Quando Antônio Carlos Belchior se afastou do convívio com público, família e amigos, o irmão dois anos mais velho já pressentia: não voltariam a se encontrar. A última vez em que o engenheiro Nilson Belchior, 72, esteve com o irmão foi há cerca de 10 anos. Depois disto, poucas foram as notícias que recebeu do lado de lá, enquanto o artista experimentava seu autoexílio com a companheira Edna Assunção de Araújo.
Na tarde de ontem, horas após receber a informação da morte do irmão, Nilson recebeu a reportagem do O POVO na casa de uma das quatro filhas. Com serenidade, lembrou causos de infância, da amizade fraterna, do cachimbo do irmão. Lembrou da saudade, presente há uma década. Saudade do Antônio Carlos, como ele chama. “Até me desculpe, mas é assim que eu chamo meu irmão”, se explica, mesmo sem precisar.
Ora falando no presente, ora no passado, Nilson é firme: “é o melhor dos irmãos. Entre mim e ele, há uma simetria muito grande, que faz com que seja a mesma pessoa. É claro que estou excluindo daí a capacidade mental. Incluo as afinidades, a amizade”, conta sorrindo.
A capacidade mental à qual o irmão mais velho se refere é o viés intelectual de Belchior. “Meu irmão tem 71 anos, ia fazer neste ano, na verdade. Em 365 dias num ano, desde os 10 anos, ele nunca deixou de ler um livro por dia”. Além disto, lembra, o artista sabia sete línguas, entre inglês, francês,alemão, espanhol, mandarim, italiano e latim.
Do italiano, inclusive, Belchior estava traduzindo o clássico A Divina Comédia, de Dante Aligheri, publicada originalmente em 1472. Ainda não é sabido, contudo, se ele chegou a concluir o trabalho de mais de dez anos.
O irmão acredita ainda que, nesta década em que o compositor se afastou da família e do mercado, nunca deixou de produzir. “Lá (em Santa Cruz do Sul), ele deve ter muitas composições novas. Ele é de uma capacidade mental...”, aposta. Para ele, Belchior deixou bastante material produzido no tempo em que se manteve afastado dos holofotes.
Entre as músicas compostas por Belchior e gravadas nos 17 discos lançados pelo artista, contudo, Nilson é rápido ao dizer que tem uma preferida: Na hora do almoço, gravada no primeiro disco do compositor, chamado Belchior. A canção venceu o IV Festival Universitário de Música Brasileira, promovido pela TV Tupi, em agosto de 1971.
“Na hora do almoço é a tradução perfeita. Na época, acho que ele sentiu a falta da família (quando morava no Rio de Janeiro). É uma música absolutamente do nosso convívio familiar. Fala sobre a gente, sobre a nossa irmã mais nova, de negra cabeleira, a Lília”.
Façamos, portanto, como Belchior ensina na música: “deixemos de coisas, cuidemos da vida. Senão, chega a morte ou coisa parecida, e nos arrasta moço sem ter visto a vida”.
Em sete décadas de vida, muitos foram os amigos, as obras e os fãs que Antônio Carlos Belchior cultivou. Nascido em Sobral, ele viu o sucesso chegar na década de 1970, quando teve músicas gravadas por Elis Regina. Para os amigos de trabalho e de vida, trata-se de uma “perda irreparável” para o cenário cultural do Brasil.
“É uma honra imensurável a gente ter as obras desse grande gênio”, acredita Mimi Rocha, guitarrista que esteve ao lado do compositor em diversos shows. O instrumentista fala sobre a convivência durante os
anos de amizade e trabalho. ”Ele sempre foi muito cordial, bacana. Eu estou sem palavras para mensurar o tamanho dessa perda para a gente”, diz.
Para o jornalista e produtor musical Nelson Augusto a carreira de Belchior nunca teve recaída. “Eu lamento profundamente a partida de um grande compositor. A cultura cearense perdeu um grande nome, mas sua obra continua”.
“Não tenho muito que dizer da pessoa do Belchior, mas conheci o grande poeta que ele era. Um grande representante da nossa geração do Ceará. As poucas músicas que fizemos juntos valeram muito à pena”,
enfatizou Fagner, parceiro em sucessos como Mucuripe.
Via Twitter, o presidente Michel Temer também prestou sua homenagem. “Ele foi o intérprete de uma geração e de uma época rica do País”, diz a mensagem. O Governo do Ceará e a prefeitura de Fortaleza
também enviaram notas de pesar pela morte do cantor.
Em nota, o prefeito de Sobral, Ivo Gomes, declarou: “Foi com profundo pesar que recebi a notícia da morte do cantor e compositor sobralense Belchior. O povo sobralense se orgulha do seu filho ilustre”.
De acordo com Fausto Nilo, a saudade que fica é a do amigo. “Estou sentindo um peso muito grande”, diz. O compositor e arquiteto relembra que Belchior, assim como ele, era “vindo do interior”. A amizade entre os dois se deu no antigo ginásio colegial.
“Ele sabia latim, conhecia a bíblia e sabia romances franceses. Aquilo me desorientou no bom sentido”. Fausto relembra que antes do desaparecimento do músico, os laços entre os dois sempre foram muito estreitos. “Eu sempre tive muito respeito pelo trabalho dele. É uma pessoa brilhante”.
De acordo com informações da família, o corpo de Belchior foi velado primeiro, em Sobral, no Teatro São João, das 7h às 10 horas desta segunda-feira. Em seguida, o corpo foi trazido a Fortaleza, onde foi velado no Centro Cultural Dragão do Mar, onde também ocorreu a missa de corpo presente, em cerimônia aberta ao público. O sepultamento aconteceu às 9 horas, no Cemitério Parque da Paz, restrito à família.