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"Estupro não é uma questão de sexo é uma questão de poder"
Reportagem Seriada

"Estupro não é uma questão de sexo é uma questão de poder"

VERDADES NUAS E CRUAS | Neste episódio, a ginecologista Melânia Amorim alerta para os perigos físicos e psicológicos da gravidez de crianças e adolescentes. Segundo ela, um estudo realizado na AL revela maior possibilidade de morte entre meninas de 10 a 14 anos
Episódio 2

"Estupro não é uma questão de sexo é uma questão de poder"

VERDADES NUAS E CRUAS | Neste episódio, a ginecologista Melânia Amorim alerta para os perigos físicos e psicológicos da gravidez de crianças e adolescentes. Segundo ela, um estudo realizado na AL revela maior possibilidade de morte entre meninas de 10 a 14 anos
Episódio 2
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A ginecologista e obstetra Melânia Amorim, professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), fala sobre os riscos físicos e psicológicos da gravidez de crianças ou adolescentes, principalmente, até os 14 anos. A médica analisa o cenário brasileiro de enfrentamento à violência sexual desses menores e de garantia de direitos das meninas e mulheres que são engravidadas após crime.

Médica Melania Amorim(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Médica Melania Amorim

O POVO - Do ponto de vista fisiológico, quais são os riscos de uma gravidez aos 10 anos de idade?

Melânia Amorim - A gravidez na adolescência está associada ao aumento de risco. Podemos dividir em duas fases: dos 10 aos 14 anos e dos 15 aos 19. A primeira é mais crítica, embora também existam riscos no segundo caso. Apesar de não serem tão frequentes, a gente tem estudos de países pobres de que essas meninas têm aumento de risco de pré-eclampsia, eclampsia, hemorragia pós-parto, complicações no parto, parto obstruído.

Um estudo maior na América Latina, de 2005, mostra risco de morte, nesse subgrupo de 10 a 14 anos, quatro vezes maior do que mulheres com 20 anos aos 34 anos, que é a faixa de referência. A bacia dessas meninas não está completamente formada. O útero não está completamente formado. As pessoas querem que a gente justifique uma coisa tão óbvia, que salta aos olhos. Que uma menina de 10 anos não está preparada para um evento como esse.

Os nossos reguladores de 1940 eram mais humanitários e misericordiosos do que essas pessoas que hoje se organizam para ir as portas dos hospitais e que vão as redes sociais para insultar e ofender

Essa gravidez (faz referência ao caso da menina capixaba de 10 anos que teve o aborto permitido por lei, mas sofreu vários tipos de pressão para não seguir com o direito que tinha) trazia muito mais riscos. O aborto seria muito mais seguro do que uma cesária. Essa interrupção é prevista em lei e é respaldada. Os nossos reguladores de 1940 eram mais humanitários e misericordiosos do que essas pessoas que hoje se organizam para ir as portas dos hospitais e que vão as redes sociais para insultar e ofender.


O POVO - Nesse momento da vida, a menina ainda está em formação também no aspecto psicológico. Como uma gestação, nessa idade, pode afetar o desenvolvimento psíquico?

Melânia Amorim - É uma situação de tortura mental. Uma gravidez em decorrência de estupro para qualquer mulher provoca intenso sofrimento mental. Para uma menina, é o equivalente a uma tortura que pode trazer agravos à saúde mental que podem perdurar por toda a vida. O estupro por si só é um agravo terrível. A gravidez é uma segunda violação. E a terceira violação é o sistema permitir que a gravidez progredisse.

Essa menina gritava. Quando soube do bebê, ficou chocada. Muitas nem menstruavam. Nesses casos de estupro continuado, não chegam a menstruar. Coincide a primeira ovulação com a gravidez. É você pagar para ver no que vai dar em prol de razões equivocadas. Ninguém pensa no sofrimento indizível, na tortura física e psicológica.

 

Uma gravidez em decorrência de estupro para qualquer mulher provoca intenso sofrimento mental. Para uma menina, é o equivalente a uma tortura que pode trazer agravos à saúde mental que podem perdurar por toda a vida


O POVO - Quais as consequências futuras para uma criança dessa idade, vítima de violência sexual, ao levar a gestação adiante?

Melânia Amorim - Em longo prazo, qualquer mulher pode ter dificuldade de estabelecer relações afetivas, ficar arredia, ter problemas ginecológicos como endometriose e dor pélvica crônica, suscetibilidade de depressão, suicídio, insônia, hipersonia. Se sangrar muito, pode precisar de uma histerectomia (retirada do útero).


O POVO - Como a senhora avalia o atual cenário brasileiro no que diz respeito ao enfrentamento à violência sexual e à proteção dessas crianças?

Melânia Amorim - Nós temos vivenciando dois problemas muitos sérios. Já vivemos em uma sociedade machista, patriarcal e misógina na qual a violência contra a mulher é estrutural. As estratégias de enfrentamento, que a gente teve alguns marcos, como a Lei Maria da Penha, estão passando por um retrocesso diante da ascensão ao poder de um governo de extrema direita, com um projeto de poder conservador que combate políticas comprovadamente eficientes.

Uma delas é a educação sexual. Através da educação sexual, a gente pode passar noções como do corpo ser delas. Explicar que ninguém pode tocar sem consentimento. E ter consciência de que o que estão vivendo é abuso. Temos relatos de crianças que contam o abuso na aula de educação sexual. Além de passar informação e acesso a métodos contraceptivos. São formas de neutralizar as discrepâncias de gênero. Muito mais efetiva do que a política do atual desgoverno de pregar abstinência. O que a gente já sabe que não funciona para resolver problema de gestação na adolescência, inclusive, das gestações voluntárias. A gente não vê um plano de enfrentamento.

Violência contra meninas - ILUSTRAÇÃO - Episódio 02(Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Violência contra meninas - ILUSTRAÇÃO - Episódio 02

O POVO - Além da falta de estrutura e investimento na rede de proteção na prevenção do crime e no acompanhamento após o abuso, o tema perpassa questões culturais. Como o machismo ainda influencia nesses casos?

Melânia Amorim - Sem tratar de gênero a gente fica sem combater a violência que é estrutural. A gente tem que falar de gênero e relação de poder entre os sexos. A questão não é castração química. Isso não resolve porque estupro não é uma questão de sexo é uma questão de poder. Os homens se sentem donos dos corpos dessas mulheres e, principalmente, das mulheres mais próximas. Ustra (Brilhante Ustracoronel do Exército, declarado pela Justiça torturador na ditadura) estuprava mulheres colocando ratos nas vaginas delas, não o pênis dele. Não é uma relação sexual.

 

A gente tem que falar de gênero e relação de poder entre os sexos. A questão não é castração química. Isso não resolve porque estupro não é uma questão de sexo é uma questão de poder

A gente passou um longo tempo investindo em criação de serviços de atendimento a mulheres vítimas de violência sexual. Muitos tem agregado em si serviços de aborto legal. Vários desses serviços estão desorganizados porque deixaram de funcionar a contento. Isso coloca em xeque os direitos reprodutivos. Temos normas técnicas tratando dos procedimentos, tudo o que se deve fazer para acolher. Incluindo o acesso ao aborto previsto em lei. Não precisa de autorização judicial nem documento adicional. Não se pune médico por aborto se houver risco de vida à mãe ou se for vítima de aborto. Já é previsto em lei.


O POVO - Em relação à violação de direitos, como você avalia o caso da menina de 10 anos, no Espírito Santo, estuprada seguidamente por um tio durante quatro anos, que engravidou, teve o aborto autorizado e foi hostilizada?

Melânia Amorim - Foram múltiplas violações. Essa criança jamais poderia ter tido sua identidade divulgada e o sigilo sobre nome e endereço quebrados, o hospital para onde estava sendo conduzida. Ela foi exposta assim nas redes sociais. Isso motivou a movimentação na porta do hospital (Cisam em Recife) contra os médicos e chamando a criança de assassina. Ela foi muito violada e isso tem de ser investigado. Não é só uma questão de criminalizar e dar a punição devida para Sara (Giromini, conhecida como Sara Winter), mas saber de onde ela teve essas informações.

No Ceará, 105 meninas de 10 a 14 anos
foram engravidadas em 2020

No Ceará, foram registradas 105 gestações na faixa etária de 10 a 14 anos e um aborto previsto por lei este ano. No ano de 2019, 209 gestações nessa faixa etária solicitada foram notificadas e três abortos realizados. As informações são da Secretaria de Saúde do Ceará (Sesa), com base no Sistema de Informação de Agravos e Notificação (Sinan).

Segundo a pasta, há dois hospitais na rede pública do Ceará, ambos em Fortaleza, que atendem pessoas em situação de violência sexual. São eles: o Hospital Distrital Gonzaga Mota de Messejana, da rede pública municipal, e a Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Mec), da rede pública federal.

Em casos de interrupção da gravidez por anencefalia ou risco à saúde da mãe, informa a Sesa, há ainda dois hospitais da rede pública estadual que atendem a mulheres sob essas condições, que são referências em gestação de alto risco, o Hospital Geral Dr. César Cals e o Hospital Geral de Fortaleza.



De acordo com Ingrid Zanella, vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB/PE), é dever do Estado possibilitar informação sobre a legalidade do procedimento nos casos permitidos. “O aborto legal é permitido no Brasil desde 1940. Não é nenhuma novidade. O Código Penal estabelece duas hipóteses de aborto legal: para salvar a vida da gestante, quando necessário, e o decorrente de estupro, quando manifestada a gestante de interromper a gravidez", aponta.

É importante levar em consideração o entendimento de que a criança é um sujeito de direitos. Como no caso da menina do Espírito Santo, que realizou a interrupção da gravidez no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), em Pernambuco, conforme a sua vontade.

“Não é porque é uma criança que a vontade dela não deva ser levada em consideração. A incapacidade não retira a autonomia da criança como direito de direitos”, destaca o defensor público Adriano Leitinho, titular da 3ª Vara da Infância e Juventude de Fortaleza.

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