Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.
Longe das grandes cidades, há belas descobertas a fazer sobre a história e a cultura ibérica. Não são dadas de bandeja aos viajantes, só aos curiosos dispostos a saírem da estrada principal e a se perderem nos pequenos caminhos de Portugal e da Espanha
Foto: Lanoyta/Wikimedia Commons
A prostituição sagrada no tempo de Tartesso
Em Zafra, na Extremadura espanhola, o plano era conhecer a residência senhorial dos duques de Feria — um palácio construído no século quinze, sobre as ruínas de uma fortaleza islâmica.
Trata-se de uma pequena cidade, onde os moradores cumprem com um rigor quase sagrado a tal sesta da tarde, e só se despertam na luz crepuscular do sol.
E a vontade de ganhar as ruas e praças é tanta que, mais parece, passaram um ano hibernando e abriram as portas das casas, de repente, em festa. Deste cotidiano ao sabor das horas, fui pelos descaminhos, atrás de passados mais longínquos.
Cancho Roano é um lugar no meio do nada, perdido na paisagem. De Zafra até lá, são cem quilômetros de uma estrada comprida e sem fim — reza-se para não se precisar de algo no caminho.
A corrida é para se chegar antes das duas, quando tudo fecha para o sono depois do almoço, ou tem-se de voltar no segundo tempo, das cinco da tarde às oito da noite.
Os horários do interior espanhol funcionam como um relógio. Devem ser levados a sério. No início, causam um estranhamento, depois adaptamo-nos, fazem parte da viagem.
Em Cancho, entramo-nos em território de uma capital chamada Tartesso. Um templo dedicado à prostituição sagrada, em honra da deusa da fertilidade Astarte — que é uma assimilação fenícia de outra deusa da Mesopotâmia, a Inanna, dedicada ao culto da mãe natureza e à exaltação do amor e dos prazeres carnais.
Com o tempo, Astarte recebeu novas responsabilidades, tornou-se também deusa da guerra, e recebeu cultos de sacrifícios de sangue e sexuais dos devotos. Por isso, no templo, há salas separadas para os embates sexuais.
A presença dos tartessos na Península Ibérica chegou com os fenícios. Grandes comerciantes de minérios, levavam o ferro, prata, estanho, ouro para todo o Mediterrâneo, isso há seiscentos anos antes de Cristo. Do sul da Espanha, navegavam até a Cornualha, na Inglaterra, e até Marselha, na França.
A zona de influência destes marinheiros alcançava, inclusive, Lisboa. Espalharam-se na região que hoje engloba Sevilha, Cádis e Huelva, sempre próximo das águas do rio Guadalquivir. E a próspera cidade de Tartesso tinha sua própria escrita e uma vida multicultural — durante quatrocentos anos.
Até que um dia, nas guerras pelo controle das rotas de mercadorias no Mediterrâneo, desapareceram abruptamente.
Antes de partirem, queimaram o templo e enterraram as ruínas — justamente porque era sagrado, e não se deixa um espaço sagrado, assim, ao léu.
Nesta região da Espanha, mais os arqueólogos escavam e pesquisam, mais acham maravilhas deixadas por eles. Desenterrado e recuperado, descobriu-se que o templo era pintado de vermelho e dele via-se toda a paisagem. Fico imaginando como seriam estes cultos.
Antes disso, o que eu sabia sobre os tartessos? Nada, uma ou outra frase perdida nos livros escolares sobre os fenícios, o que me deixou a memória de uma bruma em torno da história destes navegadores. Talvez por isso amo viajar, para encontrar o passado que continua vivo, entre nós.
Esta prática da prostituição sagrada, que existia em outras culturas, como perdurou e transformou-se? Sai de lá com muitas perguntas na cabeça. Perguntas que eu não tinha antes, e que encontrei aprendendo sobre este povo.
Quis trazer um pedacinho da história de Tartesso para lembrar que há (sempre houve e sempre haverá) outras formas de pensar, de acreditar e de existir. E elas permanecem. Bem-hajam todos, como dizem os portugueses.
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