Em Icó bateu-lhe a saudade. “Hoje tenho passado um dia bastante triste e sempre lembrando da minha gente, mas toda a manhã estive ocupado estudando plantas”, escreveu Francisco Freire Alemão, 61, presidente da Comissão das Borboletas. “Estou muito aborrecido, com grande desejo de marchar para o Crato. Está passando o tempo de lá estar, e estão passando seguramente muitas árvores, que já floresceram.”
Era 4 de novembro de 1859. A viagem já consumira boas semanas desde que desembarcaram na província do Ceará vindos da capital do Império imbuídos de espírito aventureiro. Recém-chegado de Russas e Limoeiro do Norte, hospedaram-se na casa de dr. Aristides,um notável icoense. Sentia que o ânimo lhe faltava. “A observação do firmamento me infundia maior melancolia”, amuou-se certa feita.
Triste, irritava-se por tudo, mas principalmente com o companheiro de viagem, Manuel Ferreira Lagos, a quem cumpria a chefia da seção zoológica, além da função de arquivista da empreitada, tarefa que exercia apenas parcialmente e quando lhe dava na telha, segundo as anotações de Alemão.
Ao chegarem à cidade, a paciência com Lagos esgotou-se. Ao cansaço da expedição somou-se o azedume. O botânico desabafou: “Esta minha tristeza, que é habitual, tem tornado estes dias penosos, por ver que estamos perdendo tempo e eu, amarrado ao Lagos, hei de estar pelo que ele quiser”.
Em seguida, esboçou um breve perfil do colega de expedição: “Que homem singular! Que gênio desabrido! Não ouve nem atende as nossas queixas, nenhum caso faz de nós, assim como não faz da seção que lhe pertence (zoologia). É o caráter mais singular que conheço: despótico, arrebatado, não atende a nada, não sofre a menor oposição a seus desejos nem aceita a mais pequena reflexão que o contrarie”.
E acrescentou, mordaz: “Quando chega a algum lugar, todos os seus cuidados se empregam em pôr-se em relação com a gente feminina – desde as casas altas até as mais baixas e infames. (...) Tem escrito resmas de papel, mas aí não se acha uma página de zoologia”.
O tom de profundo desagrado, todavia, não impediu que Freire Alemão fizesse valer todo o seu rigor e registrasse as principais características da localidade, então uma das mais prósperas do Ceará – à época com 16 mil habitantes, Icó era um importante posto de escoamento de mercadorias que vinham do Cariri e também da Europa.
Sobre o trânsito de carros de boi que transportavam produtos durante todo o dia e cujo trajeto margeava a praça principal, onde fica a igreja matriz, o pesquisador registrou: “Os carros ordinários são grandes, pesados, pesados, rodas mui grandes, formadas por muitas peças de madeiras. Aqui no Icó são pela maior parte conduzidos por sete juntas de bois, que são superiores aos da capital, mais gordos”.
Era sinal da pujante economia da região naquele período, que também se refletia na cultura. Em Icó foi construído o primeiro teatro do Estado. Freire Alemão visitou-o logo antes de sua conclusão. “Às cinco horas da tarde veio aqui o dr. Théberge (Henrique Théberge, engenheiro pernambucano que fixou residência no Ceará), como tínhamos ajustado de manhã, para ir me mostrar o interior do teatro”, narra em sue diário de viagem. “Fomos depois ao teatro e o achamos muito bom dentro, com três ordens de camarins, ou antes com três galerias, porém não tem divisas, e as coluna que sustentam e as galerias são de carnaúbas bem trabalhadas, formando colunas.”
Historiador e memorialista, Altino Afonso, 64, não tem dúvida: a passagem da comissão marcou a história de Icó. “Quando Freire Alemão esteve aqui, ele registrou no diário como era Icó naquele período. E exatamente nessa época, a cidade viveu o seu apogeu”, conta. “Ele relatou como eram as mulheres de Icó, as ruas e até os peixes. Disse como eram as espécies que tinha no rio Salgado: curimatã, traíra, o branco, que não existe mais por causa da poluição.”
De acordo com Afonso, contudo, o que marcou mesmo “foi o desenho que a Comissão das Borboletas fez da cidade”. De autoria de José dos Reis Carvalho, aquarelista e pintor oficial da expedição, nele aparecem as ruas que constituíam o centro nervoso daquele pedaço do Ceará.
por Henrique Araújo
Nem só de arquitetura ou intrigas se ocupou Freire Alemão quando de sua passagem por Icó, 160 anos atrás. Famosa pela beleza de suas mulheres, a cidade era então um alvo constante de uma modalidade comum na época: o furto de moças. A prática não passou despercebida pelo botânico, que identificou na boniteza das fêmeas a causa por trás dessa atividade que assombrava as famílias de boa gente da municipalidade.
Em seu diário, Alemão observou que, “pelo que posso ver aqui na vizinhança, as meninas, moças e senhoras de Icó se dão pouco ao trabalho, gostam muito de janela e me parecem loureiras, o contrário do que observamos em Aracati”. Segundo ele, “há algumas moças bonitas e interessantes, e trajam-se bem”.
“Freire Alemão destacou muito as mulheres da cidade, que eram muito belas”, conta Altino Afonso, historiador e memorialista de Icó. “Mas uma coisa que ele deixa bem claro são os furtos de moças. Ele conta que, para casar em Icó, o homem primeiro roubava a moça e depois voltava. Quatro ou cinco dias depois, trazia a filha de volta, e o pai deixava a filha casar. Temos tudo isso documentado.”
Em par com o roubo passional, andava outra prática, esta marcada por juras não de amor, mas de sangue: as vinganças entre famílias e as rivalidades políticas. No mesmo diário, Alemão anotou: “Há aqui no Icó uma prostituta (casada) chamada Germana de tal Feitosa, é dos Inhamuns e parda, com que o Lagos tem tido conversas e que as tem aproveitado”.
O botânico continua: “Parece que ela já mandou atirar em alguém e também lhe deram já tiros. Não desdiz da raça. As antigas questões morticiosas entre os Feitosa, os Monte e Moraes fazem uma página negra da história do Ceará e se pode prestar para um romance”.
A despeito das matanças, a comissão deteve-se em Icó até o começo de dezembro de 1859, quando finalmente levantou voo rumo ao Crato, na região do Cariri, onde as outras pernas da expedição se encontrariam para encerrar a aventura científica. Antes de deixar a cidade, porém, Freire Alemão foi convidado para um casamento. Como os noivos pertencessem a famílias abastadas da localidade, e o Lagos não se contivesse de tanta expectativa para a festividade, adiaram a partida para o dia seguinte, 18 de novembro.
por Henrique Araújo
Mais de meio século atrás, mal pusera os pés na cidade de Icó, no Interior do Ceará, a Comissão das Borboletas foi informada de que, dali a alguns dias, a filha de um tal dr. Gurgel, figura influente do município, selaria os votos de matrimônio com outro bem-nascido, herdeiro do dr. Rufino. A cerimônia seria realizada na Igreja Matriz, ao lado do teatro e da casa de Câmara e Cadeia Pública. Os pais dos nubentes faziam questão de que Francisco Freire Alemão e sua trupe participassem da festividade.
Cioso de seus compromissos sociais, o botânico não se fez de rogado. Em seu diário, Freire Alemão anotou. Era 16 de novembro de 1859. “Ainda não foi possível sairmos hoje, e visto que amanhã é o dia do casamento da filha do Gurgel, para o qual aí temos sido convidados pelo noivo e pelo pai da moça, Manoel e o Lagos me vêm propor a demora da viagem por mais um dia, para não faltarmos ao convite, alegando que mostrarão-se sentidos se não o fizermos”, escreve. “Achei-lhes razão e fica a viagem para depois de amanhã, sábado.”
Foi um bailão, para o qual acorreu um mundaréu de homens e mulheres, coalhando a praça icoense. Foi o maior casamento da história da região, assegura o memorialista Altino Afonso. “Às sete horas da noite nos vestimos e fomos para a casa do Gurgel, que já estava com muita gente”, relata Alemão. “Foi uma excelente reunião de grande número de pessoas das primeiras famílias do Icó.”
Corta para 2019. Nesse mesmo Icó, como se diz por lá, duas famílias influentes repetiram o casório. Sem saber, os médicos Maria Zuleide Amorim Muniz, 33, e José Rubi Peixoto Cunha Júnior, 36, escolheram a mesma igreja no mesmo dia 16 de novembro para repetir a festança que, 160 antes, havia mobilizado toda a cidade – na véspera, os convidados do enlace ocupavam boa parte dos quartos disponíveis nas pousadas, e quem se achasse de passagem corria o risco de ficar sem ter onde dormir.
Zuleide diverte-se com as semelhanças entre dois eventos tão distantes no tempo. Enquanto uma moça retoca a sua maquiagem numa salinha do buffet alugado para mais de 300 pessoas, a noiva, cuja família tem relações estreitas com a política local, fala que nada foi calculado. “Eu não conhecia essa história”, diz, referindo-se à visita da Comissão das Borboletas a Icó. “Mas gostei da coincidência.”
Mais tarde, ao entrar na igreja, Zuleide foi recebida por uma fileira de damas mui formosas, tal como descreve Freire Alemão naqueles idos de 1859, ao registrar que “as senhoras pela maior parte trajavam com riqueza e gosto, (...) os homens trajavam também com asseio e gosto, parecia acharem-se em uma reunião do Rio de Janeiro”.
O casamento levou um bom par de horas, incluindo-se a espera no altar. Antes das 22h, o noivo já havia beijado a noiva, e então todos se encaminharam para uma etapa não menos aguardada da comemoração: os comes e bebes.
Sobre o casamento que testemunhou, Freire Alemão foi sucinto – talvez ácido. O pesquisador não escondia o azedume: “A noiva estava muito bem vestida. É bonitinha; o noivo também não é mal parecido. Tocou-se piano. Às dez levou-se a noiva para a sua casa e acabou-se a festa”.
Nesse mesmo horário, naquele novembro de 2019, a festa estava apenas começando. Atravessaria a madrugada, numa sucessão de vestidos e roupas finas e bandejas que serviam o mais requintado doce e o mais saboroso salgadinho. Os convivas se refestelavam. Recém-casada, Zuleide segurou o buquê enquanto pode. Quando finalmente o atirou, houve breve disputa, ao fim da qual a vencedora saiu empunhando as flores com garbo.
Uma nova banda começou a tocar, fazendo soar as primeiras notas de um forró cujo refrão fala de “um poderoso rubi” – era uma homenagem da amorosa esposa ao marido, conhecido apenas como Rubi Júnior. Depois disso, dançou-se a mais valer.
por Carlos Mazza
Não vem de hoje a conhecida influência do município de Sobral, na Zona Norte, na condução de rumos da política no Ceará. Na época da passagem da Comissão Científica pelo Estado, o município já era lar de grandes lideranças regionais e com notável clima de acirramento.
“Aqui existiam dois partidos, os democratas e os marretas, que nunca se uniram. Uma moça não podia namorar um rapaz de outro partido nem frequentar o clube do outro. Existia o Palace Clube e existia o Clube Democrata, altamente acirrado", conta o escritor Arnaud Vasconcelos, membro da Academia Sobralense de Letras e estudioso da sociedade do município.
“O acirramento já era percebido nos escritos de Francisco Freire Alemão, de 1860. "As ideias políticas são muito extremas, mesmo entre mulheres ali na moradia procuram-se avizinhar-se os grupos do mesmo partido", registra.
Uma das lideranças políticas sobralenses era o próprio anfitrião dos membros da comissão, o então senador Francisco de Paula Pessoa. 160 anos depois, o município continua no centro da política cearense, sendo berço político dos ex-governadores Cid e Ciro Gomes (PDT). Linha materna da família do prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio (PDT), também é originária de Sobral e chegou até a eleger políticos no município.
por Carlos Mazza
Ainda que tenham se passado 160 anos da Comissão Científica Exploradora, algumas coisas pouco mudaram pelo Interior do Ceará desde a passagem dos pesquisadores por lá. Em vários dos municípios por onde passou a equipe, famílias e grupos políticos que já estavam no poder à época seguem até hoje em posições de governo.
Um dos casos mais emblemáticos é o de Saboeiro, nos Inhamuns. Quando passaram por lá em 1859, os pesquisadores foram recebidos pela família pecuarista Fernandes Vieira, que comandava a política na região.
Hoje, o atual prefeito do município, Gotardo Martins, é descendente da mesma família. Já o vice-presidente da Câmara Municipal de Fortaleza, vereador Adail Fernandes Vieira Júnior (PDT), também é natural de Saboeiro e descendente dos antigos anfitriões da Comissão das Borboletas.
Já a família do senador Paula Pessoa, que recebeu os pesquisadores em Sobral, também mantém filhos ilustres no cenário político local, entre os quais está o atual prefeito de Santa Quitéria, Tomás Albuquerque de Paula Pessoa, conhecido como Tomás Figueiredo, pai do ex-deputado Tomás Filho e marido da ex-deputada Cândida Figueireda. Da mesma família é o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) Alexandre Figueiredo.
Não vem de hoje a conhecida influência de Sobral na política no Ceará. Na época da passagem da Comissão Científica pelo Estado, o município já era lar de grandes lideranças regionais e com notável clima de acirramento, já percebido nos escritos de Francisco Freire Alemão, em 1860. "As ideias políticas são muito extremas, mesmo entre mulheres ali na moradia procuram-se avizinhar-se os grupos do mesmo partido."
por Érico Firmo
Nos manuscritos de Francisco Freire Alemão na Biblioteca Nacional está o Relatório dos Costumes, e algumas seitas mais notáveis que ainda existem entre os nossos indígenas do Termo de Villa Viçosa. O documento foi redigido por Antonio Marques da Assunção, morador de São Benedito. É o mais valioso registro conhecido sobre os indígenas da Ibiapaba na metade do século XIX. Ele faz uma detalhada descrição do Torém. Do outro lado do Estado, na barra do rio Mundaú, em Itapipoca, O POVO conheceu, e participou, do mesmo ritual. Era praticado, com algumas diferenças 160 anos depois, pelos índios Tremembé.
Mundaú foi visitada pela seção Geológica, para estudar o potencial uso industrial da resina do oiti. Ficou decepcionado e acabou estudando os recifes e dunas.
Quatro tribos hoje habitam o deslumbrante ponto de encontro do rio Mundaú com o mar. Eles têm duas líderes - não usam denominação cacique -, que trabalham em conjunto: Adriana Tremembé e Erbene Rosa Tremembé. As tribos travam antiga luta pela demarcação e homologação do território de 3.580 hectares. O conflito, como reminiscência do tempo colonial, tinha como adversário um grande empreendimento turístico espanhol, chamado Nova Atlântica. O grupo tinha muito dinheiro para investir e houve pressões políticas para que os índios entrassem em acordo com os empresários. “Entre o rio e o mar que a gente sabe que está nossa força maior, que é a força dos encantados, eles têm nos protegido”, acredita Erbene.
Adriana e Erbene são também professoras na escola indígena Brolhos da Terra. Erbene é também coordenadora. É formada em pedagogia e em biologia, pela Universidade do Vale do Acaraú (UVA), em curso em Itapipoca. Começou o curso superior em 2006, um anos após abrirem a escola indígena - já com a perspectiva de ensinar às crianças da sua tribo. Formou-se em 2009 e, em 2015, concluiu a segunda graduação.
No princípio, a escola não tinha prédio. As aulas eram embaixo dos cajueiros, no alpendre das casas. A energia elétrica só chegou em 2010. As aulas da educação de jovens e adultos (EJA), antes, ocorriam sob a luz de lampião.
Adriana conduziu o ritual do Torém. Todos de pés no chão, a equipe do O POVO incluída, eles agradecem à mãe Terra, a mãe natureza, ao pai Tupã, à mata - “nossa vida”, conforme qualificam. À lua e às estrelas, “nossas energias”. Ao sol, “nossa luz”. Às pedras e arcos, “nossas armas”. E ao logo, “que é nossa visão”. Segue-se a dança num grande círculo. Este repórter admite que em dados momentos se confundiu nas voltas e atrapalhou um pouco a dança.
Em seguida, foi servido o mocororó - bebida fermentada de caju, e o grolado, feito da mesma goma de que se faz o beiju, uma espécie de farofa da tapioca, misturada com linguiça frango e carne de porco.
O território dos tremembés da Barra do Mundaú está hoje demarcado. Está na fase agora de levantamento de benfeitorias, para depois haver a desintrusão - a retirada das famílias que não são indígenas. A seguir, vem a homologação. “A gente não tem esperança, mas a gente vive de esperança”, apresenta Erbene em seu paradoxo sobre a conjuntura das políticas indigenistas e o sonho de sua gente.
por Érico Firmo
José Carneiro é mateiro e mestre da cultura no Ceará. Ele mostrou ao O POVO o caminho velho do Maciço, antiga trilha indígena que o colonizador branco usou para dominar a Serra de Baturité. Foi também a rota da Comissão das Borboletas. No percurso, pediu proteção a entidades especiais.
"Eles estão aí para defender a natureza. Fazem parte do meio. As caiporas, o saci, a mãe d'água, o curupira, o mazagão, que é um bicho de que os antigos falavam. São fenômenos da natureza". O papel desses guardiões é proteger o meio ambiente.
Alguns desses guardiões são seres vivos reconhecidos pela biologia, como a malha de fogo, a serpente Lachesis muta, ou simplesmente surucucu. A divergência é sobre o que ela é capaz de fazer. Zé Carneiro narra ter visto ela apagar fogueiras na mata com a calda, mesmo se queimando. "Os biólogos não aceitam isso, mas eu sou testemunha, que eu já vi. É também um guardião vivo da mata. Um espírito vivo da mata".
"Os encantados são a essência da natureza, essa energia que a gente sente, nossos idosos que se vão e se encantam. Os encantados são a natureza, os guardiões da memória, da sabedoria, dos espaços sagrados. Eles que nos protegem, eles que purificam", explica Ezequiel Tremembé, indígena dos povos da Barra do Mundaú, professor na escola indígena, formado em pedagogia com pós-graduação em Psicopedagodia.
"Nosso pai Tupã que é Deus, nossa mãe Tamaí que é Nossa Senhora, e essa natureza, os encantados, vêm nos fortalecer, nos abençoar, nos ajudar. A gente acredita nessa força da encantaria, na interferência dessa força da identidade, da cultura nossa tremembé".
Zé Carneiro narra episódio ocorrido em 2004, quando guiava grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Ceará. Ele disse a um biólogo que eles estavam numa mata assombrada. O professor fez galhofa: "O que a gente encontrar aqui, alguma caipora, eu pego para vender na Internet". Acontece que o grupo se perdeu, rodando em círculos, de 9 às 14 horas. O grupo ficou muito zangado com o mateiro. Disseram que ele não conhecia nada. Zé Carneiro respondeu que eles se perderam por terem falado o que não deviam. "Desrespeitaram os meus amigos da mata". “Criou assim como se a gente estivesse dentro de uma cápsula. Você notava que a vegetação mudou, o clima frio ficou mais abafado. Ficou tudo diferente”.
O mateiro então, afastou-se um pouco do grupo. “Pedi licença aos meus amigos da mata para tirar aquele povo, que estava na minha responsabilidade. Que o cara tinha falado uma besteira e elas deixassem por menos. Que eles lá eu não levava mais. Podia levar outro grupo. A natureza é muito sábia”. Ele conta que, ao retornar ao grupo, encontrou o caminho, a dois metros de onde estavam.
Presidente da Comissão Científica, Francisco Freire Alemão relata em seu diário que ouviu o canto de um desses encantados quando esteve em Canindé. “Ontem à noite, estando já deitado, seriam onze horas [quando] ouvi pela primeira vez o canto do saci-pererê, de que muito ouvi falar no Rio, mas que nunca vi nem ouvi; o canto é pouco mais ou menos [assim]: “fafé (alto) fafefê (baixo)” (p. 436-437).
A paixão pelas redes
por Érico Firmo
“As redes são nestas terras as cadeiras os sofás e as camas”, registrou Francisco Freire Alemão em seu diário (p. 197). A paixão ainda de hoje já o era há 160 anos.
Adailton Paulino, 24 anos, mora na estrada entre Quixadá e Quixeramobim. Ele descansava na rede por volta da hora do almoço. “É bom, né. Meio dia assim num é muito ruim não”, comentou com O POVO sobre o prazer ancestral. À noite, ele dorme de cama. Mas o descanso durante o dia é na rede. Prática que é recriminada por seu Paulo Sérgio, que chegou enquanto conversávamos.
“Só me deito de noite. De dia assim não me deito não. O tempo não dá. Se deitar uma vez se acostuma”. (Colaborou Carlos Mazza)
A acolhida nas casas do Interior
por Érico Firmo
Um traço que a Comissão registra dos cearenses é o acolhimento e a gentileza. “Esta gente do Ceará é muito obsequiadeira e não se cansam de fazer presentes”, contra Francisco Freire Alemão em seu diário (p. 510). Algo que O POVO também constatou após 160 anos.
Nas andanças pelo Interior, batemos nas portas das casas, pedimos licença para entrar em propriedade e sempre fomos bem acolhidos. Algo até difícil de se imaginar em muitos bairros de Fortaleza, as pessoas abriam suas portas para estranhos, deixavam-se fotografar e compartilhavam suas vidas. Isso após ouvirem dos repórteres a estranha história sobre um grupo de cientistas que esteve por aqueles lugares há 160 anos.
Uma dessas casas foi a de seu Antônio André Filho. Ele e sua nora nos deixaram entrar e fotografar a casinha de taipa em que ele criou toda a família - semelhante às construções que a Comissão viu no século XIX. Hoje a família vive numa bela casa de alvenaria ao lado, mas o filho de seu Antônio quis preservar a casa onde cresceu - e onde ainda vai se deitar na rede, para fugir do calor da zona rural de Quixadá.
A nora de seu Antônio, Sueli Paz Pinheiro André, nos ofereceu um saboroso suco de tamarindo, trouxe água geladinha - que fez a diferença no calorão. Trouxe também banana gelada, biscoito. Também ofereceu o feijão que almoçariam, mas já estávamos abusando e ainda tínhamos muitos caminhos a percorrer.
O "deleite do cearense": o banho
por Érico Firmo
Uma coisa que chamou atenção de Francisco Freire Alemão foi a paixão pelos banhos, a que se refere em seu diário (p. 509) como “o deleite do cearense”. “Banhar-se nos rios é coisa de que gosta muito a gente do Ceará”, anota. E não só nos rios. “Quando chove muito as crianças de três, quatro e cinco anos, machos e fêmeas, saem tudo para a rua nu a folgar” (P. 444). Ele observa a mesma coisa em algumas ocasiões. “(...) a gente do país (o Ceará) gosta muito de banhos nos rios, é um de seus maiores prazeres, pouca gente se lava em casa, exceto na ocasião das grandes chuvas, em que aproveitam as galhetas” (p. 502).
O próprio Freire Alemão experimentou o banho em Maranguape, na Pirapora, um balneário famoso na época. “(...) se alguém vem a Maranguape, a primeira pergunta que lhe fazem é: ‘Foi à Pirapora?’”. O rio, dizia ele, formava um “remanso de fundo de areia onde cai uma cachoeira”, à sombra de uma grande gameleira. (p. 501-502).
O POVO foi à Pirapora e constatou que o rio está seco.
Conheça a história da Expedição Científica Expedicionária, primeira comissão científica formada apenas por brasileiros e que cruzou o Ceará em 1850