Sete horas da noite de uma sexta-feira. Num campo de futebol society, no Montese, um grupo de homens se diverte jogando bola. São estudantes universitários, profissionais liberais, empresários, funcionários públicos. Têm entre 20 e 30 anos de idade e duas coisas em comum. A primeira, e óbvia, é o interesse em jogar futebol. A segunda é o fato de todos eles serem homossexuais.
O primeiro encontro da turma para uma partida informal aconteceu em maio último e foi decorrente de uma postagem no Facebook sobre práticas esportivas. Em um grupo fechado da rede social, os participantes começaram a declarar interesse em jogar futebol. A criação de um time para tal fim surgiu como consequência e o encontro foi marcado numa quadra esportiva pública.
“Éramos todos gays nesta conversa. Apareceram também algumas mulheres lésbicas e algumas pessoas trans querendo participar”, lembra o estudante universitário Renan Ridley, um dos fundadores do grupo. “No dia do racha, a gente teve pouca participação das lésbicas e trans, e acabou virando um time gay mesmo. Trocamos telefones, foi criado um grupo de WhatsApp e aí a gente começou a marcar periodicamente”.
Nestes últimos dois meses, os encontros para “bater uma bolinha” passaram a acontecer uma vez por semana. O grupo ganhou novos integrantes e surgiu a ideia de transformá-lo num time formal. Assim nasceu o Cangayceiros Futebol Clube, nome criado para a um só tempo sinalizar a orientação sexual de seus jogadores e reverenciar a regionalidade da agremiação. A equipe já tem até marca própria e proposta de uniforme pronta, mas ainda é um projeto.
Explica-se. Antes de se oficializar como time, o grupo está passando por uma espécie de preparação dos jogadores. “A gente não cobra que a pessoa seja um jogador profissional, que saiba jogar bola. A gente tem se ajudado. Quem entende um pouco mais de futebol ajuda quem entende menos”, pontua Ridley. “Por enquanto, somos um grupo de homens gays que gostam de futebol e se reúnem toda semana para jogar. Desse grupo é que sairá o time, ou mais de um time, quem sabe? Nossa ideia no futuro é realizar um campeonato”.
A pontuação de Ridley tem razão de ser. Vários dos participantes do grupo, apesar de há muito terem interesse por futebol, não jogavam antes por temer demonstrações de preconceito homofóbico. É o caso do engenheiro de alimentos Jonathan Maia, que só agora, aos 30 anos, está entrando em campo. Literalmente.
“Eu não jogava futebol. Eu me sinto muito hostilizado jogando com homens héteros. Então, isso era um empecilho para mim”, explica Maia. “Por isso que a proposta de ser um time gay facilitou para eu estar aqui hoje. Eu sou um desses que está sendo ajudado pelos mais experientes, porque eu não tinha intimidade com o futebol. O medo de ser alvo das piadinhas preconceituosas sempre me impediu de jogar”.
Relatos de preconceito deste tipo não são exclusividade dos iniciantes em dribles, passes e gols. Entre os integrantes do grupo também são comuns os que jogaram futebol na infância e adolescência e pararam de jogar quando assumiram sua homossexualidade. Mais uma vez, a razão da desistência foi o incômodo em atuar em times compostos por jogadores majoritariamente heterossexuais e homofóbicos.
“Eu mesmo jogava futebol, quando era mais novo. E deixei de jogar. Tanto pela falta de tempo quanto pelo receio de, em sendo um gay já assumido, sofrer algum tipo de preconceito. O futebol, infelizmente, ainda é um esporte onde há muito preconceito”, afirma Ridley.
Mesmo em grupo, os integrantes do Cangayceiros foram vítimas de homofobia recentemente, num campo de futebol que alugaram para seu racha semanal. Enquanto jogavam, outros homens que assistiam à partida do lado de fora do campo começaram com as tais piadinhas. “Um deles até falou: ‘Oxe! É tudo viado e tão jogando futebol? Como é que pode?’”, lembra Ridley.
O estranhamento do observador desavisado corre o risco de, em pouco tempo, ficar datado. Nos últimos dois anos tornaram-se cada vez mais comuns no Brasil times de futebol gay e campeonatos específicos disputados por estas equipes.
É o caso da Champions Ligay, criada em 2017, e cuja edição deste ano foi disputada por 24 times. Assim como a 2ª Copa Internacional de Futsal LGBT, ocorrida em junho último, e que contou com a participação de agremiações de oito cidades, entre elas Montevideu (URU) e Buenos Aires (ARG). Aliás, o nome do time argentino que competiu nesta Copa diz muito deste novo momento: Gapef, sigla para “Gays Apasionados por el Fútbol”.
Outro nome também muito significativo é o BeesCats Soccer Boys, primeiro time de futebol gay do Rio de Janeiro. Fundada há dois anos, a agremiação foi a campeã da Champions Ligay 2019 e tem sua história contada no premiado documentário Soccer Boys, de Carlos Guilherme Vogel, que está na programação do Canal Futura.
Em tempo, BeesCats Soccer Boys é um bem-humorado trocadilho, que brinca com “Soccer Boys”, garotos do futebol, em inglês, e a sonoridade de sua pronúncia: “Biscates só quer boys”.
Quer seja pelo humor, quer seja por posicionamentos políticos - como foi o caso das declarações recentes de Megan Rapinoe, lésbica assumida, atacante da Seleção de Futebol Feminino dos Estados Unidos - o fato é que existe um movimento recente e consistente de aproximação da população gay deste esporte, considerado até então um território, senão exclusivo, predominantemente heterossexual.
“A nossa ideia de formar esse time, e depois realizar o campeonato. é justamente contribuir para quebrar esse paradigma de que gay não gosta de futebol, de que gay não joga futebol porque este é um esporte de homens héteros. Não! A gente quer mostrar que a gente pode, sim, jogar futebol. Porque o futebol é um esporte que não depende de gênero nem de orientação sexual”, arremata Jonathan Maia. Ou melhor, lacra mesmo.
SERVIÇO
Quem se interessar em integrar o grupo de futebol Cangayceiros Futebol Clube deve seguir @cangayceirosfc no Instagram e enviar uma mensagem via direct.