Repórter do O POVO+ especializada em ciência, meio ambiente e clima. Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é premiada a nível regional e nacional com reportagens sobre ciência e meio ambiente. Também já foi finalista do Prêmio Einstein +Admirados da Imprensa de Saúde, Ciência e Bem-Estar na região Nordeste
Um conjunto de pequenas e grandes coisas cotidianas me fazem voltar à mesma reflexão sobre humanos e bichos. Já perdi as contas de quantos pombos atropelados vi, desprevenida, no caminho para o trabalho, sem comoção do entorno. De quantas vezes chorei com as vítimas dos incêndios nos biomas brasileiros; de em quantos macacos em gifs aparentemente inofensivos percebi sinais de estresse confundidos com sorrisos humanos. Ou sapos torturados com as bocas coladas, ou lesmas com sal.
Poderia elencar mais mil situações em que bichos são usados por humanos como bonecos de plástico sem gerar muita indignação. O ser humano insiste em ignorar que é bicho, porque não quer ser tratado como um. Ninguém quer morrer no meio da avenida e continuar sendo amassado por carros, sem uma lágrima derramada. Ninguém quer ser torturado, ser amarrado, ser abduzido de casa ou ser obrigado a deixar tudo para trás porque alguém ateou fogo ou arrastou com correntes tudo que você conhece.
Daí, em guerras, animalizam as gentes para justificar a fome, os bombardeios e o genocídio. Os palestinos estão, neste momento, sofrendo como os bichos aqui no Brasil. E ninguém se importa muito, porque não são brancos europeus — traduzindo para a lógica colonizadora, eles não são humanos. Assim como as pessoas em situação de rua também não são, o que justifica gente no conforto dos seus condomínios reclamando do barulho dessa “gentalha” que insiste em ocupar a praça pública, como quem reclama do cão da vizinha latindo à meia noite.
Do outro lado da moeda, amam humanizar os bichos para prendê-los. Um macaco-prego é anulado de sua natureza para ser enfiado em roupinhas, ter os dentes arrancados e simular sorrisinhos em vídeos para as redes sociais. O sorriso na verdade é medo, mas os humanos fazem questão de ler a situação como se na tela vissem um humaninho mais peludo. Que fofo, pensam, e desejam ter um macaquinho para também impor uma humanidade capaz de induzir a depressão, a ansiedade e a auto-mutilação. Você sabia que macacos enclausurados comem a própria mão de tanto estresse?
O que é pior? Ser bicho gente ou gente bicho? Eu não gostaria de ser nenhum dos dois. O querido Demitri Túlio publicou outro dia um vídeo de um veado-mateiro resgatado pelo Instituto Pró-Silvestre e pela Sepa com a reflexão de corpo extensão: “Não dá pra separar, quando toca fogo, quando desmata, quando torna a terra deserto é nosso corpo que despedaça e derrete.”
Me fez lembrar de uma entrevista com a filósofa Alyne Costa, daquelas que reconfiguram nosso cérebro e mudam nossa vida. Ela explicou que há diferença entre ser um humano e um terrano. O humano parte da individualidade, da desconexão com o todo, da superioridade também. O terrano, por outro lado, entende que é só mais uma forma de vida possível neste planeta gigante, e que depende de todos os outros para viver.
Ela diz assim: “Filosoficamente tem uma trajetória na obra do Bruno Latour e de outros autores ligados aos estudos da Ciência da Tecnologia, em que mais do que dizer ‘é humano ou não humano, e por isso é um sujeito ou não é um sujeito’, entende-se como sujeito todo aquele que age. Então a Terra, nesse sentido, se transforma em um sujeito, porque ela age e reage.”
Acho, também, que pouca gente desprende tempo para se sensibilizar com o que sofrem os bichos porque nunca viu um não domesticado na vida. Enfiados em cidades que invisibilizam a fauna, só aprendemos a reconhecer sentimentos em cães e gatos que abanam ou eriçam os rabos. Mas quem cresceu ainda com o canto dos passarinhos, o farfalhar das árvores com macacos, os sapos coachando à noite, as cobras rastejando pela grama e os vagalumes brilhando, de alguma maneira sabe que eles não são de plástico.
O povo rural, os povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas, naturalistas sem diploma e terranos natos, sabem praticamente tudo o que os biólogos sistematizaram nos livros. Foram eles que os ensinaram. São eles que continuarão ensinando. A ciência segue dedicada, com razão, em investigar a senciência e a consciência dos animais, mas quem convive com eles já sabe: eles são que nem a gente, porque a gente é que nem eles.
Se os humanos entendessem esse princípio básico, certeza que metade dos nossos problemas se resolveriam. E é bom que a grande ficha caia logo, porque nós temos pressa.
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