Ana Márcia Diogénes é jornalista, professora e consultora. Mestre em Políticas Públicas, especialista em Responsabilidade Social e Psicologia Positiva. Foi diretora de Redação do O POVO, coordenadora do Unicef, secretária adjunta da Cultura e assessora Institucional do Cuca. É autora do livro De esfulepante a felicitante, uma questão de gentileza
O podcast “CPF na nota”, da Rádio Novelo, de 16 de janeiro, causou um desassossego – necessário – no mercado editorial brasileiro e nas relações de gênero. Fatos relatados pela escritora Vanessa Barbara sobre o fim do casamento, há 14 anos, com André Conti, atualmente um dos sócios da editora Todavia, envolvem denúncias de misoginia.
O episódio revela que o marido integrava um grupo de escritores, jornalistas e editores, homens, que objetificavam as mulheres e trocavam detalhes de relacionamentos por e-mail.
Digo que é um desassossego necessário porque um assunto deste tipo ultrapassa a questão de que separações entre casais costumam ser conflituosas, assim como está além do fato de que as pessoas envolvidas fossem ou não imaturas naquela ocasião.
O conteúdo de um dos e-mails vazados do tal grupo aponta que quando um não quisesse mais ficar com uma garota, tinha que informar aos demais. Uma espécie de aviso de trânsito livre.
Questões assim, de machismo estrutural, não perdem a validade. E nem mudam simplesmente com pedido de desculpa, como os integrantes do grupo fizeram nos últimos dias. O que temos nesta situação é uma prática que atravessa séculos: o homem considerar a mulher como alguém sem individualidade, a quem possa subjugar, brincar com os sentimentos, usar o corpo e largar quando passa a atração, como um objeto.
Não falei de amor porque não cabe em relações desiguais. E a ciência explica. Artigo publicado em 2020, por Valeska Zanello, professora de psicologia clínica da Universidade de Brasília (UNB), indica que a existência de grupos assim, de “brothers” está relacionada com o conceito de “casa dos homens”. O artigo é o resultado de investigação em conteúdos compartilhados entre homens em grupos de WhatsApp.
O conceito, do sociólogo francês Daniel Welzer-Lang, é uma metáfora sobre a construção da masculinidade. Nele, a figura de uma casa em que se tem que atravessar de um quarto para outro para chegar ao fim remete à introdução e testagem na masculinidade entre homens. O mundo masculino seria uma eterna prova – entre homens – de dar amostras. Ou seja, nunca acaba. A pressão entre os próprios homens faz com que, para não serem excluídos, sigam reforçando o machismo e a misoginia.
E isso acontece no cotidiano, em todas as profissões. Quando eu trabalhava em redações jornalísticas, soube de casos que nunca esqueci. Num deles, um fotógrafo que chamou uma repórter para o laboratório fotográfico, para que ela visse a foto de uma matéria que trabalharam juntos. Lá, ele colocou a mão dela no pênis dele. O fotógrafo foi demitido porque a jornalista denunciou o caso à chefia. Alguns colegas que souberam do assédio se posicionaram contra a demissão, porque ele era pai de família.
Em outro caso, um repórter metido a conquistador contava para os amigos da redação sobre todas as meninas com quem tinha mantido relações, dando detalhes da performance sexual. E a cada funcionária nova que chegava ele e os amigos ficavam conversando sobre quem ia conseguir levar para a cama primeiro. Fora os episódios de políticos enxeridos que colocam a mão nas pernas das jornalistas, como se fosse “sem querer”.
O episódio da Rádio Novelo traz a necessidade de se romper, urgentemente, com a cumplicidade masculina. Homens que encobrem assédios sexuais de colegas, que recebem mensagens de amigos falando de como iludem e traem suas companheiras, que curtem os detalhes de como o corpo das mulheres é retalhado em críticas, estão endossando a cultura machista.
Se a casa dos homens é um lugar sem fim, porque falta a eles coragem de romper com este silêncio cúmplice que é atravessado pelo gênero, como diz Zanella em entrevista ao jornal Nexo, cabe a nós, mulheres, nos unirmos e reforçarmos os muros internos e externos das fortalezas que somos. Esta mudança tem que ser liderada por nós, urgentemente. De forma pública, constante, sem tréguas.
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