Oficialmente, a estreia profissional de Belchior se deu em 1971, com o lançamento do compacto Na Hora do Almoço, dividido com os intérpretes Jorge Telles e Jorge Neri. Nos 45 anos seguintes, sua discografia se dividiu entre alguns poucos discos de inéditas, projetos especiais – um trabalho revisionista dividido com Ednardo e Amelinha, e outro onde atuou somente como intérprete – e um caminhão de regravações e coletâneas.
Se comparada à de contemporâneos, essa obra é curta e contou com a presença de poucos parceiros (são menos de 20 na discografia oficial e mais alguns espalhados em discos alheios). Não à toa, boa parte dessa obra é escrita em primeira pessoa.
No entanto, se foram poucos os parceiros de composição, foram muitos os companheiros de estúdios e palco. Ricardo Bacelar conheceu Belchior no fim da década de 1980, quando se apresentaram juntos no Pirata.
Em meados da década seguinte, o pianista trabalhava em São Paulo e foi chamado pelo produtor Guti Carvalho para fazer a coordenação musical e assumir os teclados do disco Vício Elegante, álbum de intérprete do autor de Como Nossos Pais.
"Ele estava se regravando muito e queria um disco de músicas inéditas. Mas, como não tinha nada interessante, ele gestou o disco experimentando com piano e voz. Cantava uma e cantava outra, desenhando o repertório pelos autores", explica Bacelar que assinou com Belchior a faixa que dá nome ao disco. "Essa música a gente fez em 10 minutos, no estúdio. Ele já tinha a letra esboçada", lembra.
Com uma sonoridade que puxa para um pop contemporâneo, Vício Elegante trouxe releituras bem particulares para O Tolo (Roberto/ Erasmo), Esquadros (Adriana Calcanhotto), Charme do mundo (Marina/ Cícero) e outros.
Mesmo se apropriando de canções de outros, Belchior precisou de pouco tempo para dar voz ao repertório. "Ele é muito preciso, muito afinado. Tem até vozes do disco que é a original, de tão bonita que ficou", revela Bacelar acrescentando que Belchior gostou de cantar com o arranjo que misturava sons orgânicos com eletrônicos. "A voz do Bel não precisava ser atualizada, só a sonoridade", explica.
O gaitista Jefferson Gonçalves também trabalhou com o sobralense, mas de uma forma diferente. Fã do compositor e do disco Alucinação, o carioca teve sua primeira experiência profissional quando foi chamado para fazer um solo de gaita no disco Um Concerto Bárbaro. Com voz e cordas gravadas ao vivo, a participação de Jefferson foi feita em estúdio.
"O produtor me chamou pra gravar e queria um clima de ao vivo, algo mais próximo do que eles estavam fazendo ali. Então, eu fiz uns improvisos em cima da voz dele", lembra o carioca que só foi conhecer o "parceiro" tempos depois, no Dragão do Mar. "Ele elogiou a gravação e ficamos conversando ali sobre música".
Há um consenso entre os músicos ouvidos para esta reportagem sobre a responsabilidade e cuidado profissional de Belchior. Pontualidade, disponibilidade, facilidade de ouvir e aceitar sugestões. No entanto, parte dessas qualidades foram se perdendo à medida que o rapaz latino-americano se aproximou da produtora cultural Edna Assunção de Araújo, que assinava Edna Prometheu.
Eles se conheceram em São Paulo, quando ela dividiu com Belchior o desejo de realizar uma exposição em Fortaleza em homenagem ao artista plástico Aldemir Martins.
Antes de acompanhar Belchior num jogo de gato e rato envolvendo família, jornalistas e a Justiça Brasileira, Edna assumiu os papeis de namorada e assessora do compositor. E foi aí que começaram a surgir alguns problemas. Relação distante com os músicos, atrasos nos pagamentos e saídas furtivas depois dos shows passaram a ser comuns.
O guitarrista Mimi Rocha esteve ao lado de Belchior em diversos shows. Mesmo informalmente, chegou a assumir a direção musical em algumas oportunidades.
"Uma vez, fomos fazer um show na Taíba e foi maravilhoso. Depois, o prefeito de São Gonçalo até queria conhecer o Bel. A Edna chegou, mandou todo mundo pra vã e fomos pro hotel esperar o cachê. A banda levou o maior chá de cadeira e o prefeito também. No final, o Belchior não apareceu, ela veio com os cachês e pediu mais tempo para o prefeito, que acabou sem conhecer o Belchior".
Artista plástico e ex-sócio, Tota Batista lamenta a forma como Belchior tratou a carreira nos últimos anos. Ele lembra saudoso de como o amigo era desapegado a certas formalidades. "Vi muitos artistas querendo gravar músicas dele e tinha aquele problema de encontrar. As pessoas me procuravam", conta o amigo apontando que cansou de ver o compositor autorizando jovens artistas a gravarem suas músicas e chamando instrumentistas para improvisarem algo durante seus shows, sem ensaio nem nada.
"Às vezes o cara ficava com vergonha, mas ele dizia que não tinha problema. Eu achava esse gesto muito humano". E é essa imagem que Tota prefere guardar, a de um Belchior próximo de quem amava sua arte.
Por Luciano de Almeida Filho
Para compreender bem o cenário do lançamento do icônico Alucinação, o segundo e mais bem sucedido LP de Belchior, em 1976, é preciso conhecer o cenário onde ele surge. A MPB era dominada pelos grandes ícones surgidos na década de 1960. Havia também a geração revelada nos festivais universitários e aí também se incluíam Fagner, Belchior e Ednardo.
Mas os três cearenses eram mais ligados pela mídia ao grupo de novos artistas nordestinos que haviam migrado para o "Sul Maravilha" na cola dos baianos que fizeram a Tropicália - Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Quinteto Violado, e logo depois Zé Ramalho e Elba Ramalho.
Havia uma necessidade da indústria fonográfica de fomentar movimentos e o chamado Pessoal do Ceará – nome surgido a partir do disco coletivo de Ednardo, Rodger Rogério e Teti (1973) - polarizou com os mineiros do Clube da Esquina, grupo formado em torno de Milton.
Em 1976, os cearenses tinham status de cult entre o público mais antenado, universitários etc e tal. Fagner havia feito temporada de sucesso no pequeno teatro Tereza Rachel, no Rio, e seus primeiros discos conquistaram uma plateia cativa.
Mucuripe, parceria dele com Belchior, foi gravada por Elis Regina (1972) e Roberto Carlos (1975). Elis e Fagner se conheceram através do ex-marido da cantora, Ronaldo Bôscoli. Com o fim do casamento, Elis se afastou de Fagner mas havia ficado positivamente impressionada pelas composições de seu conterrâneo, Belchior.
Este havia feito um burburinho com Na hora do almoço. Em 1974, lançou um primeiro LP pelo selo Chantecler, com boas composições mas trazendo arranjos pouco inspirados.
O sucesso popular dos artistas cearenses se deu exatamente no ano de 1976. Em maio daquele ano, a TV Globo estreou a novela Saramandaia e escolheu Pavão Mysteriozo, que Ednardo havia lançado no seu primeiro disco solo dois anos antes, para tema de abertura, ganhando imenso êxito.
Um pouco antes, em dezembro de 1975, Elis Regina estreava o show Falso Brilhante que trazia duas músicas de Belchior com grande força interpretativa: Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida. O burburinho foi tamanho que, antes mesmo do disco dela ser lançado em 1976, a gravadora Philips o contratou e o colocou imediatamente em estúdio sob a tutela do produtor Mazzola.
Assim nasce Alucinação, até hoje considerado o melhor trabalho de Belchior. A produção de Mazzola coloca a voz personalíssima do sobralense no lugar certo, valorizando suas qualidades trovadorescas com os arranjos que trazem um pique de folk-rock, algo como uma versão brasileira de Bob Dylan.
O resultado é o sucesso de canções como Apenas um rapaz latino-americano e a faixa-título. A Palo Seco ganha nova leitura, com mais propriedade que no LP de estreia. O disco trouxe ainda as excelentes Fotografia 3x4, Sujeito de Sorte e o country Não leve flores.
Belchior se tornou um compositor concorrido. Vanusa estouraria nas rádios com sua Paralelas, também gravada por Erasmo Carlos. O cearense continuaria fazendo discos de alto nível, como os seguintes Coração selvagem (1977), Todos os Sentidos (1978) e Era uma vez um homem e seu tempo (1979).
Caiu um pouco de produção no decorrer da década de 1980 e 90 quando lançou vários discos de releituras de seus grandes sucessos – o melhor deles é Autorretrato (1999), com ótimos arranjos atualizados.
Mas ainda fez um grande trabalho pouco valorizado na sua discografia, Baihuno (1993). Há a esperança que Belchior retorne em grande estilo com composições que reflitam sobre este período de autoexílio dos últimos oito anos. Verve lírica ele já provou que tem de sobra.
Luciano Almeida Filho é jornalista, crítico de música e filho de sobralense
"Há a esperança que Belchior retorne em grande estilo com composições que reflitam sobre este período de autoexílio dos últimos oito anos"Luciano Almeida Filho