É Tudo Verdade: censura às artes no Brasil é mote de "Quem Tem Medo?"
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
Há um mal-estar melancólico no olhar que o documentário "Quem Tem Medo?" lança para fatos relativamente recentes, mas revistos, em 2022, a partir de certa distância. Filmado desde 2017, o documentário de Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr reconta seis casos de censura e ataque às artes ocorridos no País nos últimos cinco anos a partir de depoimentos das próprias pessoas atingidas pelas reações odiosas. O filme será disponibilizado virtualmente neste domingo, 10, como parte da Mostra O Estado das Coisas, do 27º Festival É Tudo Verdade.
O documentário se debruça em casos de destaque nacional, como o do coreógrafo Wagner Schwartz, cuja apresentação da performance "La Bête" no Museu de Arte Moderna de São Paulo em 2017 foi combustível para ataques da extrema-direita e criação de notícias falsas, e o da atriz Renata Carvalho, protagonista do espetáculo "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu". Completam a lista Maikon K, José Neto Barbosa e os espetáculos "Caranguejo Overdrive" e "RES PUBLICA 2023".
O foco do documentário são as falas de artistas envolvidos nas censuras repercutindo os acontecidos. Não há demarcações temporais que deixem explícito se as entrevistas feitas com as personagens ocorreram dias, semanas ou anos depois de cada caso, mas o tom dos discursos, e do próprio filme, é de revisão distanciada, revendo os acontecimentos como antecedentes cruciais (e posteriores consequências diretas, para aqueles ocorridos depois) da ascensão da extrema-direita ao poder no País.
A abertura do longa se dá justamente com o coreógrafo Wagner Schwartz, um dos mais paradigmáticos casos do tipo no País. A performance do artista, que se inspira nas esculturas articuladas da série "Bichos" (1960), da artista contemporânea Lygia Clark, foi divulgada em círculos de direita e deturpada de sentido após uma pessoa que acompanhava uma apresentação no MAM publicar um vídeo nas redes sociais.
"Essa vontade dela de divulgar um trabalho foi completamente distorcida. Exageradamente distorcida por uma sociedade exageradamente distorcida", define Wagner no longa. O segmento dedicado à performance "La Bête" guarda em si algumas das principais reflexões sobre o tema, como o poder do universo virtual nessa reação conservadora e os paralelos entre a censura recente e aquela empreendida na época da ditadura militar.
O artista, por exemplo, usa a ideia de um "tempo de exílio" para falar do momento em que teve que literalmente deixar o País após a repercussão da performance. Diferentemente do contexto repressivo brasileiro na ditadura, porém, a censura a Wagner teve a internet como principal palco.
Como o caso "nasceu" a partir do compartilhamento do vídeo de uma apresentação de "La Bête", foi no ambiente on-line que os principais ataques se davam, como recupera o artista no depoimento. "O que começa na internet não tem fim", atesta. Apesar disso, o medo e o receio foram companhias constantes para ele. "Eu tinha medo que saísse do virtual e viesse para o real", admite.
No "real", como põe o artista, os ataques foram principalmente de figuras da política. As entrevistas com as personagens são, inclusive, entremeadas com trechos das obras censuradas, elas mesmas também fortemente políticas em múltiplos sentidos, e de discursos em plenário de deputados e senadores favoráveis e contrários às censuras, expondo didaticamente os meandros da "guerra cultural" empreendida na época. A mistura de retóricas conservadoras pautadas na religião, distorção de fatos e criação de inimigos inexistentes, modus operandi bem reconhecido atualmente, já estava lá se pondo à prova.
Rever os ataques e ainda ouvir os relatos em primeira pessoa das consequências daqueles contextos de ódio reforçam o senso de desesperança que marca o filme. Reconhecer dentre os depoimentos de ataque agressivo figuras que hoje se aproximam do campo "progressista" por convenções eleitorais, então, realça ainda mais o inicialmente citado mal-estar melancólico causado pela produção. Apesar do gosto amargo, uma afirmação de Renata Carvalho dá um horizonte possível de reação: "Já me tiraram de todos os lugares, mas do teatro vocês não vão me tirar". Fincar os pés é um ato de coragem.
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