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A vida não é uma competição
Reportagem Seriada

A vida não é uma competição

Quando não nos obrigamos a ganhar sempre nem a ser o destaque em qualquer situação, nos sentimos livres para ser quem somos
Episódio 2

A vida não é uma competição

Quando não nos obrigamos a ganhar sempre nem a ser o destaque em qualquer situação, nos sentimos livres para ser quem somos
Episódio 2
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Daiane Brito entrou no avião com a fome de aventura dos viajantes e o coração mal cabendo no peito de alegria por realizar um sonho. Em algumas horas estaria em Londres, onde passaria seis meses. Não tinha sido fácil chegar até ali. Além de roupas, sapatos e outros pertences guardados na mala, ela carregava a bagagem da vida, apinhada de histórias como a do pai e a da mãe, que passaram por muitas dificuldades ao longo dos anos.

Antes da viagem, Daiane tinha feito uma promessa a si mesma: se destacaria em tudo o que colocasse a mão. Esse era o único jeito de deixar para trás a vida difícil na periferia na zona leste de São Paulo. De tanto se dedicar aos estudos e ser próxima dos professores, seu boletim escolar era recheado de notas A, o que também lhe custou amizades; aos olhos de alguns colegas, ela era a chata e metida a inteligente. Mas ela não ligava. Estava convicta de que só assim seria possível tirar da gaveta o sonho de ser jornalista.

A vida não pode ser moldada por pódiuns rotineiros com exigência de estar sempre em primeiro lugar (Foto: anika huizinga/unsplash)
Foto: anika huizinga/unsplash A vida não pode ser moldada por pódiuns rotineiros com exigência de estar sempre em primeiro lugar

Guiada pelo seu objetivo maior, ainda adolescente, Daiane foi considerada a melhor vendedora de uma loja de departamentos em todo o Brasil, porque batia a meta todos os dias. Tinha horário para chegar, mas nunca para ir embora. E manteve esse ritmo puxado na época da faculdade, quando não dormia mais do que quatro horas por noite. Depois, com seu excelente desempenho acadêmico, conseguiu um bom emprego, mas a promoção para o cargo de editora nunca chegava. Um dia ela perdeu a paciência, pediu demissão e, com o dinheiro da rescisão, foi para Londres.

Como havia imaginado enquanto sonhava acordada no voo de ida, aquela foi a melhor fase da sua vida. Aproveitou cada segundo e, assim que colocou os pés no Brasil, teve uma surpresa. Estava grávida de um britânico com quem teve um breve relacionamento. Foi essa experiência inesperada que fez a jornalista, então com 28 anos, parar de viver uma disputa consigo mesma para ser sempre a melhor. “A maternidade me ajudou em relação a essa cobrança para alcançar objetivos”, lembra.

Ela não é a única a encarar a existência como uma eterna competição. Muitos de nós enxergamos um pódio em cada situação da vida e só nos contentamos quando conquistamos o primeiro lugar. É como se tivéssemos pela frente uma estrada moldada por competições infinitas, e em cada pedacinho dela houvesse algo a ganhar e perder.

 

 

No livro No Contest: The case against competition (Sem disputa: o caso contra a competição, em tradução livre, sem edição em português), Alfie Kohn, especialista em comportamento humano, diz que enchemos nossas cabeças de pensamentos sobre como superarmos os outros ou nós mesmos do momento em que nos levantamos da cama até a hora de dormir. E prêmio oculto em troca desse desempenho todo é, no fundo, afeto.

  

O que aprendemos na infância sobre ser aceitos e amados

 

Essa busca começa em casa. Desde muito cedo, queremos que os nossos pais sintam orgulho da gente. Acreditamos que só assim seremos merecedores do amor deles. É nesse momento que a competição nasce em nós. “A criança, quando pequena, quer ser a criança que imagina que os pais idealizam para ser amada. Isso depois se transfere para os professores, amigos, ambiente de trabalho e sociedade em geral”, explica o psicanalista Ronaldo Coelho.

Na infância, a criança imagina que os pais devem sentir orgulha dela para merecer ser amada(Foto: jakob owens/unsplash)
Foto: jakob owens/unsplash Na infância, a criança imagina que os pais devem sentir orgulha dela para merecer ser amada

É por isso que não medimos esforços para sermos os melhores filhos, pais, alunos, amigos, funcionários e colegas de empresa. Tratamos o amor e o reconhecimento como se fossem mercadorias escassas, que quem pega primeiro é o dono. E confundimos aprovação com amor, segurança, valorização...

Com o tempo, podemos não medir esforços para atender às expectativas dos pais, professores, amigos(Foto: caroline hernandez/unsplash)
Foto: caroline hernandez/unsplash Com o tempo, podemos não medir esforços para atender às expectativas dos pais, professores, amigos

Damos um jeito de estar à altura das expectativas criadas, mesmo que para isso precisemos nos virar do avesso. Só que, quando comparamos o Eu real – aquele que traduz a nossa essência verdadeira – com o personagem ideal que criamos para impressioná-las, não raro caímos num desapontamento profundo, já que a régua da comparação pode nos passar a impressão de sermos menores do que gostaríamos. É por isso que deixamos o nosso lado competidor tomar conta, enquanto o eu verdadeiro vai ficando cada vez mais distante.

 

 

Com isso, abrimos mão da liberdade de nos mostrarmos como somos a quem quiser ver, com todas as nossas imperfeições, limites e vulnerabilidades. Quando nos despimos das regras e da perfeição que vestimos para agradar os outros, ficamos inseguros como se estivéssemos circulando por territórios desconhecidos.

Mas a capacidade de se sentir bem sendo autêntico e lidar com as consequências dessa escolha deve começar a ser lapidada na infância. “Quando a criança é muito protegida das frustrações, ela não desenvolve ‘musculatura’ para aguentar o peso da idade adulta”, enfatiza Ronaldo. Se não aceitamos não ser bom o bastante perante os olhos dos outros, passamos a emendar uma competição na outra.

Excesso de proteção causa fragilidade na musculatura das emoções(Foto: bruno nascimento/unsplash)
Foto: bruno nascimento/unsplash Excesso de proteção causa fragilidade na musculatura das emoções

Em seu livro A Arte da Imperfeição (Sextante), a pesquisadora Brené Brown diz que nos colocarmos numa fôrma de perfeição para agradar os outros não tem nada a ver com fazer o nosso melhor. “O perfeccionismo é um escudo de 20 toneladas que arrastamos conosco, pensando que nos protegerá, quando, na verdade, é o que realmente nos impede de alçar voo.”

O melhor jeito de se desprender das amarras do perfeccionismo é jogar fora o hábito de se comparar com os outros. “Sem comparação, conceitos como à frente ou atrás e melhor ou pior perdem o significado”, frisa Brené. Quando nos voltamos para nós mesmos, somos brindados com uma dose generosa de criatividade, originalidade e inspiração.

 

 

Abandone a obrigação de ganhar sempre a qualquer custo

 

Disputas são importantes no lugar, situação e hora certa. Elas nos ajudam a lembrar que a vida tem seus desafios e que muito pode ser conquistado com dedicação. Porém, quando queremos ser os melhores em tudo, nos prendemos na armadilha da avaliação permanente, e como resultado estamos sempre nos sentindo para baixo. E não é só isso. Quando nos sentimos testados o tempo todo, temos a sensação de que estamos em perigo constante.

E não há saúde que resista a uma tensão contínua, sem espaços de relaxamento para nos recuperarmos dela. Alfie diz que isso é difícil porque não somos competitivos apenas quando tocamos as nossas tarefas do dia a dia, mas também nos momentos de descanso.

Vencer e deixar todos os demais para trás nem sempre é o melhor a fazer e pode causar muita frustração(Foto: jordan scott/unsplash)
Foto: jordan scott/unsplash Vencer e deixar todos os demais para trás nem sempre é o melhor a fazer e pode causar muita frustração

Outro grande erro que cometemos, segundo ele, é querermos extrair amor-próprio das disputas. “Se a autoestima de alguém depende do resultado incerto de uma competição, isso significa que ela é condicional. Na melhor das hipóteses, a pessoa se sente tranquila e conformada apenas algumas vezes”, analisa. Quando isso acontece, talvez seja o momento de olhar o sentido oposto da estrada da competição.

 

 

Nele encontramos a cooperação, que pode nos oferecer uma gratificação igual ou maior do que ocupar o lugar mais alto do pódio. Foi esse sentimento que a corredora neozelandesa Nikki Hamblin experimentou nas Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro. No meio da prova dos 5 mil metros, ela tropeçou e acabou derrubando a norte-americana Abbey D’Agostino. As duas foram parar no chão e Abbey torceu o tornozelo. Nikki a ajudou a se levantar duas vezes. Depois que a norte-americana conseguiu cruzar a linha de chegada, as duas se olharam com um sorriso e deram um abraço que emocionou o estádio.

Cooperar é abrir mão de ser o número um e “dividir” o troféu em muitas partes. É confiar que a vitória nasce a partir do esforço coletivo – e se sentir feliz com isso. É nadar junto, mesmo se há risco de afundar.

Sabe aquela ideia de subir até chegar ao topo? Pode parecer frustrante, mas essa imagem tão clara na nossa mente não passa de uma ilusão. “A vida não tem um ponto de chegada. Para que continuemos vivos, temos de continuar caminhando. Quem vive a vida pensando que o sentido é a chegada deixa de realmente vivê-la”, enfatiza o psicanalista. Por isso, em vez de correr até faltar pernas e fôlego, o melhor a fazer é se concentrar nas surpresas do percurso.

 

 

Outra decisão sábia é deixar de lado a ambição de querer ser excepcional em várias coisas para ser reconhecido. No lugar disso, podemos separar o tempo em porções e usá-lo para o que de fato tem um potencial de nos trazer alegria e realizações, como trabalho, estudos, família e amigos. No mais, vale adotar o clichê “nem sempre é possível vencer” como se fosse um livro de cabeceira. Aos poucos, começa a funcionar.

Cooperar pode ser a melhor forma de vencer e levar muitos outros consigo (Foto: pxhere)
Foto: pxhere Cooperar pode ser a melhor forma de vencer e levar muitos outros consigo

A viagem de Daiane para Londres deu a ela não só a filha, mas também leveza para não exigir tanto de si mesma. Mais voltada às pessoas que a cercam, a atual coordenadora de comunicação de uma escola ajuda e se permite ser ajudada. Com isso, desfruta de relações mais fortes. E valoriza mais o tempo. “Hoje eu percebo que a hora-trabalho não é só uma hora-trabalho. É uma hora-vida. Estou dando horas de vida para o meu trabalho. Então eu busco alinhar os meus valores à necessidade de ter um trabalho que sirva à sociedade de alguma forma”, reflete. Daiane não precisou chegar ao topo para encontrar o que procurava.

 

Entrevista

Encare seus próprios valores e expectativas

Saber o que é preciso melhorar não é o mesmo que saber como melhorar. Às vezes, faz falta uma orientação de como analisar os problemas e quais caminhos seguir para ter uma vida mais saudável com as demandas cotidianas. Em entrevista para O POVO, a psicóloga Brenda Magalhães explica como encarar o perfeccionismo, as demandas externas e como lidar com a competitividade de uma maneira saudável. Confira:

 
Brenda Magalhães é psicóloga e trabalha com psicoterapia para crianças, adolescentes e adultos.(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Brenda Magalhães é psicóloga e trabalha com psicoterapia para crianças, adolescentes e adultos.
 

O POVO - Como lidar com a expectativa do outro?


Brenda Magalhães - As pessoas sempre terão expectativas e julgamentos perante nossos comportamentos, às vezes até mesmo quando não nos comportamos de forma alguma. Então, é necessário lembrar o que é relevante para você: viver uma vida de acordo com os seus valores e expectativas ou de acordo com a expectativa alheia?

OP - Como dar o nosso melhor sem apelar para o perfeccionismo?

Bruna - É importante estarmos sempre em busca de autoconhecimento. Reconhecer as nossas potencialidades e nossos limites é uma forma de lidar com a auto-exigência de uma forma saudável. É importante compreender que, apesar do desejo de oferecer sempre o máximo em todas as atividades, não podemos ser bons em tudo e que nem sempre iremos conseguir dar o nosso melhor. Isso pode nos proporcionar uma sensação de alívio.

"É importante que a pessoa que observa em si traços de perfeccionismo analise quais as consequências destes comportamentos para seu bem estar e qualidade de vida."

 

OP - Qual o principal mito que a sociedade criou sobre o perfeccionismo?

Bruna - Um grande mito sobre o perfeccionismo é que ele é sempre benéfico. Óbvio que pessoas perfeccionistas comportam-se de forma a provocar elogios e sucesso em suas atividades… Mas estes elogios muitas vezes só reforçam e perpetuam este padrão de comportamento. É importante que a pessoa que observa em si traços de perfeccionismo analise quais as consequências destes comportamentos para seu bem estar e qualidade de vida. Se eles, de alguma forma, geram algum tipo de sofrimento, altos níveis de ansiedade ou procrastinação de atividades essenciais, o ideal é que a pessoa procure ajuda especializada, podendo ser um psicólogo clínico ou um psicólogo da rede pública.

"É preciso ter a compreensão de que competitividade e cooperação não são comportamentos antagônicos, ambos são importantes e podem se complementar. "


OP - Como lidar com a competitividade de forma saudável?

Bruna - A competitividade pode estar presente em diversos contextos, como no esporte. Mas, para que este comportamento seja manejado de forma saudável, é preciso sempre analisar o contexto e ter a compreensão de que competitividade e cooperação não são comportamentos antagônicos, ambos são importantes e podem se complementar. Ao mesmo tempo que competimos por algo com outra pessoa, podemos cooperar com ela. (Colaborou Catalina Leite)

 
>> Esta reportagem foi publicada originalmente na revista Vida Simples https://vidasimples.co/
 

  

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