João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
Três curtas cearenses participam da 13ª edição do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, evento voltado para produções do Brasil, África, Caribe e outras diásporas
Curtas cearenses que participam da 13ª edição do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul - Brasil, África, Caribe e Outras Diásporas partem de invenções possíveis. Realizado pelo Centro Afrocarioca de Cinema, o evento ocorre de forma gratuita e virtual entre os 21 e 30 de outubro.
"Adventícios", de Abdiel Anselmo, mostra um rapaz em isolamento social que é surpreendido por um estranho vindo do céu. "Muitos festivais foram criando demandas para realizadores pensarem em produzir algo a ver com a pandemia. Demorei pra entrar nessa sintonia pois aqui em casa todo mundo ficou doente com sintomas parecidos aos da covid-19, o que gerou angústia, paranoia e sentimentos bem conflitantes. Todos surgiram de alguma forma para desenvolver a história", explica.
"O suposto vilão da história que nos quer preso pode ser nosso herói momentâneo", compara. Definindo o trabalho como "filme de um homem só", Abdiel utilizou câmera própria, editou, compôs a estética visual e sonora. "Foi um trabalho bem artesanal e experimental", resume.
Já "Preces Precipitadas de um Lugar Sagrado que Não Existe Mais", de Mike Dutra e Rafael Luan, surge da necessidade de colocar "personagens negros em evidência numa perspectiva que não reforçasse estereótipos comuns no cinema brasileiro".
"Ele fala de uma viagem interdimensional partindo de um acontecimento ordinário para construir uma imagem de ficção científica com base na história da diáspora negra", define Mike, no que Rafael complementa: "O protagonista atravessa o espaço-tempo após uma ruptura temporal motivada pelo desequilíbrio causado pelo extermínio da juventude negra".
"O processo criativo levou em consideração elementos do nosso cotidiano que se traduzem como situações geradas por essa condição diaspórica do corpo negro - tanto as violências simbólicas na relação do protagonista com personagens brancos, como elementos ancestrais incorporados na direção de arte, atuação, trilha sonora", elenca Rafael. É uma procura, aponta Mike, por "reconfigurar temporalidades e, assim, gerar um futuro possível para a população negra em diáspora".
"Hafsa", de Letícia Aguiar, mostra o encontro entre a personagem-título, jovem travesti, e Luna, presa numa relação abusiva. Com aspectos de drama, tragédia, filme de herói e espiritualidade, como lista a diretora, o filme deseja falar de vivências travestis além do lugar do sofrimento.
"Muitas vezes reduzem as narrativas de pessoas trans a serem trans e sofrerem por isto. O mundo é, sim, um lugar transfóbico e racista, mas as pessoas trans e negras mereciam protagonizar as demais histórias", afirma. Hafsa ocupa lugar de heroína não somente pelo impacto que traz à Luna, mas "porestar vivendo".
"A trama é sobre ela superando esse mundo, que tenta matá-la e a várias mulheres negras cis e trans, e se tornando uma protetora", define Letícia, ressaltando o fato da obra ser dirigida e protagonizada por travestis negras e ter equipe majoritariamente negra. "Sempre vi meu papel como realizadora de ser uma facilitadora para trazer vivências que não são tão visíveis, marginalizadas, e reconhecer a potência que o cinema tem como difusor de ideias, cultura e vivências", aponta.
"Eventos como o Encontro e iniciativas espalhadas pelo País, como a mostra Negritude Infinita, em Fortaleza, vêm pra reafirmar a necessidade de maior circulaçãode profissionais negros e produtos feitos por equipes pretas, além de ser uma janela que nos reconecta com nossas histórias através da fabulação e da produçãode imagem e sentido, coisas que ainda nos são negadas", finaliza Mike.
Entrevistas com realizadores
Abdiel Anselmo
O POVO - Vendo informações sobre “Adventício”, vi que ele foi feito no contexto do isolamento. De onde veio o projeto e de que forma ele foi concretizado? Abdiel - Durante o isolamento muitos festivais foram surgindo e criando demandas para os realizadores de pensar em produzir algo que tivesse a ver com a pandemia em si. Demorei um pouco pra entrar nessa sintonia, pois aqui em casa todo mundo ficou doente com os sintomas parecidos aos da covid-19, o que gerou uma angústia absurda, paranoia e sentimentos bem conflitantes. Todos os sentimentos surgiram de alguma forma pra desenvolver a história do "Adventício", que pode ter várias interpretações. Uma delas é o registro fantástico de um ser que pode vir tanto do espaço como da natureza terrestre para invadir o homem, modificando-o. Assim como pode ser uma forma de ver a disputa interior que a gente enfrenta entre ver que ao redor muitas pessoas não estão respeitando o isolamento, incluindo pessoas que você gosta ou respeita, e isso gera uma paranoia, uma vontade contraditória entre o querer ou não sair. Sendo que o suposto vilão da história que nos quer preso pode ser nosso herói momentâneo. Pelo menos essas discussões vieram à cabeça enquanto eu lavava a louça e organiza as cenas para depois escrever um pequeno roteiro. Em relação à produção, foi basicamente um filme de um homem só. Utilizei minha câmera, uns filtros de cor, tentei convencer um sobrinho a atuar - mas ele desistiu -, editei, pesquisei vários sons on-line gratuitos pra utilizar. Enfim, foi um trabalho bem artesanal e experimental.
O POVO - O Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul propõe, na sua base, a ligação da África com as diásporas. Para o seu trabalho e as suas vivências no cinema, de que forma essa ligação é importante? Abdiel - O Encontro de Cinema Negro (um dos primeiros festivais, aliás, para o qual ‘Adventício’ foi selecionado) é muito bom porque me fez conhecer alguns outros realizadores de diásporas que praticam um cinema plural que sempre busca dialogar com a ancestralidade ou com conflitos pertinentes à trajetoria do negro no mundo. O próprio nome do festival, Zózimo Bulbul, carrega a história de um cineasta que fazia de tudo e adorava experimentar. É nesse sentido que me conecto com eles, pela abertura que têm e o espaço que oferecem para nós, realizadores negrxs, mostrarmos nossos trabalhos e nos encontrarmos.
Mike Dutra e Rafael Luan
O POVO - Que temas e discussões de destaque o filme traz em discurso e forma? Rafael - O filme se utiliza de algumas tecnologias estéticas que possibilitam imaginar um mundo fantástico para personagens que historicamente ocuparam um lugar subalterno dentro dos regimes de representação do cinema. Na história, o protagonista atravessa o espaço-tempo após uma ruptura temporal motivada pelo desequilíbrio causado pelo extermínio da juventude negra. Considero isso a parte mais importante do subtexto no filme, existem outras referências mais óbvias e também importantes como a noção de um tempo suspenso entre o presente, o passado e o futuro, que se caracteriza principalmente por ser um lugar parcialmente seguro para o povo preto.
Mike - “Preces” fala de uma viagem interdimensional partindo de um acontecimento ordinário para construir uma imagem de ficção científica com base na história da diáspora negra. Deslocado para um espaço-tempo outro, nosso protagonista se organiza para realizar uma missão com intuito de reconfigurar as temporalidades e assim gerar um futuro possível para a população negra em diáspora.
O POVO - O Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul propõe, na sua base, a ligação da África com as diásporas. No filme - e nas vivências de vocês no cinema -, de que forma essa ligação é importante? Mike - Os diversos cinemas negros que hoje são possíveis no Brasil só puderam acontecer e acontecem porque alguns artistas pretos resolveram se organizar e bater de frente com o setor, que é essencialmente elitista e, por isso, embranquecido e colonizado. O filme “Alma no Olho”, de Zózimo Bulbul, é um peça chave pra entender como que a colonização e a diáspora operam na vida das pessoas pretas e como tudo isso se reflete numa produção audiovisual encabeçada por pessoas pretas e racializadas. Eventos como o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, assim como iniciativas espalhadas pelo País (como a mostra Negritude Infinita, que acontece em Fortaleza) vêm pra reafirmar a necessidade de uma maior circulação de profissionais negros e produtos feitos por equipes pretas, além de ser uma janela que nos reconecta com nossas histórias através da fabulação e da produção de imagem e sentido, coisas que ainda nos são negadas.
Rafael - A luta antirracista, apesar de ter suas particularidades em diversas partes do mundo, é intercontinental e isso de alguma forma repercute no filme. O processo criativo do curta levou em consideração vários elementos do nosso cotidiano que se traduzem como situações que são geradas por essa condição diaspórica do corpo negro. Nisso consiste tanto as violências simbólicas que são apresentadas durante a história, como a relação do protagonista Breno com os personagens brancos que surgem enquanto uma presença zumbificada no filme que tenta roubá-lo de alguma forma, como também os elementos ancestrais e que são incorporados através da direção de arte, atuação, trilha sonora.
Letícia Aguiar
O POVO - De onde veio o projeto de “Hafsa” e de que forma ele foi concretizado? Letícia - A parte de escrita foi feita por Eric Magda, que roteirizou, mas acompanhei o processo desde seu início. “Hafsa” vem do conceito de contar uma história sobre uma travesti negra, no filme interpretada por uma Juno Vicky Sullivan, não centrada na sua travestilidade. Muitas vezes reduzem as narrativas de pessoas trans em filmes e séries a apenas serem trans e sofrerem por isto. O mundo é sim um lugar transfóbico e racista, mas as pessoas trans e negras mereciam protagonizar as demais histórias. A personagem vinha de um outro projeto, a websérie “Dorothy”, onde já era interpretada pela Vicky. A concretização do processo se deu em parte graças a Vicky, não só protagonizando o projeto mas foi no celular dela onde conseguimos gravar. Quando se trata de projetos independentes sempre tratamos de imprevistos e no primeiro dia de gravação a câmera deu problema e tivemos de gravar com o celular da atriz. Esse foi um dos muitos imprevistos que lidamos em set, mas graças à equipe conseguimos concluir o projeto e apesar de certos problemas temos orgulho do filme e de onde ele conseguiu chegar. Foi graças ao esforço da equipe em conjunto que conseguimos realizar “Hafsa” e levar o filme para mostras fora do Ceará e Nordeste, sem contar com apoio financeiro de fora. 'Hafsa' foi a primeira obra do coletivo do qual fazemos parte, o coletivo de obras independentes Vesic Pis e é de extrema importância ter chegado longe com um filme dirigido por uma travesti negra, protagonizado por outra, com uma equipe quase inteiramente negra. Mas é necessário questionar porque essas obras são as que tem que ser realizadas na guerrilha, sem apoio, lutando pra pagarmos passagens e arcar com alimentação.
O POVO - Que temas e discussões, na sua leitura, mais se sobressaem no filme? Letícia - Pessoas trans sempre existiram sabe? É foda ligar a tela em pleno 2020 e saber que as chances de ver uma pessoa trans num filme são baixas e, se eu ver, ela pode ser morta, violentada, representada como uma prostituta e não existem muitas outras possibilidades. Não é essa nossa realidade, é o que o mundo cisgênero e transfóbico quer que sejamos. Abordar a realidade do que é ser travesti a partir da protagonista do filme era de extrema importância, pois Hafsa existe num mundo que a violenta de várias formas. Hafsa não é só uma heroína porque ela salva a vida da personagem de Luna (Nádia Lopes), ela se torna uma heroína no seu dia-a-dia por estar vivendo. A trama é sobre a protagonista superando esse mundo que tenta a matar, e várias mulheres negras cis e trans, e se tornando uma protetora. “Hafsa” é um filme sobre uma heroína, ou talvez uma anti heroína pela forma como ela lida com seu antagonista. É um filme com uma mensagem até que básica sobre sororidade entre mulheres negras, sobre Hafsa decidir canalizar a sua raiva para proteger mulheres cujas vidas estão em perigo graças a homens machistas e abusivos. Viajando pelo drama, pela tragédia, pelo gênero de filme de herói e espiritualidade, “Hafsa” é sobre muitas coisas. Daria inclusive para fazer um longa com todas as abordagens dos filmes. Espero poder ver mais mulheres trans e travestis negras como protagonistas. Seja de romance, de filmes de ação, filmes de espionagem, precisamos ocupar todos os gêneros cinematográficos.
O POVO - O Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul propõe, na sua base, essa ligação da África e suas diásporas. Como, pra você, essa ligação se dá no seu trabalho e vivência? Letícia - Como travesti negra e cineasta sempre vi o meu papel como realizadora de ser uma facilitadora para trazer vivências que não são tão visíveis e marginalizadas, reconhecer a potência que o cinema tem como difusor de ideias, cultura e vivências e fazer o uso dele para trazer luz a temas pouco abordados. Mostrar que representatividade realmente importa e mostrar que pessoas trans também estão presentes no ramo do audiovisual, dando voz as inúmeras vivências presentes entre essas pessoas. Apesar do ramo audiovisual ter bastante liberdade, é visível a ausência de pessoas trans produzindo, dirigindo e roteirizando, e claro o racismo também influencia muito na vivência de pessoas trans negras. Então resumidamente, o que eu quero com o meu cinema é potencializar narrativas de travestis negras para vivências além da marginalização.
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