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O homem longe do artista
Reportagem Seriada

O homem longe do artista

Episódio 2

O homem longe do artista

Episódio 2
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Belchior teve uma infância de menino livre, que roubava ata no quintal do vizinho, louco que era pela fruta. O pai era comerciante – "um bodegueiro", como disse em entrevista ao O POVO em janeiro de 2004 - e cada irmão tinha que se virar. "Então, eu fazia máscaras de Carnaval, pegava galinhas, pombas...", revelou. É o terceiro filho do casal Dolores Gomes Fontenelle Fernandes e Otávio Belchior Fernandes.

À época, o menino já demonstrava tendência para as letras, as artes e a filosofia. Era apaixonado por livros, por bibliotecas e por todo tipo de leitura — lembra Nilson Belchior, irmão do cantor, que recebeu a reportagem do O POVO em sua casa, na Parquelândia. Advogado aposentado, Nilson lembra que o garoto "se destacava das outras pessoas pelo intelecto apurado".

Na foto: Belchior(Foto: João Guimarães, em 29/08/1983)
Foto: João Guimarães, em 29/08/1983 Na foto: Belchior

Ainda adolescente, substituía os professores de matemática, história e português. Gostava dos autores clássicos, da literatura erudita, dos idiomas estrangeiros. Tinha especial interesse por latim. Mais tarde, a inteligência rendeu vaga no Liceu do Ceará, no Seminário de Guaramiranga e o primeiro lugar no vestibular de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Foi no Liceu que Belchior conheceu Fausto Nilo, que ele definia como "meu parceiro e grande compositor brasileiro". Naquele tempo, nenhum dos dois pensava na música como carreira. O jovem Fausto, hoje um renomado arquiteto, gostava de desenhar.

Já Belchior continuava com leituras afiadas sobre temas humanos. Juntos, eles caminhavam pela rua Liberato Barroso, até o Centro, para ir ao cinema. "No primeiro científico, ele não apareceu. Não se matriculou. E desapareceu", lembra Fausto Nilo, ao O POVO.

O arquiteto terminou os estudos da escola sem a presença do companheiro de caminhadas. Em 1962 ou 1963, na rua Major Facundo, escutou uma voz: "Fausto, como vai?". Era Belchior, com roupas de frade. "Ele me deu muitos conselhos de como conduzir minha vida.

Fiquei desorientado. Era meu amigo com aquela compenetração. Fiquei parado. Ele foi andando no rumo da Duque de Caxias e eu fiquei olhando muito tempo. Até que ele desapareceu", recorda Fausto.

Belchior era um sedutor, diz a cantora Amelinha. "Com sua voz rouca, sua conversa afiada, agradável, divertida, e com seus abraços carinhosos. Um sedutor com jeito de índio, meio santo e meio profano, acho que pelo fato de ter estudado filosofia com os frades e estudado Medicina, mais o talento pessoal.

Ele tinha uma facilidade de criar e recriar histórias. A mesma história ele contava de formas diferentes. As mulheres se derretiam e os homens ficavam fascinados com sua performance elegante", aponta a intérprete que gravou uma música do amigo no disco Janelas do Brasil (2011).

Cantor e compositor Belchior (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Cantor e compositor Belchior

Por trás do mito há um intelectual que traduz do grego para o inglês, lê Dante Alighieri, é fluente em língua latina e se apaixonou pela sonoridade dos Beatles. Por trás do mito há um homem de conhecimentos teológicos e fluente em latim.

Tota Batista, amigo e ex-sócio de Belchior, lembra do bem-querer do compositor pela terra natal, Sobral, para onde o acompanhou em várias ocasiões. "Ele contava histórias com medo de eu dormir na direção. Às vezes, pegava o violão, botava os pés no painel do carro e tocava Fagner, Ednardo, Bob Dylan", conta Tota.

Por trás do mito, há um cancioneiro, um poeta, um artista plástico. Por trás do mito, há um 70 anos de sonho, de sangue e de América do Sul. O homem, não apenas o cantor e compositor, é querido por dezenas de amigos – músicos ou não – que recordam das peripécias de Belchior com ternura e saudade.

Saudade de irmão

Nilson Belchior é engenheiro e advogado aposentado, tem quatro filhas, mora no bairro Parquelândia e tem uma saudade na vida: o irmão Antonio Carlos Belchior. Se para os outros, o cantor e compositor representa a musicalidade de uma geração, a genialidade de um cancioneiro, para Nilson, o músico é a infância vivida em liberdade, é a conversa no fim da tarde, é a presença familiar.

Narrando as histórias para a equipe do O POVO, ele se perde entre as recordações variadas da meninice e da adolescência. "Eu só chamo de Antonio Carlos. Eu não chamo meu irmão de Belchior. Quando falar Antonio Carlos, vocês já sabem de quem eu estou falando", avisa logo na chegada.

Nilson era o responsável por buscar o irmão, que perdia a hora de voltar para casa escutando os cantadores nas feiras livres do interior. "E quando eu não encontrava o Antonio Carlos, ah, mamãe ficava zangada e brigava comigo", diverte-se. A mãe - Dolores Gomes Fontenelle Fernandes, falecida há cerca de três anos - tinha em Belchior um "xodó".

Nilson tem saudades do irmão. Não do artista, das composições ou dos shows. É saudade de uma infância compartilhada. "Se ele viesse para Teresina, ele vinha aqui. Se ele viesse para Recife, ele vinha aqui", conta. As visitas começaram a rarear. Nilson lembra da última visita de Belchior ao Ceará antes do auto-exílio.

O compositor queria resolver algumas burocracias locais e pediu ajuda ao irmão. Os negócios, entretanto, ficaram inacabados.

Nas paredes da casa há várias fotografias, exibidas com pompa. Duas se destacam: um retrato de Belchior ainda bebê, com um ano de idade, e um quadro que reúne imagens de vários irmãos. Nilson aponta a fotografia de Belchior aos 12 anos, rosto redondo de criança, o olhar já compenetrado.

Em uma pasta, separados cautelosamente, estão documentos da família. Entre eles, a certidão de nascimento de Antonio Carlos Belchior - com hora, data e filiação exatas. Nilson manipula as páginas até encontrar o papel.

"Uma criança, do sexo masculino, de côr branca a quem foi dado o nome de ANTONIO CARLOS BELCHIOR", é exatamente assim que diz a certidão de nascimento do futuro artista, registrada em 27 de outubro de 1946 no Cartório do 2º Ofício da Comarca de Sobral.

A conversa com Nilson é entrecortada por músicas. Vez por outra, ele arranha alguns versos. "Meu bem/ Guarde uma frase pra mim/ Dentro da sua canção", canta com a mesma voz nasalada do irmão famoso. É o mais próximo que chega das canções. Já que afirma não escutar os discos. "Provoca muita saudade", diz.

Desde que Belchior entrou no auto-exílio, Nilson recebe assédios de pessoas interessadas em informações sobre o retorno do compositor. Propostas recusadas veementemente. Para todos, a resposta é única: "Nenhuma circunstância fez ele ir embora. A não ser, a mente dele".

"Ele é um filósofo. Conhece a obra completa de Kant, Schopenhauer, Nietzsche. Ele é um dos maiores especialista do mundo em Dante Alighieri" Jorge Mello - amigo e ex-sócio

Longe de querer espetacularizar sua saudade, Nilson não permitiu fotos, pediu silêncio sobre alguns temas e sequer deixou que a reportagem tivesse acesso as seus contatos (conseguidos por um amigo comum). Para ele, é conviver com a ausência e acreditar que um dia, quem sabe, Antonio Carlos vai voltar para casa.

Especial publicado em 26 de outubro de 2017, como parte das homenagens aos 70 anos de Belchior
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