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José Carlos Matos: O teatrólogo que permanece na memória 40 anos depois do Voo 168
Reportagem Seriada

José Carlos Matos: O teatrólogo que permanece na memória 40 anos depois do Voo 168

O teatrólogo cearense José Carlos Matos foi importante figura para o teatro local e se destacou também pela sua luta pela redemocratização do Brasil
Episódio 9

José Carlos Matos: O teatrólogo que permanece na memória 40 anos depois do Voo 168

O teatrólogo cearense José Carlos Matos foi importante figura para o teatro local e se destacou também pela sua luta pela redemocratização do Brasil
Episódio 9
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A vida do José Carlos era o teatro. Era a coisa mais importante da vida dele. Ele estabelecia uma relação muito estreita entre a participação política dele e o teatro. Era uma pessoa absolutamente comprometida com a luta pela redemocratização do Brasil

Ele veio no momento em que foi criada uma instância de organização de políticas públicas para o teatro amador. E nisso ele se fez um líder. Um líder que se transformou em um líder nacional

Quando o Boeing 727, da Vasp, colidiu contra a Serra da Aratanha em junho de 1982, o impacto não foi sentido apenas pelos moradores de Pacatuba que se assustaram com o estrondo do acidente. A partir daquela madrugada de 8 de junho, as rotinas não seriam mais as mesmas não só para quem perdeu seus entes queridos na tragédia do Voo 168, mas para quem admirava e reconhecia a importância dos profissionais que ali estavam.

Empresários alencarinos do setor têxtil que voltavam da Feira Nacional da Indústria Têxtil (Fenit) não foram os únicos no avião. O filósofo e teatrólogo cearense José Carlos Matos também estava lá. Mas seu legado permaneceu e continua reverberando até hoje. As falas de Regina Brandão, sua viúva, e do ator, diretor e dramaturgo Ricardo Guilherme, que abrem esse texto, ajudam a dimensionar um pouco de sua relevância para a arte cearense.

Natural de Russas, José Carlos Matos teve extensa atuação no teatro local. Foi presidente da Federação Estadual de Teatro do Ceará, da Confederação Nacional de Teatro Amador e fundador do Grupo Independente de Teatro Amador (Grita). O teatrólogo também foi colaborador do O POVO.
Além disso, teve participação nos cursos de formação de Arte Dramática da Faculdade de Artes e Arquitetura da UFC e, como principais obras, teve em seu currículo “O Morro do Ouro”, “A Noite do Brasil” e “Fala Favela”.

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“A vida do José Carlos era o teatro. Era a coisa mais importante da vida dele. Ele estabelecia uma relação muito estreita entre a participação política dele e o teatro. Era uma pessoa absolutamente comprometida com a luta pela redemocratização do Brasil. Um ponto que eu falei no documentário é que uma das coisas que eu lamento muito o fato de ele não ter alcançado os anos de redemocratização do País”, afirma Regina Brandão, que participou do primeiro longa-metragem do OP+, intitulado “Voo 168: A Tragédia da Aratanha”.

Ao falar sobre como José Carlos Matos transitava entre sua luta pela redemocratização com suas atividades no teatro, Regina aponta “duas dimensões”: a primeira se daria pela “escolha das peças”, como o desenvolvimento de espetáculos em áreas periféricas de Fortaleza, abordando “exatamente as condições de vida dessas pessoas”, e a outra dimensão seria sua participação em organizações artísticas, como quando foi presidente da Federação Estadual de Teatro do Ceará.

A percepção de quem trabalhava com José Carlos Matos e de quem comparecia aos seus espetáculos era que havia uma “relação de troca muito grande”, como afirma Regina. “O Grita era um grupo muito grande. Nós íamos para uma favela, instalávamos o espetáculo de manhã e ele aconteceria à noite, ficávamos divulgando às vezes com carro de som e cortejos de atores, então era um dia inteiro que se passava naquele lugar. Era uma relação de troca muito grande. Não era apenas uma proposta teatral, mas uma proposta política”, relata.

O teatrólogo cearense José Carlos Matos foi importante figura para o teatro cearense e se destacou também pela sua luta pela redemocratização do Brasil(Foto: Nirton Venancio/Teatro Universitário/Divulgação)
Foto: Nirton Venancio/Teatro Universitário/Divulgação O teatrólogo cearense José Carlos Matos foi importante figura para o teatro cearense e se destacou também pela sua luta pela redemocratização do Brasil

Como visto, não dá para falar sobre a trajetória de José Carlos sem mencionar o impacto da ditadura militar em sua vida - algo que foi transmitido, inevitavelmente, para a sua produção. “A nossa luta contra a censura é algo permanente. Os censores já olhavam com má vontade quando viam que o espetáculo era dirigido pelo José Carlos. Uma vez fizemos um espetáculo que tinha uma história de policiais que destruíam o reino e eles estavam vestidos de verde oliva. A censura proibiu. Nós tivemos que colocar as fardas pretas. Eu lembro que depois conseguimos a liberação e depois de muita luta apresentamos a peça no Theatro José de Alencar. O teatro estava lotado só para comemorar o fato de ter sido aprovado. Então, a luta contra a censura era uma coisa permanente entre nós”, comenta Regina.

O uso do termo “nós” demonstra nas respostas de Regina a parceria que havia entre ela e José Carlos, além de registrar suas contribuições para os trabalhos do Grita, principalmente na parte da produção na periferia. Para ela, o legado deixado pelo teatrólogo para a arte teatral no Ceará passa também pelas suas contribuições no teatro como plataforma para mobilização política.

“Ele era uma liderança. Era uma pessoa que dava esse exemplo de levar o teatro como uma ferramenta política importante. Para mim, acho que esse foi o maior legado dele, e ele fazia isso com trabalho de formação de plateia e de atores, dentro das organizações teatrais. Ele fazia um trabalho de agregar pessoas”, comenta.

“A minha relação com ele foi sempre de amizade, de parceria, de sintonia e de cumplicidade. Eu fui convidado por ele para ser vice-presidente da chapa em que ele era presidente na Federação Estadual de Teatro. Trabalhamos juntos e realizamos seminários, propostas de políticas públicas, entramos juntos na reformulação do curso de Arte Dramática”, comenta Ricardo Guilherme, que também deu depoimentos ao documentário sobre o voo 168.

Ele acrescenta: “A visão do José Carlos sempre foi uma visão de esquerda, um viés de entender a cultura brasileira pelas suas revoluções populares, pelas suas desigualdades sociais, pela opressão do capital e a perspectiva de políticas que tivessem uma compreensão mais voltada ao bem social”.

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Para Ricardo, as obras mais importantes de José Carlos Matos como diretor passam pelo “Romance do Pavão Mysterioso”, no qual codirigiu com Marcelo Costa, “Calígula”, “Morte e Vida Severina” e “O Evangelho Segundo Zebedeu” - primeiro e único trabalho de José Carlos Matos do qual Ricardo Guilherme participou.

Ricardo aponta para a importância de José Carlos Matos para a mobilização política no Ceará: “Ele veio no momento em que foi criada uma instância de organização de políticas públicas para o teatro amador. E nisso ele se fez um líder. Um líder que se transformou em um líder nacional”. Acrescenta: “Ele sempre viajava para participar de congressos pelo Brasil inteiro, discutindo em alto nível as programações e suas participações, as reivindicações dos grupos de teatro amadores… Então, eu acho que não só no palco como na organização política ele foi militante”.

 


Zé Carlos: radiante em ideias e ideais

>> Por Ricardo Guilherme

Ricardo Guilherme, dramaturgo, ator e diretor de teatro(Foto: Rodrigo Carvalho)
Foto: Rodrigo Carvalho Ricardo Guilherme, dramaturgo, ator e diretor de teatro

“Era um dia feito o dia de hoje, 8 de junho. Mas em 1982. E morria, sob o céu de Pacatuba, o diretor teatral José Carlos Matos (1949-1982).

Agora, 40 anos depois, penso nele e é como se mais uma vez ele, então, estivesse entre nós, em insones assembleias, mobilizando vontades para ações coletivas em favor de todos, do todo. Preciso vê-lo ressurgir na minha lembrança, assim, imune ao tempo, ainda jovem, como um velho companheiro de guerra.

Quero imaginá-lo como um encenador que volta à cena para continuar processos, aliando teatro e política, sob a referência de sua militância de esquerda porque compreende que, se ambos se fundem, a fusão diminui a cisão entre a arte e a vida que a circunda. Desejo ter meu parceiro de diretoria da Federação Estadual de Teatro Amador e colega-professor do Curso de Arte Dramática da UFC criando de novo novas instâncias de diálogo com as gerações teatrais. Lembro dele como se me preparasse em vão para encenar mais uma sessão da peça ‘O Evangelho Segundo Zebedeu’ que em 1977 juntos encenamos no Grupo Grita.

Em 8 de junho de 2022, quatro décadas após aquele voo da Vasp, tento pensar no Zé como o mesmo Zé, radiante de ideias e ideais, com quem convivi e de quem fui amigo por cerca de dez anos. Todavia, o pensamento por vezes tragicamente me trai, pois há momentos em que penso em José Carlos Matos e é como se enquanto nós o esperássemos retornar para a sua mátria-cidade, naquele 08 de junho de 1982, ele, de repente, sobre a Serra da Aratanha, morresse outra vez”.

 

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