44ª Mostra SP: "O Charlatão" e a busca por nem celebrar, nem condenar
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
44ª Mostra SP: "O Charlatão" e a busca por nem celebrar, nem condenar
Longa da polonesa Agnieszka Holland faz retrato multidimensional de figura histórica controversa. Obra representará a República Tcheca no Oscar 2021
Apesar do título frontal e aparentemente definitivo, “O Charlatão” evita fechar-se em certezas muito irredutíveis. A pecha de charlatanismo colada no fitoterapeuta e herbalista tcheco Jan Mikolasek (1889-1973) não é posta nele pelo filme, mas sim por oponentes que temem e julgam os poderes de cura do protagonista tanto quanto os desejam. O longa da cineasta polonesa Agnieszka Holland apresenta um retrato biográfico complexo e zeloso de um homem, seu dom, seus afetos e os contextos políticos que atravessaram a eles ao longo da primeira metade do século XX. Exibido no início do ano no Festival de Berlim, a obra está disponível na programação da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
O método do herbalista consiste na análisea olho nu da urina de pacientes e a indicação de resolução dos problemas a partir de chás feitos com ervas naturais. Ao longo dos anos de atuação em parceria com o braço direito, Frantisek Palko, o fitoterapeuta e curandeiro atendeu milhares de pessoas, das empobrecidas que enfrentam filas intermináveis na frente da casa dele para ter chances de uma consulta a figurasde altíssimo escalão dos diferentes regimes que se sucederam no País ao longo da primeira metade do século XX.
Interessado na multidimensionalidade do protagonista, o filme - que aborda a história real de Mikolasek lançando mão de várias licenças poéticas fictícias - apresenta os impactos dos contextos políticos na atuação de cura dele entre a ocupação nazista ocorrida na República Tcheca entre o fim dos anos 1930 e a metade dos anos 1940 e a posterior implementação do regime comunista no País.
Acionado quando convinha, Mikolasek prestou serviços tanto a oficiais nazistas quanto a presidentescomunistas. Seja por um espectro ou outro, não deixou de ser agredido e perseguido. Mesmo tendo atendido até o presidente Antonín Zápotocký, teve a atuação profissional como alvo de desconfiança do regime pelo histórico de atendimentos a nazistas.
Após a morte do líder do País, as desconfianças do estado comunista contra Mikolasek se fortalecem e o levam a ser colocado em julgamento pela atuação profissional. Neste período, o protagonista é retratado pelo ator Ivan Trojan como uma figura séria, fechada, por vezes agressiva, comprometida com o trabalho e consciente do seu papel - são muitos os momentos que ele corrige personagens que se referem a ele como “doutor”.
Ao encaminhar o processo de construção de defesa do protagonista, o filme soma flashbacks à estrutura narrativa e começa a desvendar o personagem para além dessa fachada inicial. Parte da utilização deste recurso serve para contextualizar os métodos e dons do personagem, numa escolha que em si revela a confiança posta pelo filme no retratado.
Da participação de um jovem Jan em meio a conflitos de guerra ao trabalho como jardineiro, o filme concentra maior energia e tempo para retratar o início do contato que ele travou com uma curandeiraidosa, responsável por repassar a ele os ensinamentos que levaria para a vida.
Antes mesmo de aprofundar o método com a “mestra”, ele já tinha conhecimentos aguçados das propriedades de plantas e vegetais e demonstrava dons de cura. A origem da lida do protagonista, então, é mostrada pelo filme como um chamado com aspectos divinos.
Ainda na juventude, porém, Jan também apresentava comportamentosviolentos em diferentes contextos, dos mais aos menos "justificáveis". Esse lado é acentuado em outra "leva" de flashbacks que dão conta de um período em que Mikolasek já estava estabelecido na profissão, mas ainda trabalhava sozinho e, por isso, procurava um parceiro profissional.
A chegada de Palko (Juraj Loj) na vida do fitoterapeuta e a relação construída entre eles funciona como um elementorevelador de facetas afetuosas e violentas do protagonista. Ao passo em que revela-se mais vulnerável, também mostra potencial abusivo e egoísta.
Na imbricação entre os diferentes recortes de vivências pessoais, profissionais e políticas, "O Charlatão" retrata a multidimensionalidade possível de uma mesma figura ao compor um complexopanorama do protagonista que busca evitar condenações ou celebrações planas e reducionistas.
Mostra SP
Quando: até 4 de novembro Onde: filmes disponíveis na Mostra Play Quanto: cada filme custa R$ 6. É possível adquirir somente por cartão de crédito com bandeiras Visa ou Mastercard. Cada longa comprado fica disponível na biblioteca do usuário por até três dias e, a partir do momento que se comece a assisti-lo, são 24 horas para terminá-lo Mais informações: www.44.mostra.org
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