A exposição de uma menina de dez anos que foi estuprada desde os seis anos e engravidada por um tio levantou a discussão sobre violência sexual e aborto no Brasil em agosto de 2020. No entanto, esse não é um caso isolado.
No Ceará, de janeiro a julho do mesmo ano, 664 casos de estupro de crianças e adolescentes e até 14 anos foram registrados, conforme a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). Foram 551 vítimas do sexo feminino e 113 do sexo masculino. As meninas respondem por 83% dos casos registrados de estupro.
A história da menina capixaba expõe as falhas do Estado em defender os mais vulneráveis. A rede de proteção é ineficaz no que tange à prevenção contra o crime e à estrutura de apoio e acolhimento da vítimas de abuso sexual.
Apesar do alarde contra a realização do aborto por parte de grupos religiosos — que chegaram a chamar a vítima e a equipe médica envolvida na questão de assassinos —, o caso da menina se enquadra nas duas situações nas quais a interrupção da gravidez é permitida no Brasil desde 1940: gravidez com risco de vida para a mãe e resultado de estupro.
O número de casos de abuso registrado oficialmente é aterrador. No entanto, não condiz com a realidade, ainda mais cruel. De acordo com Itamar Batista Gonçalves, gerente de Advocacy da Childhood Brasil, somente 10% das famílias, de fato, realizam a denúncia.
Mais de 70% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são praticados por pais, padrastos ou outros parentes das vítimas. “Falta uma política de estado que enfrente essa situação e que consiga fazer prevenção. Porque senão a gente vai continuar enxugando gelo. Temos a lacuna da prevenção”, explica. Ele frisa a importância de um plano nacional incluindo a educação sexual levando em conta as faixas etárias em espaços de formação, como a escola, além de unidades de saúde e outros locais onde as crianças frequentam.
Toda criança precisa saber que, além dos seus cuidadores, ninguém pode tocá-la. Um conhecimento construído na perspectiva de autoproteção. Ela deve saber que pode ter um adulto de confiança com quem pode falar.
Outro ponto essencial é a prevenção secundária, com uma rede de profissionais treinados para identificar casos suspeitos, acolher e fazer a denúncia. Essa rede de proteção, em muitas partes do País, é enfraquecida.
“Falta de capacidade em termos de estrutura, recursos humanos, formação atualizada. Temos que aumentar o alcance e a qualidade dos serviços. A gente precisa dar prioridade absoluta e isso deve ser refletido em maior investimento público. Professores, assistentes sociais e agentes de saúde precisam ser capacitados para identificar esses casos”, destaca Luiza Teixeira, especialista em proteção do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil.
A situação de vulnerabilidade se acentua no caso de lares com histórico de violência. “Existe relação entre educação precária dos pais, desemprego, falta de assistência”, relaciona. A proteção também perpassa uma questão cultural, visto que “a sociedade ainda não internalizou os princípios que a legislação determina de que as crianças e adolescentes são sujeitos de direitos”.
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Por vezes, a denúncia de abuso contra crianças e adolescentes pode iniciar uma via crucis na qual, além da violência sexual já sofrida, a vítima sofre a violência institucional. Isso ocorre pela falta de atendimento adequado e concentrado, além da morosidade nos processos das instituições.
A principal falha na rede de proteção à criança e ao adolescente é a falta de concretização do artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): o tratamento como prioridade absoluta.
“A gente não encontra isso na prática. Os procedimentos ainda demoram muito. Não há um atendimento público para atender com qualidade. Falta investimento e orçamento para infância e juventude. Há também ausência de políticas de apoio e proteção à família”, analisa o defensor público Adriano Leitinho, titular da 3ª Vara da Infância e Juventude.
A lei da escuta e do depoimento especializado (Lei nº 13.431/2017) visa evitar a revitimização, que ocorre quando a vítima precisa relatar a violência diversas vezes durante o processo. “Implementa um fluxo integrado de atendimento, pactuando um protocolo único de escuta para ela falar apenas uma vez para um profissional qualificado”, explica Itamar Batista Gonçalves, gerente de Advocacy da Childhood Brasil.
Contudo, a concentração dos serviços como justiça, saúde, assistência social ainda não é realidade na grande maioria dos municípios. Reviver a dor durante esse curso faz com que muitas vítimas desistam no meio do processo. Itamar explica que nos municípios nos quais a lei é aplicada, a responsabilização do crime aumenta de 4%, 6% para 70%, 80%.
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“Na medida em que ela fala diversas vezes, o relato, que é puro, pode se contaminar com as falas de profissionais e da própria família. Contando uma vez, o relato é o mais original possível. Tentar não induzir para que a criança fale sem pré-julgamentos. Dependendo da forma como se pergunta pode induzir. Se for muito pequena, pode se contaminar com a pergunta e modificar o relato dela”, explica Isabelle Nogueira, supervisora do atendimento psicossocial do Programa Rede Aquarela, vinculado à Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci).
Não obstante a necessidade das medidas de isolamento social como forma de frear o contágio da Covid-19, a quarentena representa intensificação de vulnerabilidades. Para a maioria das vítimas de abuso sexual, significa ficar presa em casa com seu algoz. Isso se reflete na redução dos registros do crime.
Entre os meses de janeiro e julho de 2020, foram registrados 664 casos de vítimas de estupro com idade entre zero e 14 anos no Ceará, de acordo com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). No mesmo período de 2019, foram 715 casos, resultando em uma diminuição discreta de 7,1%.
“O isolamento tem sido uma medida importante para manter a disseminação do vírus. Mas, muitas vezes, as vítimas de violência acabam confinadas com seus agressores. Esse período tem trazido muitos desafios com relação à proteção de crianças e adolescentes”, alerta Luiza Teixeira, especialista em proteção do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil.
Com o isolamento, crianças e adolescentes deixaram de circular em ambientes da sociedade, onde se percebe os indícios de que a vítima está sofrendo abuso, aponta Isabelle Nogueira, supervisora do atendimento psicossocial do Programa Rede Aquarela, vinculado à Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci).
“Muitas vezes, a denúncia parte da escola, do vizinho, das unidades de saúde, que tiveram consultas eletivas suspensas. Isso inibe a notificação junto à autoridade policial. A criança está sob poder do agressor. Isso mascarou ainda mais a violência sexual infantojuvenil”, avalia. Segundo a SSPDS, os autos de prisão e apreensão em flagrante nos crimes de estupro e estupro de vulneráveis passaram de 151 casos em 2019 para 96 no ano de 2020, resultando em uma diminuição de 36,4%.
Para denunciar qualquer suspeita de abuso sexual contra crianças e adolescentes em Fortaleza, contate o Plantão Conselho Tutelar pelos números (85) 3238 1828 ou (85) 98970 5479. Ainda, há a possibilidade de contatar o Disque Direitos Humanos 100.
Já para flagrantes, a orientação é contatar a Polícia pelo Disque 190. No atendimento da ocorrência, eles encaminharão as vítimas para a Delegacia de Combate a Exploração da Criança e Adolescente (Dececa). Durante o lockdown em Fortaleza, a circulação para delegacias em casos de urgência e necessidade de atendimento presencial está autorizada.
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Série de reportagens analisa como as relações de poder estão no topo das causas da violência contra meninas no Brasil.