A Lagoa de Messejana é cenário do percurso diário da operadora de caixa Jocélia Oliveira. Tal qual a virgem dos lábios de mel, ela parte apressada todo dia pela manhã para trabalhar e volta à tarde, mais lenta, pelo calçadão aos pés da estátua. A cearense, porém, não conhece bem a história por trás da índia habitante daquelas águas.
“Eu sei que ela é bem importante, né?”, arrisca a jovem, sobre a personagem que completa 150 anos. Mesmo não tendo lido o livro de José de Alencar, ela gosta de contemplar a obra Iracema, Musa do Ceará, monumento feito pelo artista plástico Alexandre Rodrigues e inaugurado em 2004. De cabelos mais negros que a asa da graúna, Jocélia se enxerga, de alguma maneira, naquela mulher.
“Iracema é uma referência para o povo do Ceará”, reflete o turismólogo Gerson Linhares. Ele realiza, há 20 anos, o roteiro cultural Caminhos de Iracema, um trajeto pelas homenagens à índia na Capital. “Essa personagem é tão presente por aqui que tem cearense que acha que ela existiu”, conta.
O percurso turístico passa pelas cinco estátuas da criação de Alencar em Fortaleza. Além do monumento em Messejana, o roteiro transita pela Estátua de Iracema (Mucuripe), pela Guardiã (Praia de Iracema), pela Índia Iracema (no Rotary Club Fortaleza, Centro) e ainda pelo Palácio Iracema (no Centro Administrativo Bárbara de Alencar, Edson Queiroz).
Assim como Linhares, a professora de literatura Cícera Holanda também explora as marcas de Iracema em Fortaleza. Em trabalho com os alunos do ensino médio da escola pública Matias Beck, no Mucuripe, Cícera segue as trilhas daquela que corria mais rápida que a ema selvagem.
“Os alunos logo percebem que aquela história tem muito do povo cearense”, aponta. Segundo a professora, a hospitalidade, por exemplo, marca tão divulgada do Estado Brasil afora, perpassa fortemente a obra. “O pai da Iracema trata muito bem os visitantes. Tudo de melhor do colonizado é dado para o colonizador”, analisa.
Para Cícera, apesar de o livro não ser conhecido profundamente por muitos cearenses, a trama, que tem o subtítulo de Lenda do Ceará, habita o imaginário da população.
“Iracema está em tudo. Deveria ser uma obra obrigatória para o ensino médio. Dá para trabalhar uma intertextualidade com história, geografia, religião. Além de fazer o paralelo entre o índio do passado e o índio de hoje”, destaca.
Apesar disso, ela conta haver uma rejeição entre os alunos no começo da obra – “livro chato”, eles dizem –, mas logo esse pé atrás é deixado para lá quando os jovens veem as implicações físicas e comportamentais dessa história na atualidade.
A aposentada Betânia Moura lança seu olhar à índia de José de Alencar munida de linha, agulha e telas. Ela integra o projeto Iluminuras, que une literatura e bordado. “Iracema é um mito que representa nossa nacionalidade. Ela gera o primeiro filho do Brasil”, conta Betânia.
As bordadeiras que participam do projeto do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC) leram a obra lançada há 150 anos e agora estão preparando telas sobre momentos da narrativa.
Betânia afirma encontrar paralelo entre a força da mulher cearense e a personagem. “Ela é muito independente, larga a tribo dela em busca de amor e gera um filho corajosamente. A Iracema é também muito ligada à espiritualidade, tem essa coisa ritualística”, compara, destacando as semelhanças do mito com as “Iracemas de hoje”.
Para o professor Régis Lopes, do Departamento de História da UFC, muitas são as interseções entre a saga da índia e a identidade brasileira. “Existem muitas marcas urbanas da Iracema no Estado, mas a história dela tem outras marcas na dimensão da identidade do povo cearense e brasileiro”, aponta.
Entre as questões levantadas por Régis está o caráter migrante. “Moacir, filho de Iracema, passa pouco tempo aqui e vai embora levado por Martim. Ele é migrante. Seria o destino do cearense ser migrante, então?”, indaga.
“Iracema é a obra que nos dá esse registro da nossa formação de povo e raça”, sintetiza Marcelo Peloggio, professor do curso de Letras da UFC e pesquisador da obra de José de Alencar. Para ele, porém, a marca de Iracema (anagrama da palavra América) transcende as fronteiras do Ceará. “A universalidade de Iracema está justamente no seu caráter mestiço, crioulo, brasileiro”.
Do livro lançado em 1865, a personagem se espalhou entre outras linguagens artísticas. No cinema, a índia ganhou o filme Iracema (1919), de Vittorio Capellaro. Depois disso, a personagem protagonizou também Iracema (1949), Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel (1979).
Nos quadrinhos, apareceu em Edição Maravilhosa, nº 31 em 1954, de André LeBlanc, sendo homenageada posteriormente com o título Iracema em Quadrinhos (2009), de Oscar D’Ambrosio (adaptação) e Jão (ilustração). Até no jogos eletrônicos a virgem dos lábios de mel ganhou homenagens. É a heroína em Iracema – O Game (2005), de Anderson Guedes, e Iracema Aventura (2006), de Odair Gaspar.
A construção da índia de Alencar como “lenda do Ceará” e a permanência do nome Iracema, especialmente em Fortaleza, também despertam olhares de crítica.
“Iracema é muito mais uma imposição a Fortaleza do que algo que a Cidade construiu”, formula o pesquisador Tiago Coutinho, que cursa doutorado em Memória Social, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estudos sobre a obra de José de Alencar.
Para Coutinho, é preciso atentar para peculiaridades como o fato de o escritor ter ido embora do Ceará ainda criança para morar no Rio de Janeiro e ter voltado ao Estado poucas vezes. “Alencar utiliza o argumento que é cearense e que tem autoridade para falar do Ceará”.
Coutinho pontua ainda que o autor do romance se dedicou também à política – tendo chegado ao cargo de ministro da Justiça – e que a intenção do escritor era destacar sua terra natal na literatura, mas também politicamente.
“Fortaleza comprou essa ideia. Há essa queixa de que a cidade é sem memória e Iracema é estrategicamente usada como esse símbolo”, aponta. Dentro da lógica do turismo, pondera o pesquisador, Iracema é vendida como uma história feliz.
“As estátuas tem muito da sedução e reforço de que Iracema é uma história de amor, mas é uma história de guerra. O amor é um pedaço dessa guerra”, diz, e questiona: “A gente está sempre cultuando Iracema, mas será que isso não está eliminando a possibilidade outros personagens aparecerem na história?”.
Para o professor Régis Lopes, do Departamento de História da UFC, o nome Iracema é muito mais conhecido que a personagem entre muitos fortalezenses. “O nome é muito famoso, a história em si não muito. As pessoas não se interessam muito em ler a obra, há uma certa dificuldade pelo vocabulário”, aponta.
“Os estímulos provocados pela presença de Iracema em Fortaleza, em tantas obras artísticas que a evocam, deveriam provocar ou aguçar o desejo em conhecer melhor a obra-prima de Alencar pela leitura do romance”, aponta a escritora Angela Gutierrez, membro da Academia Cearense de Letras.
“No entanto, devemos lembrar que, no que se refere aos habitantes da cidade, não temos ainda um grande público leitor, e que muitas pessoas se alimentam do romance apenas através da apreciação das obras”, completa.
Angela, porém, lança olhar otimista: “Tenho observado, no entanto, que há um crescente no estímulo aos jovens para a leitura do romance”, destaca, apontando que celebrar os 150 anos da obra é também despertar novamente o interesse para ela.
“Iracema há muito deixou de ser uma simples personagem de livro de ficção. Ela alçou à condição de mito”, aponta Ricardo Guilherme, ator, dramaturgo e diretor teatral.
O artista é autor, junto com Karlo Kardozo, de Iracema (Edições Demócrito Rocha), adaptação do romance de José de Alencar em linguagem mais acessível ao público infanto-juvenil.
Ricardo escreveu também o espetáculo teatral A Divina Comédia de Dante e Moacir, texto que conta a história do filho da índia. Para o ator, a personagem é metaforicamente a “mãe” de muitas outras histórias. “Ela nos acolhe e nutre, mas também nos coloca em dimensão trágica”.
Enquanto Ricardo Guilherme recorre a outras palavras para revisitar a Lenda do Ceará, o artista plástico J. Cardoso, de Ipu, usa as cores para se aproximar da personagem.
“É uma deusa, uma musa”, conta o artista, que compara a índia às musas de outros artistas como Leonardo Da Vinci, Michelangelo e Salvador Dali. Desde adolescente, ele produz diferentes versões da virgem dos lábios de mel, seja em gesso, barro, tela ou através do grafite.
Já o coletivo teatral curitibano Selvática Ações Artísticas prefere atualizar o mito por meio das mulheres de hoje. Inspirado no clássico de Alencar, o grupo criou o espetáculo Iracema 236ml - O Retorno da Grande Nação Tabajara, que lança olhar crítico e irônico à formação da cultura brasileira e destaca as “novas Iracemas”.
“Na Copa do Mundo 2014, por exemplo, os estrangeiros vinham para o Brasil e se encantavam com as mulheres daqui. Era como uma história contemporânea da Iracema”, compara a diretora Leonarda Glück.
Já a cantora e compositora cearense Mona Gadelha encontrou na música um diálogo com a personagem. Ela realizou o show Iracema – Do épico ao pop, uma interpretação sonora da índia. “Ela se tornou um ícone feminino com toda a sua carga simbólica”, aponta.
Na leitura de Mona, a mulher que abandona a tribo por amor e é deixada pelo homem amado acaba oferecendo o referencial de uma mulher forte. “Ela não é uma sofredora, mas uma mulher que luta, que ocupa o seu espaço e enfrenta as dificuldades”, diz.
Para o pesquisador Marcelo Peloggio, professor e Coordenador do Grupo de Estudos José de Alencar, o livro lançado há 150 anos tem status de obra-prima e, por isso, segue rendendo diferentes interpretações e releituras. “O Alencar conseguiu esse lugar dele e tem todo um aparato estético e filosófico por trás.
O livro expressa nossa humanidade pelo drama da índia tabajara”, aponta. Segundo ele, antes de buscar enxergar contextos e implicações a partir da obra, se faz necessário conhecer bem o romance. “É importante entender a obra na lógica interna. A partir disso, se descortina o livro com mais riqueza, com colorido próprio, especial”.
Quando nasci, minha mãe decidiu que eu seria Iracema. Ela apenas, como se eu fosse fruto só de seu sangue. Perdido em terras mal descobertas, meu pai vagueava sem saber explorar a própria pátria, exilado de um amor que me foi negado por tabela.
Cavara sua própria extradição e mergulhara nela, ao mesmo tempo em que eu, estrangeira, emergia no mundo. Mais tarde voltou para me observar crescendo, à distância porque assim eu parecia sempre menor. Minha mãe decidiu que eu seria Iracema, mas bem que poderia ser ela.
Nem a primeira e nem a última, apenas mais uma flor cearense que mal cresce e já se desgarra no vento—caindo, seca, soterrando-se de areia.
Quis ler a história que me nomeara assim que fui capaz. Desnudei-me nas matas antigas, onde tudo era virgem inclusive a esperança. Iracema morreu simplesmente, sem cerimônia ou discurso; nem mesmo a arara que a seguia lembrou-se para sempre, continuou voando até que tudo passasse.
Iracema passou, assim como o amor do homem que só a encontrara porque se perdera. Mais do que ela mesma, ele foi capaz de amá-la no fim; como lembrança, fantasma, lenda que é eterna porque nunca existiu. Guardei o livro como se sentisse que ele fora escrito pelo meu próprio sangue.
Não pelo tipo mais comum de pertencimento—eu era estrangeira porque era fruto de um amor exilado. Mas havia algo de mim naquelas palavras. E mais ainda de minha mãe.
Descobri que eu era também um fantasma. Fora batizada porque plasmava algo anterior a mim mesma. Eu era Iracema porque a minha mãe conhecera aquela primeira herança da terra. Porque ela passara também, apenas eu restara, escombros humanos.
Eu era a sobra de um amor que caiu no esquecimento, foi enterrado sem alardes mas com muita dor. A filha de uma mãe sem vida, uma mãe que perdera tudo que era dela para se fazer mulher. Virando uma, definhou, sem saber que esse era o destino das flores.
Sempre tive medo de amar. O que seria de mim se fosse vítima de uma amor estrangeiro que nunca bastava? E eu mesma, tão apartada de qualquer raíz, deslocada num mundo banido de si mesmo, que tipo de amor eu daria? Eu queria pertencer para sempre ou jamais.
Mas apenas o que eu tinha, disse mamãe, era a eternidade do fim.
Maria Luiza Artese - estudante de Psicologia.
Três quadras de onde Iracema se encontrava à espera do fim do turno para poder retornar para casa, o esgotado mar às suas costas revoluteava-se, indo e voltando em fortes ondas, lembrando-a que sua vida seria eternamente assim: como uma ressaca.
– Maldita vida! – resmungou para a escuridão.
Não foi sempre desse jeito. Num passado distante, com outro nome que fez questão de esquecer, costumava fitar o horizonte, ignorando o quanto aquele mar já estava poluído e distinguindo apenas o seu verde bravio: guardava a esperança de ser resgatada por um salvador de outra pátria, para não ser mais pária em sua própria terra.
Ainda jovem, no entanto, percebeu que a realidade ia além de romances idealizados, pois, com treze anos, foi oferecida para o tio Moacir como moeda de troca para saldar uma dívida da mãe.
Foi a última vez que chorou, menos pelo ato em si e mais pelo crescimento forçado, acompanhado da certeza de que o mar perdera seu verde e era, de fato, imundo. Assumiu-se à noite como Iracema.
Desde então, perdeu as contas de quantas pessoas gozaram seu corpo desvirginado e seus lábios – não de mel, mas de fel. Por cinquentinha, topava qualquer negócio: entregava-se de corpo, mas não de alma, que havia muito naufragara naquelas ondas sujas que insistiam no seu ir e vir.
“Antes eu tivesse morrido também”, lamentava-se.
Seus pensamentos só eram interrompidos quando, na escuridão, um carro ousava aproximar-se. Nele, um cliente em busca dos seus serviços. Entrava, satisfazia-o, recebia e saía.
Esse era o ritual. Um ritual de dor e sofrimento, em que Iracema transformava seu grito abafado de desespero em falsos gemidos de prazer. “Essa tormenta há de acabar”.
E acabou. No dia seguinte, o corpo de Iracema foi encontrado num carro abandonado à beira-mar. Um discreto esboço de sorriso percebia-se no seu rosto, enquanto, num mar sereno ao fundo quase não havia ondas.
Rafael Caneca - estudante de Letras.