Iracema, mais rápida que a ema selvagem, corria sertões e matas cearenses. Do Ipu, terra tabajara aos pés da Chapada de Ibiapaba, saiu apaixonada para cruzar as regiões serranas da Meruoca e Uruburetama. Seguiu o curso do Mundaú e passou por Maranguape antes de chegar ao que mais tarde seria Fortaleza.
Banhou-se nas lagoas da Parangaba e Sapiranga e, solitária, escolheu as águas da Messejana para lamentar a partida de seu amado e a saudade da terra natal. Mecejana, segundo José de Alencar, significa a abandonada.
Se criador e criatura compartilhavam do mesmo amor pelo Ceará, o mesmo não pode ser dito de sua capacidade de aventurar-se pelo Estado. José de Alencar, morto aos 48 anos em decorrência de uma tuberculose, tinha uma saúde frágil e dificilmente poderia viajar tranquilo pelos cenários agrestes de suas narrativas. Seus espaços são construídos a partir de estudos prévios e referências recebidas enquanto político e leitor feroz. Era um literato, não um geógrafo.
Sua liberdade criativa foi capaz, inclusive, de alterar noções de pertencimento e geografia populacional. O advogado e jornalista ipuense Maurício Xerez, estudioso da história do Nordeste há mais de duas décadas, esclarece que os Tabajaras - protagonistas do romance de Alencar - ocupavam as faixas litorâneas da região, enquanto o sertão central era dominado pelos Tapuias, conhecidos por suas características agressivas e antropofágicas. Xerez justifica com razões estéticas a opção de Alencar pelo Tabajaras: “eles eram mais afilados, mais bonitos e dóceis. Já imaginou uma Iracema canibal?”.
Romantizar a figura do índio também vai ao encontro do mito do bom selvagem criado pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau, segundo o qual “o homem nasce livre, mas por toda a parte encontra-se a ferros”.
Com sua alegoria, Rousseau defendia que os homens possuiriam uma natureza boa - em seu estado natural, não contaminado por constrangimentos sociais - que seria corrompida pelo processo civilizador.
Discrepâncias à parte, a lenda de Iracema fincou raízes na cultura cearense - com todos os elementos, fantásticos ou não, desenhados por Alencar - e é difícil convencer um ipuense de que a região era habitada por Tapuias raivosos e pouco atraentes.
“Quando criança, vi um Tabajara subindo a serra”, garante um dos moradores, indiferente ao fato de que a população indígena da área foi dizimada há pelo menos dois século, como garante Maurício Xerez.
Do romance indianista permanece mais que nada o cenário, pouco a pouco alterado pela ação do homem e por estações seguidas de estiagem. Da bica onde se banhava Iracema, um paredão rochoso de 130 metros que parece arder sob o sol do Ipu, sobraram pedras angulosas que vez por outra se desprendem e desabam em direção à cidade, e os calangos, rastejantes sorrateiros entre folhas, assustando visitantes desacostumados aos ruídos da mata.
Para molhar seus cabelos, a índia tabajara teria que subir algumas dezenas de quilômetros da Serra de Ibiapaba - tarefa fácil para quem corria até a Messejana - em direção aos distritos de Várzea do Giló e São José.
Teria que se embrenhar no mato fechado, apurar os ouvidos e seguir o barulho da água. Teria que cruzar represamentos ilegais e escapar de caminhões-pipa sem ordem de funcionamento.
Mas se falta água na bica de Iracema, abundam as lendas. Cobras que despencam das alturas e assustam os banhistas, suicidas atormentados, cavernas escondidas e gente hipnotizada por uma estranha força que emana das rochas.
Quem conta são os moradores, que aprendem cedo a respeitar aquela paisagem onipresente - pode ser vista de qualquer ponto da cidade - e as histórias fantásticas que a cercam.
Aprenderam também que é na bica que nascem os grandes romances, abençoados pelo rompante de paixão da índia pelo português. É pra lá que vão os casais apaixonados quando se põe o sol, munidos de lanternas, alguma pinga e, vez por outra, um violão que embale o luar e as carícias.
A bica do Ipu inspira pintores, escritores e desocupados. J. Cardoso, artista plástico filho da terra, tem as paredes de casa tomadas por telas da índia, sua musa e ideal feminino desde os 15 anos - “pensava nela como uma deusa, idealizava como minha namorada”.
A professora Francisca Ferreira escreveu seu Iracema Curuminha para “mudar a história daquela índia danada” e, na praça da cidade, há um bêbado que cochila sob a sombra das árvores e grita um “viva, Iracema” quando percebe que estamos falando dela.
A praça dos bêbados, do churrasquinho e dos encontros ao cair da noite é também lugar de uma sucessão de Iracemas construídas, destruídas e restauradas. Abrigou um coreto, com postes de ferro e globos leitosos, e um lago artificial cercado por bancos com nomes de família.
Foi cenário de retretas e debates culturais, de serestas, serenatas e poetas incompreendidos. No final dos anos 1980, vítima da má administração pública e tomada pelo mato, virou reduto de marginais. Hoje, revitalizada, encanta visitantes e rende homenagem a sua musa.
Cruzando os limites do município, espalhando-se por sertões, serras e litorais de um Ceará já corrido por Iracema, não é difícil encontrar referências e homenagens.
Se não houve rigor na geografia de Alencar, se o autor manipulou etnias em prol de critérios estéticos e românticos, melhor acreditar que tudo fez parte do processo criativo que resultou em um dos maiores romances da literatura nacional. Iracema está em todo lugar.
A obra indianista de José de Alencar pode ser lida e entendida de várias formas, como é próprio das obras literárias. Desde a sua primeira publicação tem sido comentada por leitores com múltiplas visões do mundo e da realidade.
Num escrito que ficou conhecido como uma Introdução do livro Iracema, Machado de Assis definiu-o como sendo um poema em prosa, que “não é destinado a cantar lutas heroicas, nem cabos-de-guerra; se há aí algum episódio, nesse sentido, (…) nem por isso o livro deixa de ser exclusivamente voltado à história tocante de uma virgem indiana [dos lábios de mel], de seus amores e dos seus infortúnios”.
A imaginação poética, o estudo e a meditação levaram o romancista a considerar aspectos ambientais, sociais e históricos encontrados em crônicas diversas, além de informações adquiridas em estudos sobre as espécies, os povos, a língua (o tupi-guarani) e relatos orais sobre o modo de viver dos “selvagens”, para a construção do cenário de Iracema.
Compõem o enredo o mito da fundação do Ceará, o amor da filha do velho pajé Tabajara (guardiã do segredo da jurema, dádiva do Deus Tupã) por Martim (conquistador português do além-mar, aliado dos pitiguaras) e o ódio de nações adversárias territorializadas na floresta, região que ficou conhecida como Serra da Ibiapaba.
A jurema, a jandaia, a água, o sol, o vento, a terra e a índia como elementos da natureza, em sua plenitude, são aspectos que não podem ser descurados do contexto em foco.
Alencar traçou com minúcias os caminhos da bela Iracema e seus acompanhantes na longa jornada da sua aldeia até chegar a Fortaleza, Terra do Sol.
Considerou o próprio viver longe da terra natal – retrabalhando imagens da infância, das andanças e experiências vividas ou imaginadas – e compôs para cada momento da lenda as cenas para a ação dos diversos personagens, situados nos espaços-tempos da natureza e da cultura indígena.
Construiu imagens poéticas dos corpos, dos deslocamentos, dos lugares, dos costumes e rituais, dos sons e tons; enfim, da exuberância da natureza nos mundos da floresta, do sertão e do mar, evocados pela sensibilidade do autor.
Da viagem da Iracema do poeta José de Alencar pode surgir um caminho a se trilhar. Só não esqueça o leitor: o romancista não fez arte para recontar e/ou descrever uma experiência vivida. Na sua condição de artesão de palavras, imaginou-a. E por assim ter feito, legou uma obra-prima ao povo brasileiro.
Maria do Céu de Lima - professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC)