estar presente em todos os lugares e esquecer de ser presença em nós mesmos. “A gente vai assar um pão e tem que seguir a receita correta, tem que esperar o tempo certo ou ele vai ficar cru por dentro, ou não vai crescer. Não adianta querer adiantar o processo. Essas coisas também têm o seu tempo. A gente vai gestando, encontrando o caminho delas em nós”, lembra Henrique.

Para encontrar essa voz que já nos habita, vamos aprendendo aos poucos a exercer nossa paciência, fazer as pazes com o tempo e com nosso próprio coração, prestar mais atenção em nossas emoções e em seus significados como parte de nossa trajetória. Quando se sentir confortável dentro de nós, essa voz interna então encontrará suas formas de se manifestar e nos apontar os melhores caminhos.

"Para mim, intuição é a voz mais pura, mais sincera que a gente pode ter dentro de nós mesmos. É uma forma de a nossa alma se comunicar com a gente, de a gente entender o que o nosso corpo e nosso espírito querem nos dizer." Karla Lopes

“Para mim, intuição é a voz mais pura, mais sincera que a gente pode ter dentro de nós mesmos. É uma forma de a nossa alma se comunicar com a gente, de a gente entender o que o nosso corpo e nosso espírito querem nos dizer, o que eles querem que a gente faça. É uma maneira muito serena e muito eficiente de você conseguir se ouvir”, finalizou Karla Lopes.

Não há uma separação entre nossos sentimentos e nossa voz de dentro. Mas quanto mais cuidamos de nós mesmos, de nosso caminho e de nossas relações, mais espaço a intuição vai encontrando para se apresentar. Escutar a voz do nosso coração é uma estrada cheia de curvas, mas, uma vez percorrida, temos a chance de vê-lo refletido em cada uma de nossas ações. E o mais importante: quando a intuição chegar, receba-a como sua grande e sábia amiga.

Esta reportagem foi publicada originalmente na revista Vida Simpleshttps://vidasimples.co/

 


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