Reflexões sobre processo criativo e afeto marcam "A Ilha de Bergman"
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
Ora a partir de elaborações mais cerebrais e metalinguísticas, ora optando por representações mais nostálgicas e romantizadas, há um "panteão" de filmes que se debruçam no próprio cinema. O que aproxima tais produções é o tema de partida, mas elas se destacam por múltiplas abordagens possíveis para a própria linguagem. Um exemplo recente e rico em forma e conteúdo é "A Ilha de Bergman", da diretora francesa Mia Hansen-Løve.
Evocando o cineasta sueco IngmarBergman, o longa acompanha um casal de cineastas que, em busca de inspiração e tranquilidade para escrever projetos de roteiros próprios, viaja até a ilha de Fårö, na qual o célebre diretor viveu, filmou e morreu. Envolta pela aura mítica do local e, também, pela "presença" de Bergman, a ainda iniciante Chris (Vicky Krieps) é atravessada por reflexões que vão do processocriativo às relaçõesamorosas, passando por cânone e sexismo.
Tony (Tim Roth), o companheiro da protagonista, é um diretor mais velho e experiente, cuja presença em Fårö também é composta pela apresentação especial de um longa assinado por ele no centro cultural da ilha.
O espelhamento entre Chris e Mia, criatura e criadora, não está somente na profissão que compartilham, mas em aspectos pessoais que constroem a personagem. A cineasta francesa, por exemplo, foi casada com o também diretor Olivier Assayas, mais velho e, a determinada altura do relacionamento entre os dois, mais experiente que ela.
O desequilíbrio da relação entre a protagonista e o companheiro é aprofundado a partir da figura do próprio Bergman, cultuado na ilha de maneira naturalmente reverente, mas desconstruído de maneira bem-vinda pelo filme. Há, sim, inspiração e reverência por parte de "A Ilha de Bergman" ao cineasta, mas também provocações que tensionam o contexto de genialidade dele — que teve cinco esposas e nove filhos, mas sempre priorizou o trabalho — e até a própria estrutura de uma cinefiliacanônica.
Todos esses aspectos, da relação dos dois às operações das estruturas patriarcais flagrantes no cinema ou no encontro amoroso, convergem para o próprio processocriativo da protagonista — que, afinal, está na ilha em busca de produzir um roteiro. Essas questões, bem como de outras que se sucedem na história, passam por elaborações muito a partir do que a personagem cria ali.
Se Chris é "criatura" de Mia, mais camadas são adicionadas ao jogometalinguístico proposto com o espaço que "A Ilha de Bergman" abre não só para as questões da personagem principal, mas também para a própriacriação — que toma para si o filme quando Chris compartilha com Tony a trama que escreve na ilha.
Ao enunciar ao companheiro a ideia que a move criativamente, a produção se abre para as presenças de Amy (Mia Wasikowska) e Joseph (Anders Danielsen Lie), personagens criados pela protagonista. A história dos dois jovens é majoritariamente emocional e romântica: um ex-casal cujo término foi malresolvido, eles se reencontram — e reaproximam — no casamento de uma amiga em comum.
A trama criada por Chris no longa ecoa a de um dos primeirosfilmes da própria Mia, "Adeus, Primeiro Amor" (2011), que narra o romance entre os adolescentes Camille e Sullivan até ele ser atravessado pela inevitável separação dos dois. Amy e Joseph, criados por Chris em "A Ilha de Bergman", são a continuidade de Camille e Sullivan, criados por Mia em "Adeus, Primeiro Amor".
Em entrevistas de promoção do lançamento do filme, a cineasta recusa a ideia de produzir obras "autobiográficas", apesar de confirmar utilizar elementos da própria vida nas construções narrativas. Ao site português C7nema, Mia afirmou sobre "A Ilha de Bergman": "É extremamentepessoal, o que não significa que é necessariamente autobiográfico no sentido clássico da palavra".
"Os meus filmes são sempre muito pessoais, mas mais do que autobiográficos eu diria que são reinterpretações da minha vida, das minhas experiências, atravésdaficção", apontou a realizadora.
Além da engenhosa engrenagem metalinguística e autorreferencial estabelecida pelo roteiro — as camadas de realidade e ficção, aqui, se multiplicam, confundem e sobrepõem de maneira a refletir a fina fronteira entre as duas na elaboração construída por Mia —, o filme desponta enquanto obra independente do conhecimentoprévio da filmografia ou da biografia da cineasta.
Isso porque, além da reflexão sobre a linguagem a partir dela mesma, ele estabelece profundas conexõesemocionais com o espectador por meio da possível identificação estabelecida com certas situações, olhares e lágrimas vivenciadas pelas personagens — seja em qual nível de ficção elas estejam, no filme ou no filme dentro dele.
Confira o trailer:
A Ilha de Bergman
Em cartaz no Cinema do Dragão (sessões nos dias 6, 8 e 9 sempre às 20 horas)
Quanto: R$ 16 (inteira) (preço promocional de R$ 10 às terças)
De Mia Hansen-Løve. 112 min.
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