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Minha gata abençoada em Roma, post mortem
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Editora-adjunta do O POVO+ especializada em ciência, meio ambiente e clima. Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é premiada a nível regional e nacional com reportagens sobre ciência e meio ambiente. Também já foi finalista do Prêmio Einstein +Admirados da Imprensa de Saúde, Ciência e Bem-Estar na região Nordeste

Catalina Leite ciência e saúde

Minha gata abençoada em Roma, post mortem

Papa Francisco em algum lugar recebeu minha Luna. Rezo que ele receba com igual amor e tristeza os animais silvestres do Brasil
Tipo Opinião
Khaleesi (à esquerda) e Luna (à direita) na Basílica de Santa Maria la Mayor (Foto: Diana Trujillo/Acervo pessoal)
Foto: Diana Trujillo/Acervo pessoal Khaleesi (à esquerda) e Luna (à direita) na Basílica de Santa Maria la Mayor

Hoje amanheci chorosa com mensagens da minha irmã mais velha, Diana. Ela está em Roma com o marido e levou, de surpresa, duas fotos da minha gatinha recém-falecida, Luna, para serem abençoadas na Basílica de Santa Maria la Mayor. É lá onde o papa Francisco foi enterrado.

Não somos religiosas, mas somos profundamente admiradoras de São Francisco de Assis e apegadas ao papa Chiquinho (como o chamávamos na intimidade de nossas conversas). Por isso, Diana queria visitar o túmulo do papa e pedir a benção dele para Luna e para Khaleesi, a gatinha dela também já falecida.

Tanto Luna, quanto Khaleesi passaram por mortes difíceis. Ou melhor, não a morte em si, mas os dias de vida antes de descansarem. Elas estavam muito doentes, Luna com uma suspeita de câncer agressivo, Khaleesi com uma doença neurológica; e a partida de ambas nos deixou em um luto diferente.

Nunca em nossa vida estivemos sozinhas. Estávamos sempre rodeadas de cachorros, gatos, patos, gansos, passarinhos que visitavam as árvores frutíferas, jabutis e iguanas (esses últimos sob nossos cuidados autorizados pelo Ibama). Mas Luna e Khaleesi foram nossas primeiras “filhas”.

O contexto de adoção delas foi quando Diana e eu, em anos diferentes, começamos a vida adulta de verdade. Começo de faculdade, vivendo em cidades relativamente novas, por nossa própria conta e risco. Luna e Khaleesi nos viram crescer e enfrentar os desafios e as aventuras de virar gente grande.

Assim, a partida delas parece ter doído muito mais, apesar de termos enfrentado muitos lutos caninos e felinos na infância. Quando acordei e vi a fotinha da Luna em Roma (a última na qual o rosto dela já não estava desfigurado pela doença), chorei um pouquinho.

Luna tinha 8 anos de idade e faleceu em 13 de junho de 2025, por uma eutanásia(Foto: Diana Trujillo/Acervo pessoal)
Foto: Diana Trujillo/Acervo pessoal Luna tinha 8 anos de idade e faleceu em 13 de junho de 2025, por uma eutanásia

Quis compartilhar isso aqui porque, não por coincidência, decidi assumir o desafio de ler o livro Quando as espécies se encontram, de Donna Haraway. Bióloga, filósofa e ecofeminista, Donna faz diversas reflexões que dariam para um sem-número de colunas.

No entanto, quero puxar uma sobre animais companheiros e a importância de compartilhar a dor de e com nossos animais. No livro, ela discute como é necessário compartilhar o sofrimento (não no sentido literal) com animais de laboratório — ou animais trabalhadores, como ela define.

Resumidamente, Donna defende que isso nos permite pensar nos animais como sujeitos com responsabilidade (a capacidade de responder) e, a partir daí, desenvolver estratégias que genuinamente almejem o bem-estar animal. Não como um check para o Comitê de Ética, mas como um ato de respeito e de companheirismo a um ser vivente.

Quando choro de saudades da Luna, minha dor não é restrita ao animal doméstico que perdi, mas ao indivíduo que se foi. Ninguém mais terá a personalidade dela, ninguém mais me tocará como ela, ninguém mais terá as manias dela.

Essa dor intensa me constitui como humana. Sou mais humana (e mais bicho) porque vivi com a Luna e com as dezenas de animais da minha história — e os que virão.

Em uma conversa com um biólogo, comentei sobre a morte da minha gatinha. Ele, tão falador e sorridente, logo esmoreceu. Disse que o luto de um animal é difícil de compartilhar; é tão pesado que assusta os outros. Na experiência dele, descobriu que precisava guardar o luto para si.

Eu também tinha medo do luto durante as semanas de internação da Luna, quando minha intuição já dizia que ela iria morrer. Eu sabia que conseguiria lidar com a morte dela, que conseguiria sustentar a decisão da eutanásia, mas temia não ser entendida e acolhida.

A minha felicidade, naquela sexta-feira, 13 de junho, foi receber tanto amor, carinho e compreensão pela minha equipe de trabalho. Foi ter recebido o direito de faltar ao trabalho e ao plantão. De poder ficar deitada na cama chorando o quanto fosse necessário, sem julgamentos.

Acredito que esse respeito nos aproxima cada vez mais do compartilhamento da dor que Donna discute. Quando Diana mostrou a foto das nossas gatinhas na Basílica em Roma, tive a sensação de que poderia levar as imagens de tantos outros animais…

Luna tinha suspeita de câncer e estava investigando uma doença respiratória há dois anos(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Luna tinha suspeita de câncer e estava investigando uma doença respiratória há dois anos

Aqueles que foram vítimas de correntões na Amazônia, de queimadas no Pantanal, de caça na Caatinga e no Cerrado, de enchentes nos Pampas e da fragmentação da Mata Atlântica. Quando vejo as imagens desses animais mortos, carbonizados, assustados e acuados, sofro como se minha gatinha morresse mais uma vez.

Afinal, devo a eles igualmente a possibilidade de crescer (respirando ar puro), de tornar-me adulta (explorando florestas) e de ser jornalista (lutando pela biodiversidade que eles mantêm em pé). Rezo que os Franciscos o recebam e os protejam. Amém.

Foto do Catalina Leite

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