Cidade Maravilhosa: esse era o destino de Renato Aragão. Após o convite da TV Tupi, o cearense levou mulher e filhos para o Rio de Janeiro sem olhar para trás. Se não emplacasse, seguiria como funcionário público. No começo, quase a mesma rotina de Fortaleza. De dia, advogado sério, terno e gravata.
À noite, serelepe comediante que fazia graça com o corpo, criava bordões e transformava a tela da TV num picadeiro. Um palhaço de cara limpa.
Pouco depois de chegar ao Rio, Renato conheceu Manfried Sant’Anna, aquele que seria seu parceiro mais conhecido. Artista do circo, fazia teatro, mas não queria conversa com televisão. Foi Renato quem o convenceu, quando lhe mostrou o script do programa AEIOUrca. “No primeiro encontro, no meu apartamento, ele perguntou ‘como é o seu nome?’ ‘Dedé’. E o seu?’ ‘Didi.’ Foi a primeira risada”, conta Dedé Santana, 79.
“Ali eu li o texto e perguntei pra ele: quem escreve isso? ‘Sou eu mesmo’, ele disse. E eu: Você? Rapaz, no dia que tu fizer o que escreve vai ser o maior comediante do Brasil. Não tem pra ninguém. Ele falou: ah, tu é palhaço mesmo”, lembra o parceiro, que, entre idas e vindas, continua sendo a principal dupla de Didi.
Já no terceiro dia, com o quadro “Legionários”, o programa emplacou e a dupla começou a chamar atenção. Renato deixava o emprego no BNB e assumia-se comediante profissional.
Logo Dedé e Didi foram contratados pela extinta TV Excelsior. O diretor Wilton Franco montava um programa para Wanderley Cardoso, a sensação da época, mas sabia que precisava de outros tipos para fazer a atração dar certo. Chamou, então, o herói do Telecatch Ted Boy Marino, o galã Ivon Curi e alguém que fizesse o público rir, um cearense franzino chamado Renato Aragão. Nascia o programa “Adoráveis Trapalhões”, o primeiro sucesso nacional do personagem Didi. “Cada um tinha a sua função, todos querendo fazer graça, mas a graça que dava certo era a do Renato”, conta Américo Picanço, que, além de compor o elenco, era assistente de direção.
À medida que o programa atingia picos de audiência, a Globo ia seduzindo os protagonistas. Menos Renato, que temia ser mandado para a geladeira. Assim, o quarteto de “Adoráveis Trapalhões” foi desmontado. O programa acabou tempos depois, com a falência da Excelsior. Já conhecido, Renato recebeu convite da TV Record. Ele teria uma hora, aos domingos, para concorrer com o Fantástico, a grande aposta da concorrente.
No livro Os Adoráveis Trapalhões (Matrix), Luís Joly e Paulo Franco contam que o diretor Paulo Machado já tinha até escolhido o nome da atração. “Os insociáveis”, embrião do fenômeno que viria depois. Ali, Renato, Roberto Guilherme e Antônio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum, trazido por Dedé Santana diretamente dos Originais do Samba, formavam o quarteto.
A Tupi Rio foi a paragem seguinte do grupo, quando adotam o nome “Trapalhões” e, em vez de Roberto Guilherme, conta com Mauro Faccio Gonçalves, o Zacarias, batizado pelo cearense.
Apesar da audiência, o quarteto sofria com atrasos nos salários. Depois de aborrecimentos, Renato acabou migrando com todo o grupo para a emissora em que permanece até hoje. Em março de 1977, começa o fenômeno “Os Trapalhões”.
André Carrico, doutor em Artes (Teatro) pela Universidade Estadual de Campinas, ator, professor e pesquisador de comédia popular
“Os Trapalhões” foram um dos maiores fenômenos da cultura popular de massa no Brasil. Oriundos de diferentes escolas cômicas, seus integrantes compuseram seus tipos (Didi, Dedé, Mussum e Zacarias) alicerçados por práticas cômicas dos artistas de circo, rádio e teatro de revista. A poética trapalhônica atualizou o repertório cênico desses gêneros, ao combinar o talento de seus membros aos procedimentos que cada um trouxe para a TV. O motivo do sucesso do quarteto junto ao público foi a promoção de uma síntese das principais vertentes da comédia popular brasileira.
Mas o projeto dos Trapalhões não surgiu apenas por obra do acaso. Ele foi fruto de um plano de comicidade pensado e coordenado pela extraordinária visão artística de Renato Aragão. Desde os primeiros anos de sua carreira na televisão, na década de 1960, no Ceará,o cômico foi estruturando em torno de seu tipo Didi um sistema de elementos dramatúrgicos e recursos de atuação. Mais tarde, no Rio, amparado pela precisão técnica de Dedé – foram convocados para seu programa outros bufões (Antônio Carlos e Mauro Gonçalves). Cada qual aportou um tipo de função definida e combinou códigos e repertórios heterogêneos e complementares. A partir de 1974, eles deram a formação definitiva do grupo “Os Trapalhões”.
Se Renato Aragão desenvolveu sua pantomima assistindo a filmes de chanchada com o circense Oscarito, Dedé estreou no picadeiro numa peça de circo-teatro aos três meses de idade. Além de palhaço, exerceu outras funções sob a lona, como acrobata, malabarista e trapezista. Antônio Carlos Bernardes Gomes começou sua carreira como músico dos Originais do Samba em revistas dirigidas por Carlos Machado. Talvez não tenha sido à toa que o nome de seu personagem, Mussum, foi batizado por Grande Otelo, oriundo da revista e estrela das comédias musicais da Atlântida. Conhecido por sua habilidade em imitar vozes, Mauro Gonçalves estreou nos anos 1950 na rádio Inconfidência de Belo Horizonte criando diferentes personagens em programas humorísticos. A formação de cada artista influenciou na composição de seus tipos e a mistura dos procedimentos cômicos dessas escolas de comédia se traduziu na pluralidade deles. Didi, Dedé, Mussum e Zacarias: um ingênuo, um enfezado, um pretenso malandro e outro malandro de fato. Um feio preterido, um galã conquistador, um tarado grosseiro, um bebê delicado. Um gosta de samba, outro de cantar, dois são acrobatas. Juntos desenham o mapa do Brasil dos excluídos: um nordestino, um caipira, um favelado e um galã de periferia. Eles formavam “quatro pernas de uma mesa”, no dizer de Aragão, e a ausência de qualquer um deles esvaziaria a comicidade do grupo.
Didi, por seu carisma, sobreviveu ao fim dos Trapalhões. Ele segue como o Carlitos brasileiro, o mendigo maltrapilho que caminha à margem da estrada e da sociedade. Ao vê-lo, o público cúmplice projeta seu desejo de liberdade. Corajoso, bom de briga, ele é nosso herói. Mas, como todo palhaço, também desperta lágrima, seu lado pierrô. No final melancólico dos filmes, recusa fortunas e perde a mocinha para o galã. Mesmo assim, Didi não se importa: o que ele quer é viver sem compromisso e feliz. Em 2015, o criador chega aos 80 e sua criatura, aos 55, em plena vitalidade, fazendo teatro e telefilmes. Didi é um ícone da cultura popular de massa que segue a despertar interesse e identificação em diferentes faixas etárias.
Quem foi criança nas últimas cinco décadas deve se lembrar das filas intermináveis para ver os filmes dos Trapalhões. Onde fossem exibidos, eram certeza de grandes bilheterias. E esse sucesso começa bem antes do quarteto, segundo Dedé Santana. O primeiro filme da dupla Didi e Dedé, o Na onda do iê-iê-iê (1966), “foi um estouro”.
“Pra fazer esse primeiro filme foi difícil, ninguém acreditava na gente. Mas o irmão do Chacrinha disse: ‘a era do preto e branco acabou, agora é só colorido. Como eu tenho um resto de negativo, pra não jogar fora, faço esse filme com vocês’. O Chacrinha entrou também, e aí foi o primeiro filme nosso”, narra o eterno trapalhão. Fazer cinema, tal seus ídolos Oscarito e Chaplin, era antigo desejo de Renato Aragão. E o lançamento da primeira aventura cinematográfica foi em Fortaleza.
Mas Renato, tímido como sempre, tinha medo de estrear aqui. “Nós fomos pro Ceará em première. E ele: ‘Santo de casa não faz milagre. Não vai dar certo!’. ‘Rapaz, vai sim!’, eu dizia. A primeira sessão nossa era 14h, às 9h o dono do cinema bateu na nossa porta, dizendo: vocês têm de ir pra lá agora, senão vão quebrar o cinema. A Praça do Ferreira, onde tem o São Luiz, lotada. E o Renato com medo, não queria passar o filme no Ceará. ‘Pô, todo mundo me conhece aqui!’. Ele era meio acanhadão”, relata Dedé.
Com o sucesso na Globo, que durou até 1995, com a formação clássica Didi, Dedé, Mussum e Zacarias, fazer os filmes já não era tão difícil. Mesmo sem financiamento do governo, os outros produtos da marca Trapalhões - como CD’s e quadrinhos, além dos shows da trupe -financiavam as empreitadas. A Renato Aragão Produções, empresa criada em 1977 pelo humorista cearense, também foi fundamental. Renato construiu um grande estúdio na Barra da Tijuca, no Rio.
Ainda em 1977, O Trapalhão nas Minas do Rei Salomão levava 5, 8 milhões de espectadores para o cinema, ainda hoje uma das cinco maiores bilheterias nacionais. Quando esticamos a lista dos filmes mais vistos, aparecem ainda Os Saltimbancos Trapalhões (1981), com público de 5 milhões de pessoas, e O Casamento dos Trapalhões, de 1988, com 4, 7 mi. Para a crítica de cinema Andrea Ormond, o sucesso nas telonas se deve ao fenômeno na TV.
“O cinema se demonstrou uma extensão do projeto que já era viabilizado pelo sucesso semanal, nas residências de todo país. Somando os talentos individuais (da própria trupe e dos diretores J.B. Tanko e Adriano Stuart), além do humor que hoje parece tão politicamente incorreto, Os Trapalhões estavam no lugar certo, na hora exata”, analisa a autora do blog Estranho Encontro.
A pesquisadora observa, ainda, como a trupe se adaptava ao sair do formato televisivo para o cinematográfico. “Não seria possível transplantar os esquetes e o timing puro e simples do programa dominical para a sala escura do cinema”, ressalva. “Em Os Saltimbancos Trapalhões, também temos um aspecto que não pode ser esquecido: a presença de Chico Buarque nas canções. Tanko criou, a partir desses versos, cenas que tocaram inúmeras pessoas, como a do momento em que a trupe exclama que ‘são fortes e não há nada a temer’”.
André Carrico, doutor em Trapalhões pela Unicamp, acredita que, apesar de se adaptarem ao novo formato, “mesmo quando eles tinham outros nomes, continuavam sendo o Didi, o Dedé e o Mussum e o Zacarias. As pessoas iam pro cinema não pra ver o filme, elas iam pra ver os Trapalhões, a história era só um pretexto.”
* Especial publicado no O POVO em 13 de janeiro de 2015
O circo do palhaço sem máscara