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Samambaias gigantes, cabras e desertificação
Reportagem Seriada

Samambaias gigantes, cabras e desertificação

A 3.500 metros da Praia da Calheta, um samambaial incomum evoca um cenário primitivo. Ao mesmo tempo, há trechos na ilha com desertificação avançada

Samambaias gigantes, cabras e desertificação

A 3.500 metros da Praia da Calheta, um samambaial incomum evoca um cenário primitivo. Ao mesmo tempo, há trechos na ilha com desertificação avançada
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O biólogo Allan Laid Alkimim Faria, 34, é costumeiro em expedições por Trindade. Acadêmico do doutorado de Botânica da Universidade de Brasília (UnB), o cientista já percorreu cinco vezes os 1.200 quilômetros quadrados que separam o continente da ilha brasileira, fincada num extremo do Atlântico Sul.

Viajou, recorda o pesquisador, tanto em navios de ponta quanto em embarcações sofríveis. Em uma das incursões, o alojamento era num contêiner e uma tempestade em alto mar o fez passar por maus bocados. Mas nunca cogitou desistir da pesquisa.

Atualmente, ele e um grupo de cientistas do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro investigam a existência surpreendente de uma floresta de samambaias gigantes (Cyathea delgadii) em Trindade. Atualmente, o grupamento de plantas representa o que há de mais exuberante quando se fala em cobertura vegetal. No passado, segundo estudos, uma selva densa se desenhava na ínsula vulcânica (ler página 10).

As samambaias chegam a 6 metros de altura e têm uma copa dividida em até dez galhos com folhas no prolongamento. Samambaias que se desenvolveram além do comumente observado no continente ou em habitat semelhante à região do maciço de Baturité, no Ceará, por exemplo. “Queremos saber se é uma espécie nova e endêmica (que só ocorre lá)”, pontua Allan Faria.

Grilo, na Ilha da Trindade, no Espírito Santo. (Foto: Demitri Túlio/Acervo Pessoal)(Foto: Demitri Túlio)
Foto: Demitri Túlio Grilo, na Ilha da Trindade, no Espírito Santo. (Foto: Demitri Túlio/Acervo Pessoal)

Para se chegar ao samambaial é preciso ter fôlego na subida da trilha do Desejado (3.100m) e, de lá, descer para a Fazendinha (3.500m) – porção de Trindade onde a mata bonita reina. A tese do doutorado de Allan Faria quer mapear os caminhos por onde as espécies aportaram e se desenvolveram ali no topo da ilheta.

“O principal fator de dispersão de plantas criptógamas (plantas que não se reproduzem por meio de flores) é o vento. Elas chegaram do continente ou de outras ilhas do oceano Atlântico, que ficam próximas”, arrisca.

Investigar criptógamas em Trindade é a especialidade do botânico brasiliense Allan Faria, em especial as briófitas. Durante o mestrado, ele foi o primeiro cientista a catalogar as 32 espécies de briófitas que ocorrem no ilhéu.

“Riqueza grande comparada a Fernando de Noronha, que tem uma área bem maior do que Trindade. Sendo que em Trindade existe a espécie Campylopus fragilis subsp. Fragiliformis, endêmica da Mata Atlântica e que ocorre somente em Rio de Janeiro e Minas Gerais”.

Entre 2010 e 2011, foram coletadas 431 amostras de briófitas em Trindade e os estudos apontaram para 32 espécies diferentes no bioma dali. E o qual a importância disso? De acordo com Allan, o grupo vegetal possui funções ecológicas importantes como indicadores da qualidade do ar e água.

Além disso, diversos animais vivem exclusivamente sobre musgos durante a vida. “As briófitas possuem propriedades anticancerígena, anti-inflamatória e alelopática (de produzir substância química que influenciam no desenvolvimento de outra planta). São produtoras ainda de antibióticos e antivirais”, observa o botânico.

 

Cabras e Desertificação

Numa pedra pintada em terra firme está escrito que “até 1850, cerca de 85% da ilha da Trindade era coberta por exuberantes árvores Colubrinas ”. O texto, sem autoria, gera surpresa em quem chega, hoje, por ali.

É que os sinais de uma erosão avassaladora fazem duvidar que naquela porção isolada do Atlântico Sul existiu, um dia, vegetação de encher os olhos (exceção da floresta de samambaias gigantes). Mais ainda, que um rebanho de cabras (introduzida pelos navegadores ingleses no século XVIII) tenha sido responsável pela devastação de grande parte dessa floresta abundante.

Carcaça da última cabra da Ilha da Trindade, no Espírito Santo. (Foto: Demitri Túlio/Acervo Pessoal)(Foto: Demitri Túlio)
Foto: Demitri Túlio Carcaça da última cabra da Ilha da Trindade, no Espírito Santo. (Foto: Demitri Túlio/Acervo Pessoal)

Foi Edmund Halley, astrônomo que dá nome ao cometa, quem primeiro teria deixado registros sobre a ocorrência da planta que atinge de 10 a 20 metros de altura. Em abril de 1700, Halley “coletou material de história natural, comentando ter encontrado o lado N (barlavento) densamente povoado por grandes árvores de madeira vermelha que atribuía ser Pau-Brasil”.

Ruy José Válka Alves, pesquisador do Museu Nacional, afirma no livro Ilha da Trindade & Arquipélago Martins Vaz – um ensaio sobre botânica que “atualmente sabe-se que essas árvores correspondem à Colubrina glandulosa. As plantas por ele (Halley) coletadas foram identificadas pelo naturalista inglês Buchanan”.

A Colubrina glandulosa é uma árvore da família das Rhamnceae, que geralmente bota flor de outubro a dezembro, dando frutos de dezembro a fevereiro. Ela ocorre do Ceará ao Rio Grande do Sul e, segundo a sabedoria indígena e popular, é conhecida por saguaraji, sabiá-da-mata, falso-pau-brasil ou saguari. Além Halley, outros exploradores passaram por Trindade e anotaram a presença de “vegetação robusta”.

Caso de Ralph Copeland, astrônomo do observatório de Aberdeen, que em 1874 chegou ao ilhéu brasileiro no navio Vênus. “Havia uma quantidade tal da espécie Canavalia obtusifolia (feijão-da-praia) que o emaranhado de seus troncos rastejantes dificulta o caminho”, documentou Ralph. Mas em 1950, o cientista brasileiro Mello Filho fazia a ressalva de que “estas condições já não correspondiam à realidade”. 

Museu da Ilha da Trindade, no Espírito Santo. (Foto: Demitri Túlio/Acervo Pessoal)(Foto: Demitri Túlio)
Foto: Demitri Túlio Museu da Ilha da Trindade, no Espírito Santo. (Foto: Demitri Túlio/Acervo Pessoal)

Nos anos 1990, pesquisadores chegaram a conclusão de que a presença de pelo menos 400 cabras era impeditivo para renovação da flora nativa. A resistência caprina e a voracidade delas teriam derrubado o que havia de floresta. Só não comeram as samambaias gigantes porque seriam venenosas pra elas. Há cientistas que contestam.

Em 2005, conta o capitão-de-fragata Rodrigo Otoch, gerente do Protrindade, a Marinha teria abatido o último caprino. A carcaça de seu crânio (foto) está entre as poucas peças do pequeno e calorento “museu” que existe na ilha.

No livro Nos limites da Amazônia Azul – As ilhas de São Pedro e São Paulo e Trindade, de Antonio Marinho e Roberta Jansen, o pesquisador Ruy Válka afirma que “uma vez eliminada o principal problema - a cabra -, a vegetação começou a regenerar e já estamos recuperando os mananciais”.

Na época, o Museu Nacional iniciou um programa de reintrodução de espécies de plantas nativas e outras que fizessem frente á erosão dos solos. Mas os resultados ainda não impressionam quem percorre as trilhas da Ilha. (Demitri Túlio/demitri@opovo.com.br

Disputa por nutrientes e água

O desaparecimento considerável da “floresta nativa” é, talvez, a principal preocupação para pesquisadores em Trindade. Com uma cobertura vegetal que míngua, a desertificação vem tomando conta de grandes áreas da ilha e ameaça o que ela tem de mais valioso: as fontes de água doce.

Descrito por antigos exploradores, o lugar já foi cenário de quedas d´águas e vãos de córregos. Em janeiro de 1905, por exemplo, Michael J. Nicoll (ornitólogo e naturalista britânico) chegou ao pico do Desejado (3100 m) e enfrentou dificuldades no retorno para o navio Valhalla. “Tentou primeiramente descer pelo córrego da cachoeira em si, no que foi impedido pelo paredão da grande cascata, com uns 100 metros de queda vertical”.

Hoje, algumas pesquisas patrocinadas pelo CNPq tentam oferecer caminhos para que se proteja o que ainda há de flora e, por tabela, os aquíferos de água potável que restam por lá. O estudo Filogeográficos,Ecofisiológicos e Interações Químicas entre Espécies Nativas da Ilha da Trindade, da Universidade de Brasília (UnB), quer saber os motivos da mortalidade da espécie Cyperus atlanthicus quando esta entra em contato com a Guiladina bonduc.

Montanha, na Ilha da Trindade, no Espírito Santo. (Foto: Demitri Túlio/Acervo Pessoal)(Foto: Demitri Túlio)
Foto: Demitri Túlio Montanha, na Ilha da Trindade, no Espírito Santo. (Foto: Demitri Túlio/Acervo Pessoal)

De acordo com Nicholas Xavier, estudante de Engenharia Florestal da UnB enviado à ilha para colher amostras das plantas, a disputa das duas por nutrientes ou água estaria determinando a eliminação da Cyperus. A espécie abatida é uma gramínea (capim) que só ocorre em Trindade. Em um morro na trilha do Príncipe (1600 m), lugar onde foram coletadas amostras, é visível o fenômeno que se desenha em “halos” (foto) e é um dos fatores que contribuí com a erosão. 

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